História da arte no Brasil


A ocupação humana do imenso território que hoje constitue o Brasil era, até começos da década de 1970, tradicionalmente aceita como não recuando a mais de 10.000 anos. Pode em verdade ter ocorrido em época muitíssimo anterior, a serem corretas as conclusões a que têm chegado em tempos recentes as arqueólogas Maria da Conceição Beltrão em escavações realizadas na Bahia em 1987. E Niede Guidon dois anos mais tarde, em pesquisas de campo levadas a efeito no Piauí. Essa última pesquisadora após ter estudado o sítio arqueológico piauiense de São Raimundo Nonato, sustentou ter sido o mesmo freqüentado por homens pré-históricos desde há 50.000 anos, no mínimo.
Mas essa sua assertiva está longe de ser pacificamente aceita por muitos estudiosos norte e sul-americanos do passado das Américas.
Entre todos os capítulos da Arqueologia Brasileira ainda tão pouco conhecida, um dos mais importantes e relativamente mais estudados é sem dúvida o da chamada arte rupestre. Ela já vinha espicaçando a curiosidade de bom número de amadores, mas de poucos profissionais nacionais e sobretudo estrangeiros. Isso pelo menos desde começos do Séc. XIX, embora a ela já se refiram autores quinhentistas ou seiscentistas como Ambrósio Fernandes Brandão e Barleus. O estudo científico só tomaria impulso neste campo, na segunda metade do nosso próprio século, depois que, em 1950, Paulo Duarte fez vir ao Brasil a célebre especialista francesa Annette Laming Emperaire.
Principalmente da década de 1980 e após o fim do regime militar, diversas missões científicas francesas têm atuado em São Paulo, Mato Grosso, Minas Gerais e no Nordeste, dirigidas por pesquisadores como Anne Marie Pessis (1984, Piauí), Niede Guidon (1989, Piauí), Gabriela Martin (1989, Nordeste), Denis e Agueda Vilhena Vialou (1992, São Paulo e Mato Grosso) e André Prous (1992, Minas Gerais). Após vencidas não poucas dificuldades realizaram significativo levantamento de incisões e pinturas pré-históricas, descobertas em diferentes recantos do nosso país, assim contribuindo para o estabelecimento futuro de um corpus da pintura pré-histórica brasileira. Ressalte-se que a maior preocupação dos arqueólogos que têm estudado nossa arte rupestre diz respeito às pinturas, muito mais que aos petroglifos.
Regra geral, só uma cor era empregada na elaboração de cada pintura rupestre. Utilizavam-se pigmentos minerais como o óxido de ferro para o vermelho, que era a cor mais difundida ou vegetais (urucum, genipapo, carvão), por vezes mesclados a resinas vegetais. Há coexistência, por vezes numa única pintura, de formas geométricas, abstratas. Outras vezes, de formas figurativas de homens e de animais, o que poderia segundo alguns estudiosos corresponder à antiquíssima divisão entre trabalho feminino e trabalho masculino. Às mulheres se atribuiu desde sempre a função de produzir cestas, têxteis e cerâmicas, atividades nas quais a forma e principalmente a decoração são obtidas pelo emprego de padrões estilizados repetitivos. Elas podem ter sido as responsáveis por esses pontos e círculos, losangos, cruzes e lancetas que ocorrem em tantas pinturas rupestres brasileiras. Já os homens, caçadores por índole, e por isso mesmo obrigados a conhecer com precisão a aparência de cada animal, terão sido os autores das formas orgânicas e das representações naturalistas.
Com exceção do litoral, pode-se dizer que todas as regiões do território brasileiro ainda hoje conservam numerosos exemplos de arte rupestre, a despeito das depredações ocorridas nas últimas décadas, motivadas geralmente por interesses econômicos. Existem no entanto regiões que hoje nos apresentam acervos rupestres mais ricos. Isso talvez apenas signifique que nessas regiões as pesquisas começaram há mais tempo e com melhores recursos. Assim, entre os principais sítios arqueológicos brasileiros possuidores de importante acervo de pinturas rupestres devem ser citados São Raimundo Nonato e Sete Cidades, no Piauí; o Vale do Seridó, no Rio Grande do Norte; a Pedra do Ingá, não longe de Campina Grande, na Paraíba; a Pedra Furada, no Município de Venturosa, em Pernambuco; numerosíssimas cavernas distribuídas pelos municípios de Lençois, Morro do Chapeu, Montalvânia e outros, na Bahia; Serranópolis e Caiapônia, em Goiás; Lagoa Santa e Januária, em Minas Gerais e Canhemborá e Pedra Grande, no Rio Grande do Sul.
Piauí. São Raimundo Nonato, com suas numerosas tocas ocupadas por homens pré-históricos entre pelo menos 17.000 e 5.000 anos atrás - Toca do Paraguaio, do Boqueirão da Pedra Furada, do Baixão das Europas, da Chapada da Cruz etc, foi o foco de irradiação do que os especialistas chamam de "Tradição Nordeste", caracterizada por abundantes cenas de caça a tatus, veados e onças, estas flechadas à distância, com ajuda de um propulsor. Tudo aplicado com auxílio de pinceis vegetais ou com os dedos. Predomina o vermelho, ocorrendo em menor proporção o amarelo, o preto, o branco e o cinza. As manifestações mais antigas são também as mais remotas até hoje encontradas no Brasil: 17.000 anos, conforme o método do carbono 14. Na Toca do Baixão das Europas I pode-se ver curiosa representação de três figuras humanas de estaturas diversificadas em canhestra perspectiva, pintadas há cerca de 7.000 anos. Já na arte rupestre de Sete Cidades, cuja idade foi estimada por equipes da Universidade Federal do Piauí entre 6.000 e 4.000 anos, predomina o estilo geométrico, apresentando-se as raras figuras humanas e de animais muito estilizadas e com um mínimo detalhamento anatômico. Aqui, exclusivamente o vermelho é empregado.
Rio Grande do Norte. Ao longo do Vale do Seridó espraiou-se o chamado "Estilo Seridó", especialmente notável pela impressão de movimento e pela tendência à expressão, visíveis em sua arte rupestre. Pintadas em branco, amarelo alaranjado e vermelho, as figurinhas (de 15 cm e menos) que povoam as pinturas raramente ocorrem isoladas. São geralmente em grupos - caçando, copulando, dançando. A dança está sempre associada a árvores ou a galhos e ramos. Assim, no sítio Xique-XiqueI de Carnaúba dos Dantas, o artista pré-histórico representou com nitidez duas figuras que dançam em torno de uma árvore.
Paraíba. Em sítios pré-históricos como o da Pedra do Ingá - um paredão de 24 metros de extensão por três de altura coberto de petroglifos realçados a vermelho, amarelo, preto e branco - predominam as formas geométricas e padrões simples como pontos, círculos, cruzes e lancetas. Muito raras as formas de animais; mais raras ainda as de seres humanos, umas e outras tratadas num estilo linear abstratizante.
Pernambuco. Dois sítios se destacam: Pedra das Figuras, com representações estilizadas de répteis e emas em vermelho. E Pedra Furada, onde ocorrem figuras humanas e de animais, estilizadas quase até à abstração.
Bahia. Animais, principalmente aves, também muito estilizados, constituem a principal temática da arte rupestre bahiana, em municípios como Lençois e Montalvânia.
Goiás. Nessa região calcula-se que tenham-se sucedido 500 gerações humanas. Destacam-se os sítios arqueológicos de Serranópolis e Caiapônia. As pinturas são abundantes, ocupando por vezes extensões que chegam a 80 metros. Em Serranópolis encontram-se pinturas a vermelho, amarelo, preto e branco de seres humanos e animais estáticos, antigas de até 11.000 anos e muitas vezes executadas umas sobre as outras. Aqui alternam-se figuras geométricas, como elipses, círculos, triângulos. Da mesma época podem ser as pinturas rupestres encontradas em Caiapônia - figuras humanas dançando, executando acrobacias, fêmeas com crianças etc., feitas invariavelmente a vermelho ou preto. Motivo comumente encontrado em toda a região sudoeste do Estado é o da ave de asas distendidas, em atitude de alçar vôo.
Minas Gerais. Desde Lagoa Santa, onde já foram estudados mais de 200 sítios com pinturas antigas de até 12.000 anos, descendo em direção sul até ao Paraná, predomina a chamada "Tradição Planalto": são pinturas animalistas executadas monocromaticamente e se alternando com raras figurações humanas e a padrões geométricos. Na arte rupestre, comumente ocorre que as pinturas mais recentes simplesmente encobrem ou recobrem as mais antigas a ponto de não raro torná-las indecifráveis. Aqui, ao contrário, certas pinturas dão mostras de terem sido várias vezes "restauradas", de tempos em tempos, por sucessivas gerações. Em Santana do Riacho existe um paredão de 100 metros de extensão recoberto de figuras de peixes e veados, representados sempre juntos. Freqüentemente ocorre a estranha fígura híbrida de um corpo e cabeça de veado dotada de pernas em forma de peixe. A "Tradição Planalto" é predominantemente figurativa. Já a "Tradição São Francisco" que se desenvolve ao longo do grande rio, é ao contrário dominada pelo geometrismo, com mínima incidência de formas animais. Na Lapa dos Desenhos em Januária, descobriu-se uma singular representação de uma plantação de milho, com palmeiras e uns poucos animais.
Rio Grande do Sul. Apresentando ainda vestígios da monocromia original, quase sempre em preto mas também em verde, branco, castanho e roxo, as incisões de Canhemborá prendem-se à chamada "Tradição Humaitá" (cerca de 3.000 anos atrás). Representam pegadas de aves e mamíferos, além de símbolos sexuais. Já na Pedra Grande em São Pedro do Sul, as incisões foram produzidas desde há cerca de 2.800 anos, sucessivamente por grupos humanos originários de Canhemborá, por indígenas da Tradição Umbu e já bem mais recentemente por Tupiguarani.
DECORAÇÃO CERÂMICA. Além dos abundantes testemunhos propiciados pela arte rupestre, a pintura pré-histórica brasileira também pode ser estudada pela observação da decoração de objetos cerâmicos, como urnas mortuárias antropomórficas e vários tipos de vasos, tangas cerimoniais etc., destacando-se ao Norte os estilos Marajó e Santarém, o primeiro mostrando ornamentação de frisos estilizados em meandros, padrões geométricos repetitivos, sinuosidades, curvas e contracurvas, executada em vermelho e branco. O segundo mais "barroco" e figurativo, com ornamentação abundante e não raro excessiva de aves, animais e seres humanos policromados. Mais recentes, já contemporâneas da chegada dos primeiros europeus, são as cerâmicas Maracá, Aruã e Tupiguarani, também exibindo realces a cor. Na Tupiguarani existem só no interior, permanecendo as paredes externas de vasos e recipientes na cor natural da argila.



Quando os colonizadores portugueses chegaram ao Brasil depararam-se com várias tribos indígenas. Essas tribos eram e continuaram sendo –as que restaram- as continuadoras ou sucessoras dos grupos humanos responsáveis pelas pinturas rupestres e outras manifestações da chamada arte pré-histórica brasileira.
A principal manifestação pictórica desses grupos consiste na ornamentação corporal à base de três cores principais: o vermelho, extraído das sementes do urucum; o preto, obtido do sumo do jenipapo; e o branco de tabatinga, aplicadas a dedo ou, em certos casos, como entre os Timbira, com a utilização de placas ou rolos. Trata-se, como demonstrou Lévy-Strauss ao estudar os Kadiweu do Pantanal matogrossense - de longe os melhores pintores entre os indígenas brasileiros - de adornar com pinturas as diferentes partes do corpo humano, não por simples divertimento ou puro espírito lúdico, como por tanto tempo se pensou. Isto era feito para que cada membro da coletividade pudesse ser imediatamente identificado segundo o grupo social a que pertencia: nobres, guerreiros ou povo comum. Rosto, tronco, dorso, braços e demais partes do corpo não são simplesmente recobertos de tinta: os padrões ornamentais tradicionais de figuras geométricas, listas, pontos, serrilhas etc. não lhes respeitam os limites ou contornos, mas os ultrapassam, buscando camuflá-los ou reestruturá-los. Isto é, obedecendo apenas à maior ou menor habilidade das mulheres que os executam. Algumas delas chegaram a se tornar, por sua habilidade, figuras conceituadas na tribo. Em tempos mais recuados os kudinas, homens que assumindo a condição feminina chegavam a se casar com outros homens, podem ter sido, segundo a tradição, os criadores de vários padrões ainda hoje em uso. Ao adotar a ornamentação corporal, o indígena brasileiro procura também diferenciar-se dos animais, opondo à realidade da Natureza sua própria opção cultural. Faz sentido a resposta dada por um deles ao missionário que no Séc. XVIII lhe perguntara por que se pintava: "E você, por que não se pinta? Quer se parecer com os bichos?"
Darcy Ribeiro, escreveu que o corpo humano é "a tela onde os índios mais pintam e aquela que pintam com mais primor". A ornamentação, sempre com padrões geométricos ou signos convencionais, de cerâmica utilitária, estatuetas e figuras (como em tempos mais recentes os conhecidos licocós ou bonecas Karajá da Ilha do Bananal), bancos zoomorfos e demais peças do singelo mobiliário e objetos utilitários como remos, constitue um campo de aplicação nada desprezível da arte da pintura entre os nossos indígenas.



Desde fins do Séc. XV e por todo o Séc. XVI predominou na Europa em relação ao Brasil, e de modo geral ao Novo Mundo recém-descoberto, certa visão fantasiosa que se nutria em narrativas extravagantes de viagens imaginárias ou sobrenaturais. Eram, ora regiões maravilhosas, onde se situaria o próprio Paraíso Terrestre, ora terras inóspitas despovoadas ou, pior ainda, habitadas por seres monstruosos. Colombo, em carta na qual dava contas do que pudera presenciar em sua viagem de 1492, observava com alívio não ter se deparado com os monstros humanos que muitas pessoas esperavam que encontrasse mas, ao contrário, com uma população "muito bem feita de corpo".
De todos os costumes dos naturais do Brasil, o que mais chocou e ao mesmo tempo fascinou os europeus, foi a antropofagia. Por isso, a mais remota representação de indígenas brasileiros é uma xilogravura anônima ilustrativa do Novus Mundus de Vespúcio (c. 1505). Mostra um grupo de onze canibais, entre eles mulheres e crianças, devorando à beiramar o corpo de um inimigo que acabaram de assar numa fogueira, vendo-se ao longe, fundeadas, duas caravelas. A beleza física dos antropófagos, sua longevidade, o fato de andarem despidos, não possuírem propriedade privada ou forma de governo, foram noções todas elas equivocadas ou imprecisas, que só muito mais tarde seriam reformuladas.Tudo isto parecia aproximar os naturais da América daquela perdida Idade de Ouro da raça humana à qual se referem Vergílio e Ovídeo. Um grande poeta francês, Pierre Ronsard, num poema dedicado a Villegaignon sustentou que ils vivent maintenant en leur âge doré (eles vivem atualmente na sua época de ouro). Dessa visão nostálgica e irreal dos nossos ameríndios travestidos em herois da Antiguidade Clássica, derivam certas representações, nas quais assumem aparência ou postura hercúlea ou apolínea. Corpos bem proporcionados como estátuas gregas, algumas devidas a grandes artistas como Albrecht Dürer e Hans Burgkmair, os quais, logicamente, nunca chegaram a ver um ameríndio de perto. Embora já desde os primeiríssimos anos do Séc. XVI começassem a chegar a Portugal e a outros países da Europa, trazidos como bichinhos amestrados pelos colonizadores. Foi o que aconteceu com alguns desses indígenas, como o índio brasileiro Essomericq, levado para a França por volta de 1505 e os cerca de 50 brasileiros, que em 1550 causaram sensação ao participar da Entrada de Henrique II em Rouen.
É pouco provável que, ao retornar a Portugal de volta de sua viagem de descobrimento, Cabral trouxesse a bordo indígenas brasileiros. Tal feito implicaria em antes tê-los levado à longinqua Índia, para onde partiu ao deixar o Brasil. Por isso torna-se enigmática uma pintura do Museu Grão Vasco em Vizeu, representando uma Adoração dos Magos e atribuída ao grande pintor português Vasco Fernandes (1475?-1541?). A mais curiosa particularidade dessa pintura é que o Rei Mago Baltazar não figura sob a aparência tradicional de um mouro ou de um negro, mas sim como um autêntico tupinambá. A obra dataria dos primeiros anos do Séc. XVI . Parece estar de algum modo ligada à descoberta do Brasil pelo Almirante Cabral. Este, segundo certos autores talvez por demais imaginosos, estaria retratado na figura do Rei Mago que, de joelhos, adora o Menino Jesus. Como Vasco Fernandes não veio ao Brasil, forçoso é concluir que a figura do tupinambá deve ter sido executada a partir de desenhos feitos in loco possivelmente por um amador com alguma habilidade artística e suficiente senso de observação para dar do indígena uma versão etnograficamente convincente.
Numa outra pintura portuguesa de c. 1550, do Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa, acha-se representado um Inferno, à maneira de Jan Mandyn ou outro imitador de Bosch. Aqui demônios cozinham os condenados num caldeirão sob as vistas de um Satanás de vistoso cocar à cabeça e exibindo um traje de penas semelhante ao usado por Baltazar na pintura atribuída a Vasco Fernandes acima referida. Embora caldeirões escaldantes fossem mais ou menos comuns em representações pictóricas do Inferno desde fins da Idade Média, não há dúvida de que o considerável know-how dos canibais brasileiros em cozinhar seus inimigos foi o que sugeriu ao anônimo autor da pintura emprestar a Satanás a aparência de um feroz tapuia. Muitos lusitanos devem ter visto , nessa época, tais selvagens como demônios.
Uma das mais belas representações de índios brasileiros é uma xilogravura de autor ignorado, talvez Jean Cousin, no livro C’est la deduction du sumptueux ordre plaisantz spectacles, publicado em Rouen em 1551 para celebrar a entrada triunfal de Henrique II e Catarina de Médici na cidade, um ano antes. A xilogravura, "Figure des brisilians", retrata a aldeia indígena brasileira especialmente montada para a ocasião, com seus moradores entregues às mais diversas atividades e ocupações.
Entre os companheiros de Jean de Léry em sua viagem de 1555 ao Brasil achava-se certo Jean Gardien, que o próprio Jean de Léry define como um "expert en l‘art du portrait" em seu livro Histoire d’un voyage faite en la terre du Brésil (La Rochelle, 1578). No texto, Léry explica também que muitas vezes pediu a Jean Gardien que desenhasse a estranha fauna brasileira, no que não foi atendido. Como o livro é ilustrado com diversas xilogravuras, pode ser que o próprio Léry tenha sido o autor dos desenhos originais nos quais as mesmas se basearam. Do mesmo modo, Hans Staden pode ter feito esboços in loco das cenas de seu cativeiro em 1549 entre os tupinambás, mais tarde transportadas para a técnica da xilogravura, que ilustram o livro no qual relata suas desventuras no Brasil - a Warhaftige Historia, publicada em 1557.
Também de 1557 é o livro de André Thevet Les Singularitez de la France Antarctique, ilustrado com 41 retratos de homens famosos de todos os tempos em xilogravuras baseadas, de acordo com o próprio Thevet, em "poutraits au naturel faits d’après creon que j’ai rapporté de dessus les lieux". Permanece em aberto a questão de se ele, ou algum outro, foi o autor dos desenhos. Numa nova edição dessa obra, aparecida em 1584 sob o título de Les vrais Pourtraits et vies des hommes illustres Grecs, Latins, et Payens etc., Thevet acrescentou as vidas e os retratos de cinco indígenas americanos, entre os quais o brasileiro Quoniambec (ou Cunhambebe). Também no Recueil de la diversité des habits etc., de François Descerpz, publicado em Paris em 1562, seis das 129 ilustrações xilográficas (tudo, como explica o subtítulo da obra, "fait après le naturel"), referem-se ao Brasil: Le Portugais e La Portugaise, La Femme Sauvage e L’Homme Sauvage e principalmente Le Brésilien e La Brésilienne. As xilogravuras foram executadas, segundo Descerpz esclarece no texto, com base "en quelques desseins du deffunct Roberval, Capitaine pour le Roy, & d’un certain Portugais ayãt frequenté plusieurs & divers pays". Cerca de 80 anos mais tarde Albert Eckhout retomaria o expediente de representar aos pares os tipos étnicos que lhe fora dado conhecer no Brasil Holandês, quem sabe até sob a influência desse que já foi considerado o mais antigo livro de etnografia jamais publicado.
Na Historia da provincia sãcta Cruz a que vulgarmente chamamos de Brasil, de Pero de Magalhães Gandavo (Lisboa, 1576), aparecem duas ilustrações xilográficas assinadas Jeronimo Luiz. Uma delas retrata a execução de um prisioneiro por um grupo de indígenas, e a outra uma imagem, mais engraçada do que amedrontadora, da criatura marinha que irrompeu dos mares em 1564 em São Vicente - o Ipupiara, que nada mais seria do que um inocente leão marinho, afinal abatido a golpes de espada e flechadas. A ilustração desse Ipupiara deve ter causado sensação na Europa pois foi aproveitada em mais duas obras, acompanhada de curtos textos explicativos sobre o animal: o Newe Zeytung von einen seltzamen Meerwunder etc., publicada em Frankfurt sem indicação de data, e a Nel bresil di san Vicenzo nella citta di Santos etc, impressa em Veneza em 1565. O primitivo esboço, talvez devido ao próprio Gandavo, apenas mostrava o animal, de corpo ovalado, cabeça quase humana, sobre pés de palmípede, dotado de seios mas com órgãos genitais masculinos. É possível que nas versões posteriores tenham sido acrescentados o heroi europeu que o acomete com a espada e os indígenas que lhe atiram flechas.
Procedendo em 1976 ao levantamento das imagens de indígenas das Américas produzidas por europeus até 1590, William C. Sturtevant chegou a elencar exatas 268, nesse número incluídas as ilustrações em livros e mapas. Nesse ano de 1590, porém, abriu-se um novo capítulo na história da iconografia americana e brasileira, com o início da publicação em Frankfurt de uma coleção de livros enfeixando praticamente toda a literatura até então produzida por descobridores, navegantes e aventureiros sobre as terras exóticas da América, África e Ásia, em textos latino e alemão acompanhados de numerosas ilustrações. Essas Narrationes Peregrinationum ou Schiffarten dividiam-se em duas séries - as Grandes Viagens, consagrada à América, e as Pequenas Viagens, dedicada à África e à Ásia. Eram uma iniciativa do ourives e gravador flamengo Theodore de Bry (1528-1598), continuada após sua morte por seus filhos e genro. Até 1630 tinham sido publicados 25 volumes, compondo uma gigantesca enciclopédia do exotismo fartamente ilustrada com gravuras em metal feitas a partir de desenhos originais dos mais diversos autores. Em 1631, ao mesmo tempo em que dava continuidade à publicação das Narrationes, o genro e sucessor de De Bry, Matthäeus Meryan (1593-1650) iniciava novo e mais ambicioso projeto editorial: a Historia Antipodum oder Newe Welt etc., abarcando em mais de 600 páginas de grande formato, 173 gravuras e sete mapas, todos os relatos de viagens à América, inclusive os de Hans Staden, Jean de Léry e Aldenburgh relativos ao Brasil.
Para encerrar citem-se as duas gravuras m metal que ilustram a Histoire de la mission des pères Capucins en L’Isle de Maragnan, de Claude d’Abeville (Paris, 1614), e sua continuação, a Suite de l’Histoire des Choses plus memorables advenuës en Maragnan ès annés 1613 & 1614, de Yves d’Evreux (Paris, 1615. Representam três tupinambás levados do Maranhão para a França, onde receberam o batismo, foram apresentados ao Rei e despertaram a curiosidade do poeta François Malherbe, além de terem motivado a um dos principais compositores franceses da época, Gautier, uma sarabande com motivos indígenas. Os tupinambás envergam trajes europeus, mas exibem seus cocares e tembetás, fazendo vibrar seus maracás.


Quando os portugueses atingiram o Brasil, no último ano do Séc. XV, Portugal, então sob o reinado de Dom Manuel o Venturoso (1495-1521), atravessava um período de intensa atividade artística, motivado pelas Grandes Navegações, pela fundação de seu vasto império colonial ultramarino e pela imensa riqueza material. No que respeita à arte da pintura que, diga-se de passagem, nunca foi uma preferência nacional, várias oficinas começariam a surgir em breve em cidades como Lisboa, Coimbra, Vizeu e Évora. Daí, mais tarde, sairiam os paineis e retábulos destinados a povoar os conventos e igrejas portugueses, substituíndo no devido tempo as importações de obras flamengas, que até então eram comuns. Um exemplo significativo é o grande políptico das Sete Dores da Virgem que em 1508-1509 Quinten Metsijs, de Antuérpia, executou por encomenda da Rainha Leonor para o Convento de Xabregas. Por essa mesma época diversos pintores flamengos, atraídos pelas possibilidades de enriquecimento, estavam chegando a Portugal. Em breve se tornariam os iniciadores e mestres de uma brilhante linhagem de pintores como Jorge Afonso, Francisco Henriques, Frei Carlos, Vasco Fernandes, Cristóvão de Figueiredo, Gregório Lopes e Garcia Fernandes. Se não eram todos de origem flamenga (como parece ter sido Francisco Henriques e o foi sem dúvida Frei Carlos),eram fortemente influenciados pela pintura flamenga. Esta influência, iniciada no longínquo ano de 1428 quando o célebre Jan Van Eyck esteve no país, somente diminuiria nos anos finais do reinado de Dom João III, substituída pelo gosto italiano.
Graças ao mecenato artístico desempenhado por Dom João III, puderam estudar na Itália pintores maneiristas como Gaspar Dias, António Campelo, Francisco Venegas, Fernão Gomes e o miniaturista Francisco de Holanda, que em Roma se tornou amigo de Michelangelo. Deve registrar-se a permanência em Lisboa, nos começos da segunda metade do Séc. XVI, do excelente pintor maneirista flamengo Anthonis Mor e do seu discípulo espanhol Sánchez Coello. Apesar de tudo isso, a segunda metade do Séc. XVI representa para as artes em Portugal um momento de decadência generalizada, que ainda mais se acentuaria após 1580, quando Portugal passa ao domínio de Espanha, do qual só se libertaria muitos anos mais tarde, já pelos meados do Séc. XVII. Documento revelador quanto ao estado da pintura e à baixa condição profissional dos pintores portugueses da época é o Regimento dos Pintores de Lisboa, de 1572, no qual o legislador distingue entre três categorias de pintores: os executantes a óleo; os que pintavam a fresco ou a têmpera; e os encarnadores de imagens. Após isto especificava que qualquer um deles podia também pintar portas, janelas ou paredes.
Esboçamos acima em linhas muito gerais o que era a pintura portuguesa no decurso do Séc. XVI, para melhor situar as primeiras manifestações pictóricas dessa arte transplantada ao Brasil. Aqui, no primeiro século da colonização não foram trazidos, evidentemente, pintores, mas sim administradores, muitos soldados, alguns mestres-de-obras e artífices, centenas de degredados e, após 1549, com os primeiros jesuítas missionários. E seriam estes, justamente os primeiros pintores europeus ativos no Brasil, suprindo com maior ou menor habilidade sua falta de aprendizado profissional. Trabalhavam para a edificação dos fieis, a salvação das almas e a maior glória de Deus e de sua Igreja. Obra de religiosos, era de esperar que a pintura do Séc. XVI - como de modo geral toda a pintura realizada no Brasil Colonial - viesse a ser, como foi, exclusivamente religiosa, com mínima incidência de retratos e umas raras (e toscas) representações paisagísticas servindo de fundo a cenas da vida de Cristo e dos santos.
Entre poucos nomes a realçar, todos de obra ignorada, citem-se os jesuítas Manoel Álvares, que esteve alguns meses na Bahia em 1560 a caminho da Índia e que para o Padre Serafim Leite terá sido "o primeiro pintor, digno deste nome, que passou pelo Brasil"; Manoel Sanchez, chegado em 1574; Francisco Dias, notável arquiteto e provavelmente também pintor, no Brasil desde 1577. E Belchior Paulo ou Paielo, desembarcado em 1587, possível autor de um retrato de José de Anchieta e que trabalhou em Pernambuco, Bahia, Espírito Santo e ainda em outras regiões brasileiras. Também merecem destaque certo Hierônimo de Mendonça, que em 1595 residia em Olinda, e até uma artista-pintora, Rita Joana de Souza, nascida também em Olinda e ali falecida aos 23 anos, em 1618. Outros pintores quinhentistas devem com certeza ter trabalhado no Brasil - como aquele Irmão, "bom pintor", citado no Catálogo da Companhia de Jesus de 1584, que pintou, para as festas do Espírito Santo daquele ano na Bahia, "muitas bandeiras, em pano, de boas tintas". Só que lhes ignoramos totalmente nome e produção.
Ao longo da primeira metade do Séc. XVII, mas ainda de alguma forma ligados ao Séc. XVI, haveria que citar, entre poucos outros, em Pernambuco, os flamengos João Batista (protestante, convertido ao Catolicismo em 1606) e Remacle Le Gott (vindo em 1628); na Bahia Antonio Bastos, Aleixo Cabral, André Rodrigues e Manoel Pinheiro. E no Maranhão Frei Cristóvão de Lisboa, chegado em 1624, primeiro Custódio da Ordem Franciscana no Maranhão, autor de um precioso manuscrito com desenhos de animais e plantas que antecedem em mais de uma década o que fariam no gênero os chamados pintores de Nassau.



Ao tempo do domínio parcial do Nordeste pela GWC - Companhia Outorgada das Índias Ocidentais e, mais especificamente, durante os cerca de oito anos que o Conde João Maurício de Nassau-Siegen permaneceu em Recife como governador-capitão e almirante-geral do Brasil Holandês, entre 1637 e 1644, importante surto de atividade arquitetônica e artística desenvolveu-se em Pernambuco e em territórios vizinhos. E isso por sua exclusiva iniciativa. Esse nobre alemão recebera sólida educação humanística cursando várias universidades européias. Já ao embarcar para a América do Sul, em fins de 1636, tivera a preocupação de se fazer acompanhar de todo um séquito de artistas plásticos, poetas e cientistas, pagos aliás não pela Companhia, mas de seu próprio bolso.
Entre os pintores de que dispunha o Conde no Brasil apenas dois, ambos holandeses, são suficientemente conhecidos: Frans Post, paisagista, e Albert Eckhout, pintor de tipos etnográficos e de naturezas-mortas.
O próprio Nassau, em carta de 1678 remetida ao Marquês de Pomponne, ministro de Luís XIV de França, afirmou ter tido aqui sob suas ordens seis pintores. Até hoje os especialistas discutem sobre quem terão sido os outros quatro. É possível que Nassau tenha incluído, na relação dos seus pintores, seu compatriota e moço-de-cozinha Zacharias Wagener, que nas horas vagas pintou as singelas aquarelinhas que compõem o Livro dos Animais. Talvez outro alemão, Georg Marcgraf, astrônomo, cientista e autor de ilustrações cartográficas. Quem sabe Jan Vingboons, cartógrafo profissional que bem pode ter produzido pinturas, até porque descendia de uma dinastia de pintores. Sabe-se igualmente que o grande marinhista Abraham Willaerts veio ao Brasil acompanhando Nassau, aqui permanecendo pouquíssimo tempo, pois logo embarcou para Angola de onde retornou à Europa. E admite-se que o arquiteto e pintor Pieter Post, irmão mais velho de Frans, tenha também se demorado alguns meses em Recife. A presença, no Brasil, dos irmãos Gillis e Bonaventura Peeters é apenas hipotética. Deixaram algumas pinturas representando cenas portuárias, combates entre holandeses e indígenas etc. Enfim, ainda haveria que citar pelo menos outros dois artistas amadores: Caspar Schmalkalden e Johan Nieuhof.
A permanência, dos artistas de Nassau no Nordeste, representa um episódio isolado e dos mais interessantes da História da Pintura Brasileira, pois não deixaram discípulos ou continuadores. O fato se reveste de importância também para a História da Arte ocidental, pois corresponde cronologicamente à primeira investida da arte holandesa fora do continente europeu. Além disso, por não serem católicos, esses pintores puderam entregar-se livremente a gêneros pictóricos até então jamais praticados no Brasil. Aqui foram os primeiros, a nível profissional, a fixarem a paisagem, os habitantes, a fauna e a flora. As pinturas e desenhos de Post, Eckhout e provavelmente outros artistas de Nassau, foram aproveitadas como cartões de tapeçarias pela Manufatura dos Gobelins e divulgadas em sucessivas tiragens até vésperas da II Guerra Mundial. Foi em grande parte como conseqüência destes fatos que a partir de fins do Séc. XVII, as artes decorativas conheceram enorme voga principalmente em França e também em outros países da Europa.
Albert Eckhout, Mameluca

Zacharias Wagener, Tamanduá

Franz Post, Cachoeira de Paulo Afonso.

Frontispício do livro de Gaspar Barlaeus

Rerum per Octennium, 1647.



Após a derrota definitiva e conseqüente expulsão dos holandeses em 1654, a arte da pintura retomou no Brasil o mesmíssimo rumo que a invasão de 1632 interrompera. Passou a desenvolver-se, como antes, à sombra das igrejas e conventos, obra quase sempre de religiosos, ou de leigos por eles orientados. Não havia muitos pintores, e sua condição social era tão baixa, que da maioria ficou apenas o nome, como o desse Antonio do Amaral que em 1657 aparece nos arquivos da Santa Casa da Misericórdia de Salvador, na condição de fiador de Francisco Fernandes, este autor dos altares da igreja que então se construía. Somente de um ou outro restou obra certa e convenientemente identificada, contando-se entre esses raros o maior de todos, Frei Ricardo do Pilar. Nascido em Colônia, na Alemanha, entre 1630 e 1640, chegou ao Brasil na década de 1660 e teve atividade no Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, onde professou em 1695. Ali encontra-se quase toda a sua produção, inclusive sua obra-prima, o Senhor dos Martírios. Veio a falecer em 1702. Na curta biografia que dele conserva o Dietário beneditino de 1773, Frei Ricardo é mencionado como insignis pictor, designação geralmente reservada apenas aos pintores de formação profissional. É muito possível que tenha feito toda a sua aprendizagem na Europa, em algum ateliê germânico ou flamengo. As influências presentes em sua produção são de pintores portugueses ou de flamengos ativos em Portugal, como Frei Carlos ou o anônimo Mestre do Sardoal, e da antiga Escola de Colônia, onde pode ter-se pode desenvolvido o seu talento. Parte de sua produção pictórica acha-se dominada por certa rigidez de execução e tendência arcaizante, possivelmente decorrentes da própria natureza dos temas beneditinos que tinha de, forçosamente, desenvolver. Umas poucas pinturas revelam audácia técnica, talvez resultante do conhecimento direto de obras contemporâneas que pudera apreciar em sua juventude.
A partir da década de 1660 trabalharam no Maranhão os jesuítas João Filipe Bettendorf, nascido em Luxemburgo, e o holandês Baltazar de Campos, autor de uma série de pinturas sobre a Vida de Cristo, que outrora se conservava na primitiva sacristia da Igreja de São Francisco Xavier em Belém do Pará.
Eusébio de Matos (Frei Eusébio da Soledade) irmão do célebre poeta Gregório de Matos, passa por ter sido aluno de um dos pintores holandeses de Nassau, o que é muito pouco provável. Mesmo que Albert Eckhout tenha estado em 1640 na Bahia, como sustenta antiga tradição, Eusébio, nascido em 1629, teria na ocasião pouco mais de 10 anos. De qualquer modo, nenhuma obra sua chegou até nossos dias, embora muitas lhe sejam atribuídas. Também ativos na Bahia foram Antonio de Lustosa, comissionado em 1679 pela Santa Casa de Misericórdia para pintar sua bandeira. E Lourenço Veloso, nascido em Goa e de quem apenas sobrevive uma pintura datada de 1699 - o Retrato do Capitão Francisco Fernandes da Ilha, da Santa Casa de Misericórdia de Salvador. O historiador da arte bahiana Carlos Ott chegou a perceber influências de Rembrandt e El Greco. Além desses, existe uma série de vultos menores mencionados em documentos de arquivos, como Vicente Rodrigues (1652), Francisco Rodrigues (1659), Domingos Rodrigues (jesuíta que entre 1660 e 1706 realizou douração de talhas e pintou quadros para a Catedral de Salvador, onde ainda podem existir obras de sua autoria); Luís Grem (1673-1697); Francisco Nunes (1675-1697); José Pereira da Costa (1682-1688) e uma dúzia de outros.

Oratório, Minas, século XVIII



Em seu sentido histórico, o vocábulo Barroco é empregado para designar a arquitetura e a arte produzidas na Europa no Séc. XVII, em seqüência ao Maneirismo e antecedendo o Rococó. No Brasil deve ser entendido em acepção bem mais ampla, para abarcar também (ou principalmente) a arte e a arquitetura do Séc. XVIII. Na verdade, êsse estilo já se achava no ocaso na Europa quando no Brasil experimentava seu maior florescimento, como demonstram os Doze Profetas do Aleijadinho e a pintura em perspectiva no forro da Igreja de São Francisco de Assis em Ouro Preto, de Manoel da Costa Ataíde, uns e outra concluídos por volta de 1808-1809, portanto já no Séc. XIX.
O Séc. XVIII é considerado a Idade de Ouro do Brasil (na expressão de Charles R. Boxer), por ser aquele em que se descobriram quantidades significativas de ouro e pedras preciosas, numa região que por isso mesmo se tornaria conhecida como das Minas Gerais. O fato de Minas ter servido de cenário nesse período para um surto de efervescência artística, não foi mera coincidência. Na América Colonial portuguesa e espanhola foi justamente em zonas de mineração como Taxco no México, Potosi na Bolívia ou Ouro Preto no Brasil, que se localizaram os principais centros de irradiação artística e cultural.
Comparado ao Barroco hispano-americano, o brasileiro apresenta-se menos rebuscado e mais sóbrio. Desenvolvido desde cedo por mão-de-obra negra e principalmente mulata, ficou mais próximo do povo. Essa mulatização do Barroco no Brasil acabou emprestando sabor peculiar à arte brasileira do Setecentos, nela obviamente também incluída a pintura, transformando-a numa variante dialetal da linguagem original. Observando atentamente as várias vertentes em que se disseminou o Barroco pelo país, ver-se-á que a rigor podem ser resumidas a duas apenas. O Barroco litorâneo, de Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro, e o Barroco interiorano, que é principalmente o de Minas Gerais, ciosamente protegida por suas montanhas. No litoral, o Barroco trazido da Europa manteve-se menos independente, mais atado à Metrópole. No interior o estilo viu-se obrigado pelas circunstâncias a adotar soluções próprias, tornando-se mais original. Por isso, muitos estudiosos costumam ver na arte mineira do Séc. XVIII a expressão mais brasileira do Barroco no Brasil, enquanto a arte de Pernambuco, por exemplo, conserva-se bem mais "portuguesa". Há ainda uma outra distinção fundamental entre o Barroco mineiro e o pernambucano: êsse último reflete os gostos de uma sociedade rural aristocrática, sendo por conseguinte mais requintado, enquanto aquele nasce numa sociedade urbana e ideologicamente burguesa, enriquecida a duras penas na mineração e avessa a ostentações.
No Brasil do Séc. XVIII a pintura, do mesmo modo que as demais artes e ofícios, continuava sendo praticada, ensinada e orientada por religiosos jesuítas, beneditinos, franciscanos, dominicanos, terésios etc. Sendo esses padres, monges, frades ou irmãos terceiros não somente portugueses, mas também alemães, franceses, italianos, espanhois, austríacos, belgas e de outras nacionalidades, ocorreu que muitas características e peculiaridades de diversos estilos nacionais contribuíram para o enriquecimento do Barroco Brasileiro. Também persistem na arte brasileira do Setecentos, como em geral nas diversas manifestações artísticas da América Colonial, ingredientes estilísticos que nada têm a ver com o Barroco - maneiristas, renascentistas, góticos, românicos, para não falar nos fortíssimos componentes africano e asiático, o que ainda mais contribui para a sua fisionomia peculiar.
Na pintura setecentista brasileira predomina a temática religiosa, embora existam retratos, umas raras decorações de tema profano e até pagão e ainda mais escassas interpretações estilizadas da paisagem local. A pintura de cavalete só excepcionalmente foi praticada, com ênfase na pintura arquitetônica. Sobretudo após 1732 experimentou grande desenvolvimento a pintura perpectivista ou di sotto in sù, invenção jesuítica . Em nosso país, mencionem-se Caetano da Costa Coelho, Manoel da Costa Ataíde, José Joaquim da Rocha e João de Deus Sepúlveda, entre outros. Diga-se ainda que raras vezes a pintura trocou a atmosfera de igrejas e conventos pelo ambiente familiar. Desempenhando função ao mesmo tempo religiosa e social, poucas pessoas a tiveram em suas moradas, fossem elas palácio ou mansão.
Tal como sucedeu com a pintura colonial na América Hispânica, os pintores setecentistas brasileiros socorreram-se de modelos europeus para produzirem suas próprias composições. Procuraram não em outras pinturas - não as havia por aqui - porém em estampas e ilustrações de missais, breviários e livros de horas flamengos, franceses, italianos etc. Daí resulta a singular dicotomia que oferecem certas obras, nas quais uma composição apurada, segundo os melhores preceitos da arte, contrapõe-se ao desenho ingênuo e ao colorido singelo. Estes modelos europeus emprestam a muitas pinturas brasileiras do Séc. XVIII ou já do Séc. XIX aparência bem mais antiga: como entender de outro modo que uma obra repleta de pormenores arcaicos ou primitivos, por exemplo, a Ceia de Ataíde, foi na verdade pintada em 1828?
As principais regiões de produção pictórica no Séc. XVIII foram Bahia e Pernambuco, Minas Gerais e Rio de Janeiro, seguindo-se outras, como São Paulo, Grão-Pará ou Mato Grosso, em que essa arte não conheceu desenvolvimento particularmente notável. Em cada uma destas ultimas regiões, embora sejam conhecidos os nomes de vários pintores e a autoria de diversas obras, prevalecem as pinturas de paternidade ignorada à espera de quem as identifique. Tarefa ainda agravada pelo mau ou péssimo estado de conservação em que se encontram quase todas. Além disso, em recibos e termos de empreitadas conservados em arquivos, há freqüentes menções a nomes de pintores, sem que se possa identificar ao certo as obras a que possam ter dado origem.

Manuel da Costa Ataíde, Flagelação de Cristo.

Cômoda brasileira do século XVIII em jacarandá e marfim.

São Francisco de Assis, Diamantina, Minas Gerais.
J
osé Joaquim da Rocha, O Sepultamento.

João de Deus Sepúlveda, Igreja de Nossa Senhora da Conceição dos Militares, Recife,
detalhe de A Batalha dos Guararapes.

Pintura barroca no Mosteiro de Santo Antônio,

Capela Dourada, Recife.


8. A Missão Artística de 1816

Pressionada pelas tropas de Napoleão, em 1808 a Côrte Portuguesa viu-se forçada a transferir-se de Lisboa para o Rio de Janeiro. Assim, a cidade, quase da noite para o dia, tornava-se a capital do imenso Império Ultramarino Lusitano. Acanhada cidade colonial, desde 1763 sede do Vice-Reinado do Brasil, teve de passar por urgentes transformações, de modo a receber o futuro Rei Dom João VI (desde 1792 Regente, no impedimento de Dona Maria I sua mãe) com todas as exigências e comodidades necessárias ao bom funcionamento de uma autêntica sede de Govêrno. Entre os vários progressos que então registrou o Brasil, incluem--se a abertura de seus portos ao comércio internacional, o estabelecimento da Imprensa Régia, a criação de Museu, Biblioteca, Banco do Brasil. Deve ser citada também a preocupação com o ensino das Belas Artes, que em princípios do Séc. XIX continuavam entre nós atreladas ao sistema medieval das corporações de ofícios. O Brasil deixava de ser um país de características africanas, semitas e orientais para europeizar-se e tentar se "embranquecer" de repente, deixando para trás tradições e costumes coloniais. Nesse contexto é que deve ser entendida a celeuma que se criaria quando a Missão Artística Francesa chegou em 1816. Sua finalidade era atualizar o aprendizado e a prática das artes e dos ofícios na América Portuguesa, pela criação de um estabelecimento oficial de ensino semelhante aos, que havia muito, existiam em nações civilizadas da Europa. Aos integrantes da Missão caberia introduzir no Brasil os postulados do Neoclassicismo.
Quando a Missão Artística Francesa aportou ao Rio de Janeiro, já havia algum tempo que Napoleão fora derrotado. Por essa razão muitos dos que a integravam tinham sido obrigados a deixar a França, sob a acusação de terem servido ao Imperador deposto. Resta saber se, como se pensava até recentemente, , os franceses da Missão foram convidados ou se, como é mais plausível e hoje comumente aceito, se ofereceram para trabalhar no Brasil. Convidados ou não, em 26 de março de 1816 desembarcavam no Rio Joachin Lebreton, chefe da Missão, grande latinista, um dos fundadores do Louvre e antigo secretário da classe de Belas Artes do Instituto de França. Os pintores Nicolas-Antoine Taunay, acompanhado de toda a família. E Jean-Baptiste Debret, o arquiteto Grandjean de Montigny, o escultor Auguste-Marie Taunay, o gravador Charles Simon Pradier, o músico Segismund Neukom e ainda artesãos como Ovide, Pilité, Level, Roy e Enout . A intenção inicial não era, como se vê, criar uma Academia de Belas Artes, mas sim um liceu onde se ensinassem todas as artes e ofícios. Por isso é que, ao ser oficialmente fundado em 13 de agosto de 1816, o estabelecimento de ensino dirigido por Lebreton recebeu o nome de Escola Real das Ciências, Artes e Ofícios, substituído sucessivamente pelos de Real Academia de Desenho, Pintura, Escultura e Arquitetura Civil, Academia das Artes, Academia Imperial das Belas Artes e, em 1826, Imperial Academia e Escola de Belas Artes.
Quando os membros da Missão chegaram ao Brasil, ainda estavam em plena atividade muitos dos nossos mais importantes pintores coloniais, como Manuel da Costa Ataíde em Minas, Franco Velasco na Bahia e Manoel Dias de Oliveira (dito o Brasiliense) no Rio. Ataíde, inclusive, solicitaria a Dom João VI, em 1818, a criação de uma aula ou curso de arquitetura e pintura em Mariana, mas teve negada essa sua pretensão. Quanto ao Brasiliense, dirigia no Rio , já desde antes da Missão, um animado ateliê no qual lecionava pintura e desenho com utilização de modelo vivo. Não se vendo aproveitado entre os professores da nova Escola Real, retirou-se desgostoso para Campos e abandonou a atividade artística. Por aí se vê que aos artistas franceses cabiam todas as regalias, e aos brasileiros ou portugueses aqui radicados nenhuma. Isso criou logicamente um clima de antipatia contra os recém-chegados, que nem mesmo falavam a lingua do país.
As dificuldades que os franceses da Missão encontraram no Brasil só aumentaram com a morte de Lebreton em 1819 e a conseqüente nomeação do novo diretor da Academia, o pintor português Henrique José da Silva. Este obviamente favorecia seus compatrícios em detrimento dos estrangeiros. Não suportando a guerra movida pelo novo diretor, Nicolas-Antoine Taunay regressou à França em 1821. E não fora pela obstinada determinação de Debret, a Academia teria fracassado, tantas vezes teve de ser adiado o início de seu funcionamento, afinal ocorrido em 1826.
Nicolas-Antoine Taunay foi o mais importante artista da Missão de 1816. Parisiense, dedicou-se inicialmente à paisagem, fixando cenas de Fontainebleau e de florestas vizinhas à capital, além de pintar minúsculas figuras em composições de pintores como Swenbach e Bruandet. Mais tarde deu provas de grande versatilidade, praticando vários gêneros. Era um dos artistas prediletos de Napoleão, para quem pintou várias cenas de batalha, e da Imperatriz Josefina. A queda do Império obrigou-o a embarcar aos 61 anos para o longinquo Brasil onde, por cinco anos, continuou pintando seus pequeninos quadros de assunto bíblico, mitológico ou histórico, cenas de gênero e deliciosos retratos infantis, além de umas 30 paisagens da Floresta da Tijuca e vistas do Rio de Janeiro. Êsse artista, cujo prestígio tem aumentado em anos recentes, é sob muitos aspectos o herdeiro e continuador dos paisagistas holandeses do Séc. XVII, porém tocado pela visão renovadora de Joseph Vernet e pelas invenções pré-românticas de Francesco Casanova.
Não tão grande artista quanto Taunay, Debret foi a verdadeira alma da Missão. Aparentado a dois grandes pintores franceses, Boucher e David (a quem acompanhou muito jovem à Itália), a partir de 1806 voltou-se para as grandes composições de tema napoleônico, muitas delas encomendas oficiais, de títulos extensos como Napoleão em Tilsit condecorando com a Legião de honra um Bravo do Exército Russo. A queda de Napoleão e o desgosto pela morte de um filho fizeram-no partir para o Brasil, onde se demorou até 1831. Desenvolveu em nosso país intensa atividade como pintor de história, cenógrafo, decorador, professor de pintura e animador cultural. Ao deixar o Brasil levou seu melhor aluno, Manuel de Araújo Porto-alegre. Lente da Academia em 1820, esperaria mais alguns anos até abrir um ateliê freqüentado a princípio por cinco alunos, número que em 1827 aumentaria para 38 (dos quais 21 na classe de pintura). Nesse ano finalmente ficou pronto e entrou em funcionamento o edifício da Academia, projetado por Grandjan de Montigny. Em 1829 organizou a primeira exposição pública de arte realizada no Brasil, com catálogo pago de seu próprio bolso. Entre 1834 e 1839, em Paris, publicou a obra que hoje lhe garante maior notoriedade: Voyage Pittoresque au Brésil.
Sucessor de Lebreton na direção da Academia, que dirigiria de 1819 até 1834 quando morreu (sendo então substituído pelo filho mais velho de Nicolas-Antoine Taunay e bom paisagista Félix-Emile Taunay), o português Henrique José da Silva estudou em Lisboa com Pedro Alexandrino de Carvalho. Veio para o Brasil a convite do Barão de São Lourenço. Fez sempre o possível para estorvar a ação dos artistas franceses da Missão. Ele está bem longe de ser o pintor medíocre que alguns historiadores tentaram impingir-nos, tendo sido em verdade retratista de bons recursos.
Quanto aos discípulos de Debret, merecem destaque Francisco Pedro do Amaral, último representante da chamada Escola Fluminense de Pintura e autêntico elemento de ligação entre a pintura colonial setecentista e os novos ideais estéticos de começos do Séc. XIX ; os portugueses Simplício Rodrigues de Sá e José de Cristo Moreira, aquele pintor religioso e retratista, e este, dos nossos primeiríssimos paisagistas e marinhistas; o retratista Francisco de Souza Lobo; o pintor de flores José Reis Carvalho. E, acima de todos, o já citado Porto-alegre, pintor, arquiteto, cenógrafo, caricaturista, escritor, poeta, libretista, político, diplomata, fundador da Crítica e da História da Arte no país, um dos introdutores do Romantismo no Brasil. É autor de 135 obras literárias e 20 peças de teatro, além de ter sido professor de Pintura Histórica e, entre 1854 e 1857, diretor da Academia Imperial de Belas Artes, na qual lhe coube formar alunos como Augusto Müller, Agostinho José da Mota, José Correia de Lima, Manoel Joaquim de Melo Corte Real, Francisco Nery e Jean Leon Pallière Grandjean de Ferreira, os quais se tornariam também vultos destacados da jovem Escola Brasileira.
À margem da Academia deve-se mencionar a atuação, na província, de uns poucos autodidatas, dos quais talvez o mais destacado e típico terá sido Miguel Arcanjo Benício da Assunção Dutra ou Miguelzinho, paulista de Itu, fundador de uma dinastia de artistas ativa até nossos dias e que foi, além de arquiteto, escultor, ourives e músico, pintor de aquarelas singelas, nas quais retratou tipos populares com verve e espontâneidade.

Manuel Dias de Oliveira, O Brasiliense,
D. João VI e D. Carlota Joaquina.

Nicolas Antoine Taunay, Moisés salvo das águas.

Jean-Baptiste Debret. Botica.

Manuel de Araújo Porto-Alegre, Sagração de D. Pedro II.

Augusto Müller, Retrato do arquiteto Grandjean de Montigny

Miguel Arcanjo B. A. Dutra, Festa do Divino.



A exuberante natureza do Brasil, em especial a do Rio de Janeiro com sua privilegiada situaēćo junto ą Baķa de Guanabara, desde muito cedo atraiu a admiraēćo de colonizadores e visitantes estrangeiros. A partir da abertura dos portos brasileiros ao comércio exterior, em 1808, inśmeros artistas, em sua maioria amadores, comeēaram a chegar ao paķs, muitos apenas de passagem, como o futuro grande pintor Edouard Manet, entćo jovem guarda-marinha. Outros para permanźncias mais ou menos duradouras. Conhecem-se hoje os nomes de muitas dezenas desses pintores, mas todos os dias os leilões londrinos ou novaiorquinos colocam ą venda topographical paintings ou aquarelas firmadas por nomes que pouco ou nada nos revelam. Sćo comerciantes, diplomatas, oficiais de marinha que, fascinados pelo cenįrio tropical, desejaram fixį-lo como souvenir. Quanto aos numerosos artistas de formaēćo profissional, ou tinham deixado suas pįtrias em busca de novos paķses, povos e costumes, assim enriquecendo a imaginaēćo e seu mundo-de-ideias, dentro da tradiēćo romāntica das viagens pitorescas, ou eram documentaristas engajados em missões cientķficas. Centenas de desenhos e aquarelas feitos in loco foram multiplicados graēas ą nova técnica da litografia e reunidos em įlbuns de estampas que conheceriam grande sucesso na Europa, avidamente disputados pelos colecionadores de exotismos.
O mais antigo desses artistas-viajantes, como entre nós ficariam conhecidos, parece ter sido o tenente holandźs Quirijn Maurits Rudolph Ver Huell. Forēado a permanecer vįrios meses em Salvador entre 1807 e 1810, na ocasićo executou diversas aquarelas do que logrou observar na velha cidade. Mais ou menos pela mesma época desembarcava no Rio de Janeiro o comerciante inglźs Richard Bate, cujas ingźnuas cenas aquareladas da vida na jovem Corte só seriam divulgadas em 1965, reunidas num įlbum litogrįfico.
O portuguźs Joaquim Cāndido Guillobel, chegado ao Rio em 1811, deixou numa série de desenhos um delicioso retrato da sociedade do Rio de Janeiro de comeēos do Séc. XIX. Sob muitos aspectos revelou-se, como dele escreveu Marques dos Santos, "mais palpitante do que Debret, mais original do que Rugendas".
Filho de um diplomata inglźs e oficial de Marinha, Henry Chamberlain chegou ao Rio em 1815, publicando sete anos depois na Inglaterra o įlbum Vistas e Costumes da Cidade e Arredores do Rio de Janeiro. Outro oficial de Marinha inglźs, Emeric Essex Vidal, de passagem em 1816 pelo Atlāntico Sul, publicou em 1820 o įlbum Ilustraēões Pitorescas de Buenos Aires e Montevideo, o qual nćo deixou de incluir algumas paisagens do Rio e suas imediaēões.
O Conde de Clarac esteve em 1816 no Brasil, tendo executado desenhos que Humboldt considerou a representaēćo mais fiel da natureza dos Trópicos. Muito mais importante do que ele, pintor de sólida formaēćo profissional, foi o austrķaco Thomas Ender, paisagista de grande sensibilidade que em 1817 integrou a comitiva da futura Imperatriz Leopoldina, documentando aspectos do Rio de Janeiro, Minas e S.Paulo em centenas de aquarelas e desenhos. Da mesma comitiva participou seu compatriota de menor fōlego Franz Josef Frühbeck, que em 1829 expōs em Viena pinturas feitas a partir dos guaches executados doze anos antes no Brasil.
Augustus Earle, que estudou na Royal Academy de Londres e foi amigo do célebre Turner, esteve trźs vezes no Brasil entre 1820 e 1832, na śltima a bordo do Beagle como desenhista da expediēćo cientķfica de Darwin. Sua obra de temįtica brasileira é mķnima - umas 20 aquarelas e desenhos conservados na Austrįlia, que se caracterizam pela finura da execuēćo, pelo senso de observaēćo e pelo cįustico humor (Coroaēćo de Dom Pedro I, por exemplo). Sćo de Augustus Earle vįrias ilustraēões do Diįrio de uma viagem ao Brasil e residźncia durante parte dos anos 1821, 1822 e 1823, de Maria Graham. Esta, em 1824-1825 se tornaria preceptora da princesinha Maria da Glória e mais tarde seria a autora de um clįssico da literatura infantil inglesa, Little Arthur History of England.
Membro de uma famķlia de artistas ativa em Augsburg desde os comeēos do Séc. XVII, o alemćo Johann-Moritz Rugendas partiu para o Brasil aos 19 anos, fascinado pelo que vira da natureza do paķs numa exposiēćo de Thomas Ender em Viena. Aqui ficou de 1821 a 1825, retornando para uma segunda permanźncia entre 1845 e comeēos de 1847 e também realizando diversas viagens por paķses da América, notadamente México e Chile. De grande operosidade, ao retornar definitivamente ą Europa, em 1847, levava mais de 3.000 aquarelas e desenhos do Novo Mundo, cedidos ao Rei Ludwig I da Baviera em troca de uma pensćo anual de 1.200 florins. Sua maior contribuiēćo ą História da Arte Brasileira é a Viagem Pitoresca ao Brasil, publicada em Paris em 1834 em versões alemć e francesa. Rugendas é sem dśvida o mais importante de todos os artistas-viajantes que passaram pelo Brasil, por sua execuēćo sintética, pela emoēćo que imprimiu ąs suas obras, o sensķvel colorido de suas paisagens e cenas de gźnero.
Charles Landseer acompanhou em 1825 ao Rio de Janeiro o diplomata inglźs Charles Stuart, de quem era pintor particular. Nos 345 desenhos e aquarelas que durante dois anos fez no Brasil, representou com sensibilidade paisagens, tipos e costumes do paķs. Eles só foram localizados em 1924, em poder de um descendente do diplomata. Em companhia de Stuart também esteve no Rio de Janeiro, em 1825 e 1826 o famoso botānico inglźs William John Burchell. Seu Panorama do Rio de Janeiro seria, na opinićo de Gilberto Ferrez, "nćo só o mais artķstico, como o melhor, pela perspectiva, absolutamente correta, e pelos detalhes arquitetōnicos finamente trabalhados". Da mesma época é um įlbum de litografias publicado em Londres em 1826, Cenas da Vida Portuguesa, no qual sćo ridicularizados com fina ironia os costumes luso-brasileiros de inķcios do Séc. XIX, como a cerimōnia do beija-mćo a Dom Joćo VI e a apresentaēćo de um castrato no Rio de Janeiro. O autor, que se assina com as iniciais APDG, nćo foi identificado.
O alemćo Karl Robert, Barćo de Planitz, chegou em 1832 ao Rio de Janeiro, onde faleceu ainda moēo, vitimado pela febre amarela. Homem de muitos talentos, foi desenhista, escultor, escritor, mśsico, arqueólogo, professor de linguas e heraldista, tendo deixado aquarelas do Rio e suas imediaēões, modelos de uniformes militares, atlas herįldicos e outros.
Paulo Harro-Harring permaneceu alguns meses no paķs em 1840, a serviēo do periódico antiscravagista O Colonizador Africano, com a missćo de documentar em desenhos a situaēćo dos escravos no Brasil. Entre os desenhos entćo realizados, que revelam um artista apenas discreto, 24 integram o įlbum Cenas Tropicais do Brasil, só publicado em 1965. Em 1840 chegou ao Brasil o excelente paisagista e fotógrafo, o suķēo Abraham-Louis Buvelot, que entre 1842 e 1844 publicaria, em colaboraēćo com Louis-Auguste Moreau, o Rio de Janeiro Pitoresco, série de litografias que conheceu grande sucesso. Buvelot tencionava permanecer em definitivo no Brasil, mas acometido de malįria regressou em 1852 ą Suķēa, de onde partiu em 1864 para a Austrįlia, ali falecendo.
O francźs Quinsac de Monvoisin desembarcou no Rio de Janeiro em 1847 após ter trabalhado no Chile, e pouco se demorou no Brasil, onde obteve grande sucesso o seu Retrato do Imperador Pedro II mostrado na Exposiēćo Geral de Belas Artes. Foi bom paisagista e pintor de costumes. Fecharemos a presente relaēćo com Ferdinand Krumholz, que nasceu na Morįvia, estudou em Roma e Paris e entre 1848 e 1853 se tornou, no Rio de Janeiro, um dos retratistas prediletos do Império.

Richard Bate, Arcos e Santa Teresa

Joaquim Cândido Guillobel, Negro vendedor.

Johann-Moritz Rugendas, Numa fazenda.

Quinsac de Morvoisin, Igreja da Glória.



Em meados do Séc. XIX o Rio de Janeiro, com 400.000 habitantes, era a cidade mais importante da América Latina, "capital opulenta de uma civilização exclusivamente agrícola", como a definiu Charles de Ribeyrolles. A prosperidade econômica propiciada pelo café e a estabilidade política que se seguira à última rebelião ocorrida no Império, em 1848, tinham levado o Brasil a elevado grau de desenvolvimento artístico e cultural. Para isso muito contribuiu a atuação pessoal do Imperador Dom Pedro II, um sincero e incansável incentivador das letras, das artes e das ciências. Ao mesmo tempo, os ensinamentos ministrados, havia algumas décadas, na Academia Imperial de Belas Artes, começavam a produzir seus melhores frutos. Com prêmios de viagem conquistados nos concursos anuais da Academia ou nas Exposições Gerais de Belas Artes, quando não outorgados pelo próprio monarca, diversos artistas brasileiros puderam aperfeiçoar-se na Europa, principalmente em Paris. Mas não prestavam maior atenção nos movimentos que então propunham a renovação das artes, até porque os prêmios que lhes tinham sido conferidos implicavam na estrita obediência a uma série de rígidos procedimentos quanto aos mestres e museus a frequentar, métodos de ensino a seguir, roteiros de viagem e mesmo quanto às obras de arte que deveriam produzir. Exemplo claro disto é a severa vigilância que, a partir do Rio de Janeiro, Porto-alegre exercia sobre seu jovem discípulo Vítor Meireles, que estava em Paris.
Mesmo com todas essas precauções, nossos artistas, ao visitarem as Exposições Universais que desde 1855 e a intervalos aproximados de 11 anos eram realizadas em Paris, cada uma delas compreendendo também enormes exposições de pintura, escultura e artes decorativas, começavam confusamente a perceber que a arte não se congelara em começos do Séc. XIX. Ao contrário, continuava seu curso, renovada de tempos em tempos por novos tipos de visão e sensibilidade. Ao regressarem ao Brasil, traziam alguma forma de inquietação, alguma nova idéia ou informação que logicamente acabariam por repercutir em sua produção artística, pelo menos até que a indiferença ou o reacionarismo do meio os forçasse a mudar de rumo e retomar o conservadorismo inicial. Por isso, longe do Brasil, desfrutando de seus prêmios ou simplesmente de passagem pela Europa, nossos pintores se revelavam mais ousados e abertos às novas tendências. Na volta da viagem voltavam a ficar submissos ao marasmo tradicional.
A Exposição Universal de 1855 pusera um ponto final no confronto entre os adeptos do Neoclassicismo de Ingres e os seguidores de Delacroix e do Romantismo, com a vitória dos últimos. Courbet, cujas obras tinham sido rejeitadas pelo júri, armou a pouca distância do recinto da mostra, em sinal de protesto, o Pavilhão do Realismo. Na Exposição seguinte, de 1867, o vilão de 1855 passara a heroi. Courbet e o Realismo se impunham, ao mesmo tempo em que os Pré-Rafaelitas ingleses começavam a despertar admiração. Dessa vez, porém, Manet é quem fora cortado e, inconformado, expunha num pavilhão improvisado. Já a Exposição Universal de 1878 marcaria o início da consagração de Manet e do Impressionismo. A de 1889, o triunfo do Simbolismo, e a de 1900, a hegemonia do Art Nouveau. Nas três últimas, na condição de expositores, estavam presentes, pintores brasileiros. Augusto Rodrigues Duarte na de 1878. Vítor Meireles, Henrique Bernardelli e Manuel Teixeira da Rocha na de 1889. Pedro Américo, Pedro Weingärtner e Eliseu Visconti na de 1900. Outros artistas nacionais, de passagem por Paris por ocasião das Exposições Universais ( exemplo de Décio Vilares em 1878, Belmiro de Almeida em 1889 e Pedro Weingärtner em 1900) podem também tê-las visitado e assim tomado ciência das tendências estéticas ali reveladas, mesmo sem as aceitarem. Pode dizer-se, como norma quase geral na segunda metade do Séc. XIX, que nossos pintores possuíam um lastro acadêmico comum a todos, porque plasmado pelo tipo de ensino ministrado na Academia Imperial de Belas Artes e reforçado na École des Beaux-Arts parisiense. Mas a ele acrescentaram ingredientes estilísticos românticos, realistas, impressionistas, simbolistas e do Art Nouveau, sendo por conseguinte generalização inaceitável tentar defini-los simplesmente como acadêmicos.
Em meados do Séc. XIX os artistas ainda priorizavam a pintura de história, aí compreendidos temas históricos propriamente ditos e mais assuntos religiosos, literários ou mitológicos; vinha em seguida a figura humana - retrato, nu, alegoria - e só depois a pintura de gênero, a paisagem, a marinha, e enfim a natureza-morta. Ser pintor de história, como Vítor Meireles ou Pedro Américo, era poder dominar, do topo da hierarquia das artes, todos os demais gêneros pictóricos. Algo assim como em música um compositor sinfônico. Menor importância era concedida aos paisagistas, e mínima aos pintores de flores e naturezas-mortas, desdém que decerto explica porque paisagens e naturezas-mortas só tardiamente ocorrem na pintura oitocentista brasileira. A Guerra do Paraguai, entre 1864 e 1870, proporcionou a Vitor Meireles, Pedro Américo e De Martino temas que eram pretextos para a glorificação do Império. É triste constatar que, ao contrário do que aconteceu na literatura e mesmo na música, o problema da escravidão negra ( que só seria resolvido às vésperas da República) não mereceu qualquer condenação por parte de nossos pintores. Fingiram ignorá-lo, certamente porque dependiam estreitamente de uma clientela formada em sua maior parte por intransigentes escravocratas.
Escrevendo em 1915 acerca da atividade artística nos quase 50 anos que medeiam entre a Maioridade e a queda do Império, dizia Araújo Viana que, para estudá-la, "bastava tomar como elemento inicial ou fundamental a efígie do imperador menino, adolescente, imberbe, com pouca barba, completamente barbado, e encanecido; o imperador, em todos os tempos, com todas as idades.... representado com a indumentária magestática ou imperial, uniformizado de almirante ou generalíssimo, de casaca preta ou sobrecasaca; o sr. D. Pedro II de perfil ou não, em busto, em pé, sentado ou a cavalo".
Mas o prestígio do retrato estendia-se para muito além da figura do Imperador. Faziam-se retratar todos, da Família Imperial aos nobres e plebeus, militares e prelados, desembargadores e comerciantes, o que aliás atraiu também a nosso país bom número de razoáveis retratistas estrangeiros, inclusive fotógrafos. Representava-se a mulher, por vezes sob a forma de alegorias. Cenas de gênero, paisagens, marinhas e naturezas-mortas também surgem na pintura brasileira da segunda metade do Séc. XIX, embora não sejam tão numerosas nem despertem maior entusiasmo.
Contra tal cenário é se desenvolveu a atividade de Vítor Meireles, Zeferino da Costa, Pedro Américo e Almeida Júnior, entre muitos outros.

José Wasth Rodrigues, Uniforme militar do final da monarquia.

Pedro Weingärtner, Paisagem.

Pedro Américo de Figueiredo e Melo, Fausto e Margarida.

Augusto Rodrigues Duarte, Cascata da Tijuca.

Vitor Meireles, Batalha Naval do Riachuelo.

Molheira com Prato da Imperatriz D. Amélia de Leüchtenberg,
segunda mulher de D. Pedro I.
Pedro Weingärtner,

Embaixatriz Maria Luisa Magalhães de Azeredo.

D. Pedro II, litografia de Marvin Lavigne.


11. A Virada dos Séculos

Para avaliar as transformações por que passou a pintura brasileira após a Semana de Arte Moderna de 1922 e entender plenamente quanto havia de inovador e revolucionário nas exposições de Segall em 1913 e principalmente de Anita Malfatti em 1917, torna-se necessário, antes, traçar um cenário do que era essa pintura nos anos finais do Séc. XIX e nas duas décadas inaugurais do Séc. XX. Não para repisar o quanto possuía de conformismo, ao contrário, para lhe ressaltar os lampejos de modernidade que muitas vezes acusou, e que não têm merecido o devido destaque. É inegável que mesmo nossos melhores historiadores e críticos de arte habituaram-se a ver na pintura brasileira anterior a 1922 um bloco monolítico. Enfeixam genericamente sob a denominação apressada de acadêmicos, artistas das mais diversas tendências estilísticas, desde os acadêmicos propriamente ditos aos que sentiram a sedução ou o impacto do Impressionismo e do Pontilhismo, do Simbolismo e do Art Nouveau.
O período entre a Proclamação da República e a Semana de 1922 foi de intensa efervescência cultural. Não apenas no que respeita às artes visuais e à arquitetura, também nos domínios da música e da literatura. Em música, por exemplo, poderiam ser destacados nomes como os de Leopoldo Miguez (1850-1902), cuja ópera wagneriana Saldunes, de 1901, possui libreto do pintor e poeta simbolista Heitor Malaguti; Glauco Velasquez (1884-1914), marcado por Wagner e César Franck; Henrique Oswald (1852-1931), influenciado por Fauré e pai do pintor Carlos Oswald; Francisco Braga (1868-1945), aluno de Massenet e mais tarde wagneriano convicto, contemporâneo do pintor Batista da Costa no Asilo dos Menores Desvalidos do Rio de Janeiro; Barroso Neto (1881-1941); Luciano Gallet (1893-1931), que sentiu o impacto de Darius Milhaud e Debussy; ou o também wagneriano Alberto Nepomuceno (1864-1920). Entre os poetas e prosadores poderiam ser citados, entre muitos outros, Henrique Coelho Neto (1864-1934) e Graça Aranha (1868-1931), que ocupariam posições antípodas na disputa estética que se seguiria à irrupção do Modernismo em 1922. O primeiro autodefinindo-se o último dos Helenos, e Graça Aranha dando seu aval aos jovens participantes da Semana de Arte Moderna e inclusive rompendo em 1924 com a Academia Brasileira de Letras que ajudara a fundar; Alphonsus de Guimarães (1870-1921), Lima Barreto (1881-1922), Monteiro Lobato (1882-1947), Augusto dos Anjos (1884-1914), Adelino Magalhães (1887-1969), Raul de Leoni (1895-1926) ou Manuel Bandeira (1886-1962), não o Bandeira de Ritmo Dissoluto, mas o poeta ainda simbolista de A Cinza das Horas. Esses músicos e escritores são correspondentes aos pintores de que nos ocuparemos, alguns permeáveis às novas tendências e formas de expressão, outros recusando-se até a examiná-las, encaramujados em suas velhas fórmulas.
No dia 1º de janeiro de 1901, iniciando-se o Séc. XX, viviam ainda, e produzindo, quase todos os pintores brasileiros da segunda metade do Séc. XIX formados técnica, estilística e ideologicamente à sombra da Academia Imperial de Belas Artes. Inclusive três dos quatro principais: Vítor Meireles (f. 1903), Pedro Américo (f. 1905) e Zeferino da Costa (f. 1916), devendo observar-se que o quarto, Almeida Júnior, fora assassinado em 1849 aos 49 anos de idade. Apenas três dias antes do novo século morria o marinhista Castagneto; um ano antes, em 1899, Gonzaga Duque, pela boca de um dos personagens de seu romance Mocidade Morta insurgia-se contra "os estafados preceitos do academismo, o sistema métrico das concepções guiadas, os dogmas estéticos do ensino oficial". Em palavras contundentes passava o atestado de óbito da pintura brasileira, que via subordinada ainda aos "arcaicos processos onânicos da pintura friccionada, esbatida e raquítica, sem nervos, sem sangue, sem alma!" Embora não o dissesse expressamente, o crítico indicava aos pintores nacionais o Impressionismo como um caminho válido, o que não deixa de ser desconcertante partindo de um simbolista de primeira hora, e até porque no momento em que publicou seu romance o Simbolismo constituía um movimento bem mais avançado que o Impressionismo. Apesar de que ainda continuavam em atividade alguns dos impressionistas históricos, inclusive seu grande criador Claude Monet, só falecido em 1926. Também se esvaziara, havia muito, o Neo-Impressionismo, que se revelara incapaz de sobreviver à morte prematura de seu grande criador Georges Seurat. Seu princípio básico da mistura ótica das cores aplicadas em pequenos toques do pincel transformara-se num mero recurso de métier à disposição de artistas de todas as tendências.

Impressionismo à Brasileira
Nos anos finais do Oitocentos e começos do Séc. XX poucos pintores brasileiros da geração nascida no último terço do Séc. XIX começaram a produzir obras quando não impressionistas, ao menos fieis àquilo que entendiam ser o Impressionismo. A introdução desse estilo no Brasil fez-se portanto tardiamente, no momento em que na França começavam a surgir as primeiras obras fauves e cubistas. Se levarmos em conta que fora de França o Impressionismo e o Neo-Impressionismo só lograriam impor-se mais ou menos pela mesma época em que se manifestaram em nosso país, ver-se-á que a contribuição de artistas como Visconti, Rafael Frederico, Lucílio e Georgina de Albuquerque, Carlos Oswald e poucos mais não foi assim tão defasada a nível internacional. Mais ou menos da idade de Visconti, que nasceu em 1866, eram muitos dos precursores não-franceses do Impressionismo em seus respectivos países. Por exemplo, o italiano Plinio Nomellini (1866-1943), o alemão Max Libermann (1867-1935), o russo Valentin Serov (1865-1911), o canadense James Wilson Morrice (1865-1911), o mexicano Joaquín Clausell (1866-1935) ou o argentino Martin Malharro (1865-1911). Ainda mais moços que ele, e praticando um Impressionismo à francesa ou mesclado a tendências locais foram o belga Henri Evenepoel (1872-1899), o alemão Max Slevogt (1868-1932), os uruguaios Pedro Blanes Viales (1879-1926) e Miguel Carlos Victorica (1884-1955), o argentino Fernando Fader (1879-1935) e o venezuelano Armando Reverón (1889-1954). Visconti não foi decerto o primeiro impressionista latino-americano, pioneirismo que talvez caiba ao venezuelano Emilio Boggio (1857-1920), discípulo de Henri Martin e amigo de Pissarro e de Sisley, talvez ao também venezuelano Rojas (1858-1898), quem sabe ao argentino Eduardo Sívori (1847-1918), todos eles já impressionistas na década final do Séc. XIX. Contudo Visconti foi um dos primeiros pintores da América Latina a incorporar à paleta recursos impressionistas, e também seria dos primeiros a flertar com Simbolismo e a aplicar a gramática do Art Nouveau a seu incipiente desenho industrial.
Por volta de 1914, no Brasil, como em toda a América Latina e decerto em todo o mundo ocidental, raros eram os artistas que não tinham sentido com força maior ou menor o impacto do Impressionismo. Entretanto, ao menos entre nós, poucos possuíam uma noção precisa do estilo. A tal respeito é elucidativa a confusa resposta que Georgina de Albuquerque deu a Angyone Costa quando indagada - em 1927! sobre o tipo de arte que vinha fazendo: "É uma feição moderna, alguma coisa de novo em pintura. Foge inteiramente aos moldes preestabelecidos. É tudo quanto há de mais movimentado, mais ensolarado, menos calculado e medido. Eu pinto a natureza, pelas sugestões que ela me causa, pelos arroubamentos que me provoca e, como tal, não posso ficar hierática e solene ante os imperativos que ela em mim produz. Depois, amo a figura humana. Vou pela praia, encantada pela paisagem; deparo-me com uma criança, enterneço e me desinteresso pelo ambiente em redor. A minha sensibilidade é presa da graça, do movimento, da vibração infantil. O Impressionismo, como eu o pinto, é novo aqui e não deixou de encontrar resistências, logo que comecei a fazê-lo".
Na verdade, a despeito de sua diluição, ainda havia entre nós quem encarasse com reservas a solução pontilhista dada por Visconti às decorações do foyer do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, iniciadas em 1913 e que bem podem ter sido o canto-do-cisne daquela tendência a nível internacional.

Simbolismo e Art Nouveau
Por volta de 1900 tanto o Simbolismo quanto o Art Nouveau já tinham sido assimilados por bom número de artistas. Não apenas em França , também no resto da Europa e nas Américas. Entre nós, coube talvez a Rodolfo Amoedo (1857-1941) o pioneirismo na adoção de uma temática e de um mundo-de-ideias simbolistas, pois fora aluno de Puvis de Chavannes na École des Beaux-Arts de Paris entre 1880 e 1887. Composições como Jesus em Cafarnaum, A Partida de Jacob e principalmente Narração de Filetas não escondem quanto Amoedo deveu ao pintor de Pauvre Pêcheur e das decorações de Santa Genoveva. Na década de 1890 Visconti seria fortemente marcado pelo Simbolismo em obras como Gioventù, Oréades, Recompensa de São Sebastião ou Sonho Místico, sentindo paralelamente o impacto do Art Nouveau, (era discípulo de Grasset) em trabalhos de cerâmica, ex-libris, selos e cartões postais.
Existem alguns pontos obscuros quanto à permanência de Visconti em França, entre 1893 e 1900. De acordo com informação prestada oralmente por seu genro Henrique Cavalleiro ao crítico de arte Flávio Motta, Visconti teria mantido contacto pessoal com Gauguin. Este, chegado de sua primeira viagem à Polinésia, permaneceu em Paris de abril de 1893 a meados de 1895. Terá mesmo Visconti conhecido o grande pintor? Tê-lo-á visitado no exótico ateliê da Rue Vercingétorix, onde imperava Annah-la-Javanaise entre macacos e papagaios? Custa crer. De qualquer modo, na arte de Visconti nenhum traço ficou desse possível encontro .
Passariam mais tarde por fases simbolistas mais ou menos duradouras pintores como o espanhol Francisco Puyg Domenech Colom (1868-1937), chegado ao Brasil por volta de 1915; Maurício Jubim (1875-1923), amigo fraterno de Cruz e Souza, autor de pinturas e de sonetos pelos quais perpassam "angelicais purezas", "lívidos perfis" e "fugidias visões" muito à maneira de Eugène Carrière; Eugênio Latour (1874-1942), também marcado pelo Art Nouveau e um dos artistas contratados para a decoração do Pavilhão do Brasil na Exposição de Turim de 1911, considerada o momento conclusivo do Art Nouveau internacional. Os demais artistas da representação brasileira eram Rodolfo e Carlos Chambelland, João e Artur Timóteo, Carlos Oswald, Manuel Madruga, Leopoldo Gotuzzo e Eduardo Sá ; Lucílio de Albuquerque (1877-1939), autor de O Despertar de Ícaro, motivado pelo vôo pioneiro de Santos Dumont em 1906, ao qual assistiu, e também de Prometeu, O Beijo e algumas outras obras produzidas em França até 1911; Helios Seelinger (1878-1965), aluno de Frans von Stuck na Academia de Munique entre 1897 e 1900, ao tempo em que a freqüentavam Kandinsky, Klee e Frans Marc; e Miguel Capplonch (1882-1963), simbolista típico na mocidade, em obras como Os três beijos, Salomé ou Salambô. O pequeno número de pintores brasileiros influenciados pelo Simbolismo contrasta agudamente com a impressionante quantidade dos nossos poetas simbolistas. Na verdade, só tivemos um único pintor autênticamente simbolista no Brasil, e êsse foi Heitor Malaguti. Quanta a pinturas simbolistas, tivemos muitas.
O caso especial de Helios Seelinger não pode ser plenamente entendido senão em função de sua aprendizagem inicial na Alemanha, continuada em Paris após 1903. Em seus melhores trabalhos há marcas evidentes do Jugendstill, absorvidas ao tempo de sua maior intensidade em Munique. Além de influências as mais díspares, de Böcklin e Hans Thoma a Max Klinger e Frans von Stuck, a Félicien Rops, Steinlen e Forain. O próprio Selinger, quando entrevistado em 1927 por Angyone Costa, assim se definiu:
-De Stuck recebi a influência panteísta, que é fácil descobrir nos meus trabalhos. O misticismo, revelado nos meus estudos de ateliê, desenvolveu-se fortemente, ao influxo do idealismo alemão. As lendas da Germânia, os cantos e narrações populares dos barqueiros do Reno, o folclore da Floresta Negra, tão rico de tons pela frescura de seus poemas, os rapsodos que enchem uma página viva da literatura e da tradição alemãs, recortaram definitivamnte o perfil de minha obscura personalidade. Saí isto que sou, da longa aprendizagem alemã. O meu espírito, que denunciava, ao partir do Brasil, a maneira especial que define a minha arte, desenvolveu-se integralmente dentro do espiritualismo germânico e tomou essa feição que vou conduzindo comigo.
Ao retornar de Munique em 1902, Helios Seelinger realizou no Rio, na sede da revista O Malho, uma exposição que suscitou tamanha indignação nos setores mais conservadores, acostumados à pintura bem-comportada então em voga, que não faltou quem o chamasse de desequilibrado, antecipando em 15 anos o autor de "Paranoia ou Mistificação". A modernidade de Seelinger foi mal-entendida inclusive pelos defensores de sua pintura, como M. Nogueira da Silva. Em artigo de 1926,este alude ao seu desenho "não raro informe", à sua maneira "de um demoníaco doentio... tocando em mais de um ponto as raias da loucura". Não por acaso Seelinger seria dos primeiros a reconhecer o talento do jovem Victor Brecheret, a quem certo dia, em companhia de Di Cavalcanti e Menotti del Picchia, encontrou trabalhando no Palácio das Indústrias de São Paulo, pelos idos de 1919 ou 1920.

Entre Tradição e Renovação
O contacto com as novas tendências artísticas foi obviamente mais fácil para os artistas brasileiros que já residiam em Paris, como Belmiro de Almeida. Ou em centros culturais como por exemplo Bruxelas, onde desde 1898 se fixara Henrique Alvim Correa (1876-1910). Não bastava simplesmente morar fora do Brasil para assimiliar os estilos emergentes da arte europeia da época, como comprovam os casos de Pedro Américo e Pedro Weingärtner. Residindo longos anos respectivamente em Florença e em Roma, estes nunca chegaram a aperceber-se dos novos movimentos estéticos que se desenvolviam não longe de suas vistas. Se acaso o fizeram, não lhes concederam a menor importância, preferindo quedar-se cômodamente atados ao seu próprio passado. O caso de Belmiro de Almeida é conhecido. Realizou em Dampierre, entre 1912 e 1920, várias paisagens pontilhistas, do mesmo modo que em 1921 -e de pura brincadeira- pintou à maneira futurista pelo menos uma obra, Mulher em Círculos. Quanto a Alvim Correa, mudando-se com a família ainda menino para a Europa, foi aluno de Edouard Detaille em Paris. Inicialmente pintava assuntos militares, como o mestre, mas mudando-se para Bruxelas (onde faleceria aos 34 anos) na capital belga desenvolveu a parte mais importante de sua carreira, produzindo principalmente aquarelas, desenhos e aguafortes marcadas por Forain e Rops, Valloton e Steinlen. Há uma curiosa dicotomia no fazer artístico de Alvim Correa, que quanto pintava mantinha-se próximo à tradição, dela se libertando para assumir postura mais ousada e moderna ao desenhar. Sua extraordinária fantasia e seu domínio técnico podem ser melhor aquilatados pelas ilustrações que fez em 1905 para a edição belga de A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells, ou pelos numerosos desenhos eróticos produzidos nos primeiros anos do Séc. XX, entre os quais decerto se situam algumas obras-primas do gênero em todos os tempos.
O caso de Navarro da Costa (1883-1931) é diferente. Pintor de marinhas, iniciou sua carreira na esteira de Castagneto. Tendo ingressado em 1914 no serviço diplomático, teve a oportunidade de sentir o impacto da arte moderna nas cidades em que serviu como cônsul, como Paris e Munique, chegando ao fim da vida a utilizar-se de uma paleta quase fovista. O interesse de Navarro da Costa pelas novas tendências ficaria também patenteado em 1924, quando organizou a vinda ao Brasil de uma missão de intercâmbio cultural que realizou com sucesso exposições de arte e de arte decorativa alemãs no Rio de Janeiro, São Paulo, Campinas e Santos.
No fim da vida, e à medida em que seu espírito declinava (ele falceu ainda moço, no Hospício dos Alienados do Rio de Janeiro), Artur Timóteo da Costa (1882-1923) produziu paisagens e marinhas nas quais críticos conservadores, como Acquarone e Queirós Vieira, não viram senão "alucinações de cores e de tintas berrantes". Em obras como Docas do Velho Mercado, de 1920, Artur Timóteo antecipa, de certa forma, pinturas que 15 anos mais tarde José Pancetti realizaria no Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro ou em suas imediações.
Rodolfo Chambelland (1879-1967), mais sensível, e seu irmão Carlos Chambelland (1884-1950), mais expressivo, também apontam para o futuro, principalmente Carlos nos óleos em que representou cenas e tipos de vaqueiros e sertanejos, produzidos durante uma permanência no Nordeste. Rodolfo, que foi um dos professores de Portinari, se não chegou a praticar ele próprio a arte moderna, mas quando muito um pontilhismo meio fora de moda em obras como Baile à Fantasia, ao menos não se alinhou entre os que a acusavam de charlatanice, como se depreende das seguintes palavras, proferidas em 1927:
-Todas as tentativas de arte futurista, que se geram, presentemente, são úteis elementos determinados pelo espírito novo. O cubismo é perfeitamente honesto. Os artistas que o fazem são dignos do maior acatamento, do maior respeito. É um erro julgá-los exibicionistas ou temperamentos dados ao escândalo, que fazem arte pour épater. Procuro praticar a pintura moderna como o meu temperamento a sente, e seria repudiar o meu trabalho enfileirar-me entre os que combatem a pintura nova, como todas as tendências novas, do espírito novo.
Em Carlos Oswald (1882-1971), mesclam-se influências impressionistas, pontilhistas e do Art Nouveau, além de ter sido o pioneiro da gravura de arte no Brasil. Guttmann Bicho (1888-1955), morou em Paris entre 1922 e 1924, quando sofreu o impacto de um tardo pontilhismo e de um japonismo que pelos próximos anos iria marcar sua pintura. Emílio Cardoso Ayres (1890-1916), extraordinário caricaturista mundano e pintor de figuras que lembram as de van Dongen, são mais três artistas nascidos no século passado que em certos momentos se aproximam da modernidade. Quanto a Henrique Cavalleiro (1892-1975), foi sucessivamente impressionista e neo-impressionista antes de em Paris, em 1920, descobrir Cézanne e os fovistas. A partir daí adotou em sua pintura o rigor construtivo do primeiro e a truculência cromática destes.

Almeida Júnior, Descanso do modelo.

Eliseu Visconti, Jardim do Luxemburgo, Paris.

Georgina de Albuquerque, No verão.

Rudolfo Amoedo, Jesus em Carnafaum

Eliseu Visconti, Gioventú

Helios Aristides Seelinger, Luta pela vida.

Navarro da Costa, Marinha.

Artur Timóteo da Costa, Cigana.


12. A Semana de Arte Moderna

A Semana de Arte Moderna de 1922 não aconteceu subitamente. Pelo contrário, foi preparada aos poucos, desde a primeira década do século, por uma sucessão de acontecimentos. Em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, em agosto de 1910, perante uma platéia que incluía Ruy Barbosa, Olavo Bilac, Coelho Neto e outras celebridades nada propensas a novidades, o jornalista e escritor carioca João do Rio (1881-1921), que aliás exerceu a crítica de arte e em suas crônicas sobre os Salões de 1899 a 1901 apoiou com determinação jovens valores, como Visconti e Seelinger. Ao mesmo tempo em que desancava figuras consagradas como Amoedo ou Bernardelli, teve estas palavras surpreendentes, reveladoras de sua familiaridade com os conceitos e idéias contidos no Manifesto Futurista de Marinetti, divulgado meses antes em Paris:
- A paisagem com a vegetação dos canos das usinas, as sombras fugitivas dos aeroplanos, a disparada dos automóveis, os oceanos desventurados pelos submarinos obrigam o artista a sentir e ver doutro modo, amar doutra forma, reproduzir doutra maneira... A aspiração dos artistas novos seria a de fixar através da própria personalidade o grande momento de transformação social de sua pátria na maravilha da vida contemporânea; a de refletir a vertiginosa ânsia de progresso; a de gravar o instante em que os velhos sonhos afundam, com todas as superstições de outrora, inclusive a moral, na eclosão de uma vida frenética e admirável!
Três outras ocorrências isoladas iriam aplainar em seguida o caminho para a Semana de 1922: a exposição de Lasar Segall em São Paulo e Campinas, em 1913; a mostra de Anita Malfatti em São Paulo, em 1917; e a revelação de Brecheret, descoberto em 1920 por um grupo de artistas e intelectuais quando trabalhava no Pavilhão das Indústrias, também em São Paulo.

As exposições de Segall
Em 1913 um jovem pintor lituano recém-chegado ao Brasil, Lasar Segall (1891-1957), expunha primeiro em São Paulo, e logo em Campinas, uma série de obras de tipo até então desconhecido entre nós, nos quais o tema ou assunto importava menos que a expressão. Na pintura brasileira prevalecia até então o assunto. Passível de ser traduzido em palavras, participava assim da natureza da Literatura, a arte nacional por excelência. Na verdade, a grande maioria dos que na época escreviam sobre arte apenas descreviam em belas frases o assunto das obras. A estética oficial era rasteira: o artista tinha de reproduzir com a maior fidelidade possível o modelo que tinha ante si. Dessa estética simplória derivava uma crítica superficial, cujo método consistia em tentar reduzir a palavras pinturas e esculturas. Esse tipo de crítica, compreensivelmente reservado a escritores como Gonzaga Duque e Coelho Neto, produzia efeitos toleráveis quando se visava analisar obras como A Primeira Missa no Brasil, O Voto de Heloísa ou O Último Tamoio. Revelava-se, porém, pouco eficaz ante as paisagens de Antônio Parreira, as marinhas de Castagneto ou as naturezas-mortas de Estêvão Silva, e totalmente inaplicável às pinturas de Segall. Como o próprio artista esclareceu anos depois numa entrevista, sua exposição de 1913 em São Paulo apresentava "algumas experiências típicas da arte expressionista, ao lado de obras de um modernismo mais moderado". Apadrinhado pelo Senador Freitas Vale, Segall obteve o polido registro da conservadora crítica paulistana da época. Nestor Rangel Pestana, em O Estado de S. Paulo, observava que "todos os seus trabalhos, de uma técnica moderna e às vezes ousada, têm uma nota de sinceridade, que impressiona muito favoravelmente e que os torna dignos da atenção do público". Muito mais perspicaz foi Abílio Álvaro Miller, que no Correio de Campinas classificou Segall como "um pintor de almas". Não há dúvida que pertence a Segall a precedência histórica na introdução em nosso país de pinturas que já se poderiam talvez denominar modernas. O fato é que sua dupla mostra pioneira não chegou a causar sensação ou muito menos escândalo, nem teve a capacidade de aglutinar em torno do expositor os artistas mais novos: tudo isso teria porém a individual da jovem pintora paulistana Anita Malfatti, quatro anos mais tarde.
Paranoia ou Mistificação?
Em dezembro de 1917, na Rua Liberó Badaró da capital paulista, Anita Malfatti (1889-1964), recentemente retornada de uma viagem de estudos aos Estados Unidos da América, inaugurava uma exposição de 53 obras, entre pinturas, desenhos, gravuras e caricaturas. Estavam expostas na ocasião telas hoje célebres, como O Homem Amarelo, Mulher de Cabelos Verdes, A Estudante Russa e várias outras. Se por um lado atestavam a modernidade da artista e o quanto lucrara com sua permanência em Berlim, Paris e Nova York, por outro contrastavam agudamente com o rastaquerismo cultural então vigente no Brasil. A exposição chegou a ter sucesso comercial, com onze obras vendidas. Já do ponto de vista crítico, ao lado de umas poucas notinhas favoráveis, motivou a Monteiro Lobato o longo artigo "A Propósito da Exposição Malfatti", publicado em O Estado de S. Paulo de 20 de dezembro de 1917 e que logo se tornaria conhecido sob o título Paranoia ou Mistificação. No seu parágrafo inicial afirma que "nada é mais velho do que a arte anormal ou teratológica: nasceu com a paranoia e com a mistificação".
Hoje é difícil entender porque o autor de Urupês, êle próprio escritor pré-modernista, emitiu acerca de Malfatti (e de modo mais amplo sobre a arte moderna) conceitos tão reacionários e estreitos. A menos que se observe, como Sérgio Milliet, que sua crítica de arte baseava-se "na concepção primária de uma pintura fotográfica, de uma escultura naturalística". Ou, como notou Gilberto de Mello Kujawski, que sua tomada de posição "pode ser interpretada como a reação indignada de um literato puro-sangue, face a face com um novo tipo de criação plástica destituído de qualquer referência literária". No seu artigo, Lobato dividia os artistas em duas grandes categorias, "uma composta dos que vêem normalmente as coisas e em consequência disso fazem arte pura, guardando os eternos ritmos da vida". E a outra "formada pelos que vêem anormalmente a natureza, e interpretam-nas à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica das escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva, ...... produtos do cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência........., frutos de fim de estação, bichados ao nascedouro". A seguir sustentava serem todas as artes "regidas por princípios imutáveis, leis fundamentais que não dependem do tempo nem da latitude", e que "as medidas de proporção e equilíbrio, na forma ou na cor, decorrem do que chamamos sentir. Quando as sensações do mundo externo transformam-se em impressões cerebrais, nós sentimos: para que sintamos de maneira diversa, cúbica ou futurista, é forçoso ou que a harmonia do universo sofra completa alteração, ou que o nosso cérebro esteja em panne por virtude de alguma grave lesão". Não chegava a negar valor a Malfatti, em quem reconhecia "um talento vigoroso, fora do comum". O que o indignava era vê-la trilhar a "má direção" que lhe torcera a obra: "Seduzida pelas teorias do que ela chama arte moderna, penetrou nos domínios de um impressionismo discutibilíssimo, e põe todo o seu talento a serviço duma nova espécie de caricatura. Sejamos sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e tutti quanti não passam de outros tantos ramos da arte caricatural". E apresentava à pintora, como exemplos a serem seguidos e modelos de excelência, Rodin e André Zorn, o obscuro Frank Brangwyn, a quem chama de "gênio rembrandtesco". E o pintor de lolitas açucaradas Paul Chabas, "mimoso poeta das manhãs, das águas mansas e dos corpos femininos em botão"!
O artigo de Lobato produziu efeitos díspares: aglutinou em torno de Anita todos os novos pintores e intelectuais, transformando-a no que Mário da Silva Brito anos mais tarde chamou de "o estopim do Modernismo". Por outro lado, abalou profundamente a pintora, fazendo-a duvidar dos próprios méritos a ponto de em sua próxima exposição, em 1921, ter causado em Mário de Andrade "a impressão duma artista que tivesse perdido a sua própria alma". Malfatti continuaria pintando pelo resto da vida, e chegou a participar inclusive da Semana de Arte Moderna. Perdera contudo o élan e a criatividade iniciais, contentando-se doravante em praticar uma arte mais bem-comportada e discreta. Para Menotti del Picchia, que a incluiu em nosso martirológio artístico, ela tornara-se "uma espécie de santa da ala demoníaca dos reformadores. Seu nome traz o prestígio dos taumaturgos e dos renegados".

A Semana de Arte Moderna
Em 29 de janeiro de 1922 o Correio Paulistano noticiava a realização, entre 11 e 18 de fevereiro, de uma Semana de Arte a realizar-se no Teatro Municipal de São Paulo com a participação de escritores, músicos, artistas e arquitetos de São Paulo e do Rio de Janeiro. Conforme a notícia, a Semana, organizada por intelectuais das duas cidades, Graça Aranha à frente, tinha por meta dar ao público paulistano "a perfeita demonstração do que há em nosso meio em escultura, arquitetura, música e literatura sob o ponto de vista rigorosamente atual". Do comitê patrocinador faziam parte entre outros Paulo Prado, Alfredo Pujo, René Thiollier e José Carlos de Macedo Soares. Entre os participantes de presença anunciada figuravam músicos como Villa-Lobos, Ernani Braga e Frutuoso Viana, escritores como Mário de Andrade, Ronald de Carvalho, Álvaro Moreira, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, Renato de Almeida, Ribeiro Couto, Sérgio Milliet, Guilherme de Almeida e Plínio Salgado. Artistas plásticos como Victor Brecheret, Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Vicente do Rego Monteiro, Ferrignac, Oswaldo Goeldi, Zina Aita, Regina Graz e John Graz. E enfim os arquitetos Antonio Moya e Georg Przyrembel. Como vários dos participantes ocupavam cargos de destaque nas redações de alguns dos principais jornais da época, o evento teve boa divulgação desde o início.
Em nota do Correio Paulistano Graça Aranha surgia como o idealizador da Semana. É mais provável, que a idéia tenha partido de Di Cavalcanti, acatando sugestão de Marjorie Prado, a esposa francesa de Paulo Prado. O próprio artista escreveu em sua autobiografia: "Falamos naquela noite, e em outros encontros, da Semana de Deauville e outras semanas de elegância europeia. Eu sugeri a Paulo Prado a nossa semana, que seria uma semana de escândalos literários e artísticos".
Quem quer que tenha sido seu idealizador, o objetivo da Semana era renovar o ambiente artístico e cultural de São Paulo e do país, e redescobrir o Brasil, repensando-o de modo a desvinculá-lo esteticamente das amarras que o subordinavam à Europa. É verdade que os jovens participantes ainda se sentiam fracos sem a proteção benévola de um figurão como Graça Aranha, espécie de avalista de sua seriedade de propósitos, ou de figura-de-proa capaz de impor respeito a setores menos abertos à modernidade. Também é fato que a Semana acabou adquirindo "um tom festivo irreconciliável talvez com o sentido de transformação social que em mim deveria estar no fundo de nossa revolução artística e literária" (Di Cavalcanti). A despeito de reavaliações recentes bastante negativas da Semana e principalmente dos seus organizadores, a mesma foi um acontecimento cultural da maior significação, descerrando para o Brasil perspectivas que teriam enormes conseqüências, inclusive políticas.

A exposição
Nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro ocorriam no palco do Teatro Municipal conferências e concertos. Enquanto isso, no saguão expunham os artistas e arquitetos "modernistas". Não eram todos os que haviam sido anunciados no Correio Paulistano, pois Regina Graz não participou, e a presença de Goeldi é controvertida. Também não eram apenas os que constavam do catálogo da mostra, como esclareceu Malfatti em depoimento a Aracy Amaral. De presença comprovada, segundo o catálogo, foram os arquitetos Moya e Przyrembel, os escultores Brecheret e Haarberg e os pintores ou desenhistas Anita Malfatti, Di Cavalcanti, John Graz, Martins Ribeiro, Zina Aita, João Fernando (Yan) de Almeida Prado, Inácio da Costa Ferreira (Ferrignac) e Vicente do Rego Monteiro. O discutível modernismo das obras expostas e a confusão de estilos em que se debatiam os expositores podem ser aferidos pelos títulos muito significativos de certas esculturas, pinturas ou desenhos, como Soror Dolorosa (Brecheret), Impressão Divisionista (Malfatti), Natureza Dadaaísta (Ferrignac), Impressões (Zina Aita) ou Cubismo (Vicente). Estilisticamente, aliás, os "futuristas" de 1922 (como o público teimava em chamá-los) praticavam de tudo um pouco, menos talvez Futurismo. O essencial era escapar ao Academismo, ou àquilo que eles um pouco apressadamente entendiam por esse nome. Muitas omissões foram praticadas, por exemplo a de Artur Timóteo, aliás falecido pouco depois. Por outro lado, por trabalharem longe do Brasil, ou por simples desconhecimento, deixaram de ser convidados a participar artistas como Ivan da Silva-Bruhns, Domingos Toledo Piza e Correia de Araújo, para citar só três.

Importância da Semana
A maioria dos que escreveram sobre a Semana consideraram-na um acontecimento relevante. Outros lhe negaram maior valor - casos aliás de Carlos Drummond de Andrade e Rodrigo Mello Franco de Andrade. A julgar pelos jornais da época, a Semana teve mais desafetos que adeptos, inclusive adversários temíveis como o que, sob o pseudônimo Pauci Vero Electo, assim se expressava pelas páginas de A Gazeta de 22 de fevereiro:
- O estrondoso barulho que os corifeus deste movimento fazem com estas três palavras (Independência, Originalidade, Personalidade) afirmando-se em altos berros os únicos originais, os únicos independentes, os únicos pessoais em meio a uma récua de imitadores, não passa de um mísero estratagema com que tentam encobrir o mais perigoso dos numerosos pontos vulneráveis da sua couraça de cabotinismo impenitente.
Cinqüenta anos mais tarde era a vez de Yan de Almeida Prado fulminar a Semana em livro- da qual aliás participara muito na base da gozação:
- A Semana de Arte Moderna pouca ou nenhuma ação desenvolveu no mundo das artes e da literatura. Nem com extrema boa vontade pode ser comparada à Vila Kyrial, de que pouco se fala. Veio depois dos esforços de Freitas Vale a favor das artes entre nós, sem o brilho nem o alcance da Vila, rapidamente desvanecidos os sete dias famosos, não fosse o interesse dos Andrades em mante-los na lembrança do respeitável público. Os seus reais valores, conhecidos antes de 1922, como por exemplo Villa-Lobos e Brecheret, ausentavam-se logo depois por longo espaço no exterior. O mesmo sucedeu com Anita Malfatti, Zina Aita e outros de sorte a dificultar qualquer influência no meio onde a Vila Kyrial representava o grande incentivo a principiantes e cenáculo a consagrados. A nossa atual situação nas letras e nas artes (......) nada deve à Semana, a qual não deveria ultrapassar, caso ocorresse em ambiente superior ao nosso, apenas certa cediça curiosidade, tão só útil a autores de escasso valor. Pensar-se de modo diverso, crer que a Semana descobriu gênios e influiu na evolução das artes e letras da Paulicéia e do Brasil, é imaginação ingênua, ou cálculo de espertinhos à espera de que as loas por eles dedicadas ao tal prodigioso acontecimento possam favorece-los como sucedeu a outros beneficiários de blefes semelhantes aos do jogo de pôquer, mirificamente dadivosos para os que sabem aplicá-los.
A exposição de artes plásticas parece não ter despertado tanto interesse na imprensa quanto a música de Villa-Lobos ou de Guiomar Novaes ou as idéias dos conferencistas Graça Aranha, Menotti del Picchia e Mário de Andrade. Isso não quer dizer que as obras mostradas no saguão do Teatro Municipal não tenham suscitado no público sentimentos desencontrados entre a diversão e o xingamento. Os trabalhos de Malfatti e Brecheret, principalmente, parecem ter tido o dom de escandalizar os visitantes. Se a intenção dos organizadores era essa, sem dúvida a concretizaram, sacudindo o marasmo artístico-cultural da provinciana São Paulo da década de 1920.
Embora o tipo de modernismo exposto em 1922 hoje nos pareça no mínimo pouco moderno, e confusas as idéias estéticas de seus principais corifeus, não se pode negar que a Semana representou um divisor de águas na história da arte brasileira. Menotti tem razão quando afirma que "a Semana foi apenas uma data, como o 7 de setembro; a eclosão de um movimento de independência nacional que vinha de longe". No próprio ano do centenário da Independência política do Brasil, a Semana difundia idéias de renovação que, embora já tivessem ocorrido de maneira isolada em ocasiões anteriores, nunca se haviam consolidado num movimento organizado. Como escreveria Paulo Mendes de Almeida muitos anos mais tarde, "já não era um gesto isolado de rebeldia o que presenciávamos, mas um clamor em coro, um movimento de grupo, em que se integravam importantes personalidades, e que deu, positivamente, um safanão naquele adormecido em berço esplêndido Brasil das letras, das artes e do pensamento".

Lasar Segall, Bananal.

Anita Malfatti, Tropical.

Participantes da Semana de Arte Moderna.

Tarsila do Amaral, Mário de Andrade.


13. A Década Modernista

Encerrada a Semana de 1922 seus principais participantes, como Anita Malfatti, Di Cavalcanti, John Graz, Zina Aita e Vicente do Rego Monteiro dispersaram-se, tomando cada qual seu próprio rumo. Outros artistas que, ou por se acharem na ocasião longe do Brasil ou por não terem sido lembrados tinham deixado de marcar presença no evento, logo em seguida fariam sua aparição em cena, para em breve se tornarem figuras epicêntricas do Modernismo brasileiro - casos de Tarsila do Amaral (1886-1973), Antonio Gomide (1895-1967), Alberto da Veiga Guignard (1896-1962), Ismael Nery (1900-1934) e Cícero Dias (1908).
Tendo iniciado sua carreira tardiamente, Tarsila ainda estudava com Pedro Alexandrino quando Malfatti expôs em 1917 em São Paulo, e em fevereiro de 1922 continuava atada em Paris aos ensinamentos conservadores de seus mestres na Academia Julian e de Émile Bernard, só entrando em contacto com Mário de Andrade, Oswald de Andrade e os demais integrantes do grupo modernista de São Paulo meses depois, durante curta permanência na cidade. Em começos de 1923, de volta a Paris e já agora definitivamente conquistada para a nova estética, aproxima-se de André Lhote, Fernand Léger e Albert Gleizes, submetendo-se à severa disciplina cubista imposta por seus novos professores - ou, como diria anos mais tarde, prestando o "serviço militar" do Cubismo -, ao mesmo tempo em que realizava suas primeiras telas dentro da nova orientação. As três grandes contribuições de Tarsila à pintura modernista brasileira surgiriam nos próximos dez anos: a Fase Pau-Brasil, iniciada em 1924 após viagem às cidades históricas de Minas em companhia de Blaise Cendrars e Oswald de Andrade e caracterizada pelo assunto e o colorido brasileiros, regidos por severa estruturação cubista; a Fase Antropofágica, da qual o Abaporu, terminado em janeiro de 1928, se tornaria o carro-chefe, inspirando a Oswald de Andrade seu célebre Manifesto Antropofágico, e em 1933 a curta Fase Social, surgida após uma viagem à União Soviética.
Vivendo desde 1913 em Genebra, onde realizou seus estudos, mais tarde entrando em contacto com Picasso, Braque e os demais cubistas em Paris, Antonio Gomide retornou em caráter definitivo ao Brasil apenas em 1929, quando já tinha realizado muitas de suas melhores obras, inspiradas pelo Cubismo e pelo Art Déco e expostas no Salon d’Automne e no des Indépendants. Sua produção brasileira dos anos 30, que continuou marcada pelo senso construtivista e pelas estilizações déco, abarca além de pinturas de cavalete e aquarelas diversos afrescos e cartões para vitrais. Para o fim da vida, praticamente cego, o artista voltou-se para a escultura e para a representação de vigorosas figuras de negros ou de indígenas.
Também Alberto da Veiga Guignard viveu longos anos sucessivamente na Suíça, em Munique e Florença antes de em 1929 voltar ao Brasil, onde nas próximas décadas iria construir uma obra dominada por intenso romantismo, na qual avultam paisagens, figuras, trágicas figuras de Cristo, naturezas-mortas e, talvez acima de tudo, líricas interpretações do casario das velhas cidades de Minas.
Paraense, radicado no Rio de Janeiro e com duas permanências, de 1920 a 1921 e em 1927 em Paris (onde conheceu André Breton e Chagall, que o marcaria), Ismael Nery produziu pouco em sua breve vida, mas seus óleos e aquarelas, influenciados sucessiva ou cumulativamente pelo Expressionismo, o Cubismo e o Surrealismo revelam uma personalidade singular, sob certos aspectos beirando a genialidade. Não se considerando propriamente pintor, mas antes de tudo poeta e pensador, autor inclusive de uma teoria filosófica - o Essencialismo - que nunca se preocupou em botar no papel, Ismael, numa época em que Tarsila, Di Cavalcanti ou Vicente do Rego Monteiro tanto se preocupavam com o problema de uma pintura nacional brasileira, voltou-se inversamente para o universal, tendo na figura humana a motivação praticamente exclusiva de sua produção.
Entre outros pintores brasileiros de destacada atuação no período e cuja arte exerceria influência sobre os artistas mais jovens devem ser mencionados Pedro Luís Correia de Araújo (1874-1955), que em começos do século integrara-se à vanguarda parisiense, chegando a dirigir em 1917 a Academia Ranson e só voltando ao Brasil em 1929; Domingos Viegas de Toledo Piza (1887-1945), que também viveu longos anos em Paris, sentindo inicialmente a influência do Impressionismo e depois a preponderante de Cézanne, antes de retornar em 1933 ao Brasil; Hugo Adami (1899), desde muito jovem ligado aos modernistas sem todavia participar da Semana, e que nos cinco anos vividos na Itália aproximou-se de De Chirico e inclusive tomou parte, em 1926, na Mostra del Novecento Italiano; e José Maria dos Reis Júnior (1903-1985), seduzido na mocidade pelo Cubismo e mais tarde voltado para a crítica de arte e o ensino, autor de uma importante História da Pintura Brasileira.
Como acontecimento notável da década de 1920 deve ser também mencionada a atuação no Rio de Janeiro, a partir de 1924, de Theodor Heuberger, Friedrich Maron, Leo Putz e outros artistas germânicos, integrantes de uma missão de intercâmbio cultural organizada em Munique pelo cônsul e pintor Navarro da Costa: realizando no Rio, em São Paulo e outras cidades mostras de arte e de artes decorativas alemãs, criando em 1925 uma galeria de arte franqueada aos artistas de sensibilidade moderna e fundando em 1930 a Sociedade Pró-Arte, possível núcleo do qual se originaria pouco depois a Sociedade Pró-Arte Moderna em São Paulo, Theodor Heuberger teve notável participação na renovação do acanhado ambiente artístico brasileiro de meados da década de 20, oferecendo uma válida opção à estética francesa então preponderante.
Finalmente, uma breve citação a Cornélio Pena (1896-1958), grande romancista que começou sua carreira como pintor e ilustrador, publicando em junho de 1929 uma inesperada Declaração de Insolvência, na qual explicava os motivos que o levavam a de então por diante abandonar a pintura, trocando-a pela literatura, tão mais arraigada no gosto dos brasileiros.

Tarsila do Amaral, São Paulo, óleo s/ tela, 1924;
0,67 X 0,80, Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Antonio Gonçalves Gomide, Composição com figura, tecido, 1925;
1,86 X 1,41, Palácio Bandeirantes, SP.

Ismael Neri, Duas amigas, detalhe, óleo s/ tela, 1925.

Cicero Dias, Moça com sombrinha, óleo s/ tela, s/ data;
0,74 X 0,61, Palácio Bandeirantes, SP.

Alberto da Veiga Guignard, Família do fuzileiro naval, óleo s/ tela, 1935;
0,58 X 0,42, Instituto de Estudos Brasileiros da USP.



Os vinte anos que decorrem desde o chamado Salão dos Tenentes e o surgimento do Núcleo Bernardelli, ambos em 1931 no Rio de Janeiro, à realização da I Bienal de São Paulo, em 1951, são ferteis em acontecimentos marcantes da pintura brasileira, além de presenciarem o aparecimento de boa quantidade de jovens artistas, alguns dos quais muito se destacariam de então por diante.
O primeiro desses artistas surge em verdade em fins da década anterior: é Cândido Portinari (1903-1962), contemplado com o prêmio de viagem ao Exterior no Salão Nacional de Belas Artes de 1928. Durante os dois anos em que permaneceu na Europa, êle na verdade quase nada pintou, preferindo observar e meditar: no seu regresso sua visão modificara-se por completo, e ele, que partira quase um acadêmico, tornara-se um pintor moderno. Pelos próximos anos sua pintura, cada vez mais consciente, colheria inúmeros triunfos, a começar pela menção honrosa atribuída ao óleo Café na mostra internacional promovida em 1935 pelo Instituto Carnegie de Pittsburgh. Tal prêmio, concedido nos Estados Unidos a um obscuro pintor brasileiro, seria não apenas a consagração do artista quanto o triunfo da arte moderna no Brasil. Trasformado numa espécie de pintor oficial do Estado Novo, indiferente à disputa que colocaria em campos opostos os adeptos entusiastas do portinarismo, Mário de Andrade à frente, e seus ferrenhos adversários antiportinaristas, como Oswald de Andrade, Portinari realizará nas próximas décadas uma obra gigantesca, na qual se mesclam influências as mais diversas - de Piero della Francesca e Jacques Villon, de Modigliani a Rivera, de Zuloaga a Picasso -, traduzida num grande número de pinturas de cavalete e em grandes murais, para culminar em 1958 nos dois grandes paineis Guerra e Paz oferecidos pelo Brasil ao edifício-sede das Nações Unidas em Nova York, onde se encontram.
Em 1931 dois acontecimentos irão sacudir o marasmo artístico em que ainda se achava mergulhada a antiga capital da República: são a XXXVIII Exposição Geral de Belas Artes, conhecida como Salão Revolucionário ou Salão dos Tenentes, organizado por Lúcio Costa (que então dirigia a Escola Nacional de Belas Artes) e aberto pela primeira vez a artistas de orientação moderna como Guignard, Bonadei, Malfatti, Gomide, Portinari, Cícero Dias, Di Cavalcanti, Flávio de Carvalho, Ismael Nery, John Graz, Tarsila do Amaral, Waldemar da Costa e Lasar Segall, entre outros, e a criação do Núcleo Bernardelli por um grupo de jovens artistas que já não aceitavam o tipo de ensinamento ministrado por seus velhos mestres na Escola Nacional de Belas Artes. Funcionando de início nos porões da própria Escola, o Núcleo não tinha professores, porém mentores - artistas mais experientes, como Manuel Santiago ou Quirino Campofiorito, que de bom grado aquiesceram em orientar moços como Ado Malagoli, Edson Mota, José Pancetti, Milton Dacosta, Joaquim Tenreiro, Martinho de Haro e Yoshiya Takaoka, quase todos de orígem humilde e sem maiores recursos econômicos. Tido como a ala moderada do Modernismo brasileiro dos anos 30, o Núcleo Bernardelli revelou pelo menos dois grandes nomes da pintura brasileira: José Pancetti e Milton Dacosta.
A tendência gregária que se manifestou na arte brasileira com a criação em 1930 da Pró-Arte, de Theodor Heuberger, e continuada em 1931 com o surgimento do Núcleo Bernardelli no Rio de Janeiro iria manifestar-se com redobrada intensidade em São Paulo a partir de 1932, quando passam a funcionar nessa cidade simultâneamente a Sociedade Pró-Arte Moderna, SPAM (entre cujos membros se achavam Segall, Tarsila, Anita Malfatti, John Graz,Victor Brecheret, Paulo Rossi Osir e Vittorio Gobbis) e o Clube dos Artistas Modernos, CAM, integrado por Flávio de Carvalho, Di Cavalcanti, Carlos Prado e Antonio Gomide. Tanto a SPAM quanto o CAM tiveram vida efêmera, desaparecendo em 1934 - a primeira, após a defeccção de seu maior entusiasta, Lasar Segall, e a outra em consequência de uma série de arbitrariedades de que foi vítima após a encenação do Bailado do deus morto de Flávio de Carvalho, estranha peça-ballet-manifesto falada, cantada e dançada na qual os atores usavam máscaras de alumínio e trajavam largos camisolões brancos, tudo muito suspeito aos olhos da alta burguesia e sobretudo das autoridades policiais. O saldo de ambos os movimentos foi muito grande, contando-se entre suas principais realizações as decorações dos bailes carnavalescos "Carnaval na Cidade de Spam" e "Expedição às Matas Virgens da Spamolândia", realizadas por uma equipe liderada por Segall, exposições pioneiras (desenhos de crianças, arte de doentes mentais), conferências, concertos etc.
Pelos meados da década de 1930 Rebolo Gonzalez, ex-jogador de futebol e então bem sucedido pintor de paredes, abriu seu escritório-ateliê no Palacete Santa Helena, à Praça da Sé em São Paulo. Logo depois era a vez de Mário Zanini, outro pintor artesão, imitar-lhe o gesto, alugando também uma sala no mesmo edifício. Ambos nas raras horas vagas freqüentavam o curso livre de desenho da Escola Paulista de Belas Artes, que ficava próxima. Lá conheceram outros artesãos-artistas, como Alfredo Volpi, Clóvis Graciano e Manoel Martins. Reunindo-se periodicamente no Palacete Santa Helena para desenhar ou trocar idéias, esses e outros artistas amadores - como Fulvio Pennacchi, Aldo Bonadei, Humberto Rosa e Alfredo Rizzotti - formariam o chamado Grupo do Santa Helena, o qual, mesmo se se constituir propriamente num movimento, contribuiu de modo marcante para a história da pintura paulista e brasileira, graças sobretudo a nomes como os de Volpi e Bonadei.
Mais ou menos pela mesma época de surgimento do Grupo do Santa Helena novo grupamento de artistas fez sua aparição em São Paulo, dessa vez aglutinando os pintores de orígem japonesa: ativo entre 1935 e 1972, com o intervalo de alguns anos a partir de 1942, esse Grupo Seibi era integrado originalmente por Tomoo Handa, Walter Shigeto Tanaka e Kioji Tomioka, e foi em seus salões anuais que pela primeira vez expuseram Tomie Ohtake, Manabu Mabe e Flavio Shirò, entre outros.
Também se revestiram de importância, não apenas pela qualidade das obras expostas como pelo pioneirismo de certas propostas, os três Salões de Maio realizados de 1937 a 1939 em São Paulo, o primeiro por iniciativa de Quirino da Silva, e o último dirigido por Flávio de Carvalho. Lívio Abramo, Tarsila, Brecheret, Flávio de Carvalho, Waldemar da Costa, Guignard, Ernesto De Fiori, Cícero Dias, Portinari, Gomide, Santa Rosa e Segall estavam entre os expositores do I Salão, do qual apenas participaram artistas brasileiros, ou estrangeiros radicados no Brasil. Já no II Salão, em 1938, ao lado dos artistas nacionais, figurava um grupo de surrealistas e abstracionistas ingleses, entre eles Ben Nicholson, preludiando assim essa mostra a vocação internacional que frutificaria mais de dez anos depois com a criação das Bienais de São Paulo. Finalmente, o III Salão contou com a presença de 39 expositores, inclusive estrangeiros como Alexander Calder, que pela primeira vez mostrou seus móbiles aos brasileiros. Palestras, debates e um espetáculo de ballet japonês completavam esse III e último Salão de Maio, que era acompanhado por uma publicação de capa metálica, a RASM - Revista Anual do Salão de Maio.
A próxima associação de artistas a surgir em São Paulo seria a Família Artística Paulista, inicialmente integrada por Rossi Osir, Waldemar da Costa e Vittorio Gobbis (seus principais teóricos), mais Anita Malfatti, Joaquim Figueira e Hugo Adami, entre outros. A Família pretendia opor-se ao vanguardismo e ao experimentalismo a seu ver excessivos do Salão de Maio, procurando, no dizer de Waldemar da Costa, não ser excessivamente moderna nem tampouco acadêmica. Reforçada pelos integrantes do Grupo do Santa Helena, realizou três exposições, a primeira em 1937, a segunda em 1939 (com os artistas originais, mais Portinari e De Fiori) e a terceira e última no Rio de Janeiro, em 1940, já desfalcada de vários elementos mas com as recentes adesões de Bruno Giorgi e Carlos Scliar. Segundo Paulo Mendes de Almeida, a contribuição maior da Família Artística Paulista à arte de São Paulo terá sido restaurar, "dentro do movimento modernista, o senso do equilíbrio, o respeito pelos conhecimentos técnicos, a crença no métier como elemento imprescindível para a realização da obra de arte perdurável".
Passando ao largo de uns poucos outros grupamentos de artistas surgidos em São Paulo após o último Salão de Maio, e portanto já na década de 1940, só em 1947 apareceria novo movimento associativo capaz de produzir desdobramentos a longo prazo - o chamado Grupo dos 19, o qual realizaria uma única exposição, com a presença de jovens pintores, entre os quais Aldemir Martins, Antonio Augusto Marx, Lothar Charoux, Flávio Shirò, Jorge Mori, Marcelo Grassmann, Maria Leontina, Mário Gruber, Otávio Araújo, Odetto Guersoni e Luís Sacilotto, que nos próximos anos se tornariam dos mais importantes artistas brasileiros de seu tempo.
Fator também remarcável que atuou de modo benéfico sobre a arte brasileira durante o período considerado foi a chegada ao país de numerosos artistas estrangeiros, simplesmente de passagem - como os japoneses Foujita e Kaminagai, o chinês Chang Dai Chien ou a portuguesa Vieira da Silva -, ou em caráter permanente - casos de Emeric Marcier, Laszlo Meitner, Ernesto De Fiori e muitos outros.

Cândido Portinari, Café, óleo s/ tela, 1935;
130 X 195,3 cm, Museu Nacional de Belas Artes, RJ.

Aldo Bonadei, Natureza morta, óleo s/ tela, 1951;
0,46 X 0,55, Museu de Arte Contemporânea da USP.

José Pancetti, Primavera em Campos do Jordão, óleo s/ tela, 1949;
0,46 X 0,38, Palácio Bandeirantes, SP.

Emiliano Di Cavalcanti, Pescadores, óleo s/ tela, 1942;
0,81 X 1,00, Palácio Bandeirantes, SP.

Flávio Rezende de Carvalho, Retrato de José Lins do Rego, óleo s/ tela, 1948;
0,81 X 0,65, Museu de Arte Contemporânea da USP.

Waldemar Costa, Estático, semovente, verniz e ouro, 1966;
1,00 X 1,18, Museu de Arte Contemporânea da USP.

Emeric Marcier, Praça, óleo s/ tela, 1945;
0,65 X 0,82, Museu de Arte Contemporânea da USP.



A trés pioneiros deveu-se a introdução da pintura neo-figurativista no Brasil, em fins da década de 1940. O primeiro deles foi Cķcero Dias, a quem coube executar em 1948, durante curta permanência em Recife, o primeiro mural abstrato da América do Sul. Desde 1937 radicado em Paris, Cķcero aproximara-se em 1945 do Abstracionismo, após ter posto de lado as ingênuos alusões ą infāncia entre os canaviais pernambucanos que tinham sido até entćo o objeto de seu interesse pictórico. O segundo pioneiro foi o cearense Antonio Bandeira (1922-1967), que após comeēos expressionistas entrou em contacto com a arte abstrata na Paris do imediato pós-guerra, praticando a partir de entćo e até ao fim da curta carreira uma pintura de extrema sensibilidade cromįtica, nćo raro evocando em suas telas o que poderiam ser longinquos perfis de grandes cidades iluminadas, vistas por exemplo de uma curva de estrada, ou de um avićo em pleno vōo. O terceiro dos pioneiros do abstracionismo no Brasil (e decerto o mais influente, por sua atuaēćo didįtica ą frente do Ateliź Abstraēćo, por ele fundado em 1948), foi o rumeno Samson Flexor (1907-1971), chegado a Sćo Paulo em 1946 e dois anos mais tarde conquistado para a arte nćo-figurativa por influźncia do crķtico francźs Leon Degand, diretor do recém-criado Museu de Arte Moderna de Sćo Paulo.
Tanto ou mais decisivas para a implantaēćo e posterior consolidaēćo do abstracionismo em nosso paķs seriam a atuaēćo teórica do crķtico de arte Mįrio Pedrosa no Rio de Janeiro, a partir de 1948, e a criaēćo em 1951 da Bienal de Sćo Paulo, de inķcio subordinada ao Museu de Arte Moderna e depois transformada em fundaēćo autōnoma. Foi em grande parte devido ą envolvente pregaēćo escrita e oral de Mįrio e ą gradativa internacionalizaēćo por que passaria a arte brasileira sob a influźncia das Bienais paulistanas que a década de 1950 se tornaria dominada sucessiva ou cumulativamente pelos diversos abstracionismos - orgānico, expressionista, lķrico, geométrico, construtivista, concretista, informal etc. -, todos eles se impondo hegemōnicamente tanto aos que, pertencendo a geraēões mais antigas, continuavam fieis ą vertente nativista figurativa, quanto ąqueles que no figurativismo viam o śnico veķculo capaz de externar sua concepēćo de uma arte comprometida com a vida, a realidade social e as generosas aspiraēões coletivas.
Jį na I Bienal de Sćo Paulo trźs jovens artistas do Rio de Janeiro - Ivan Serpa, Almir Mavignier e Abraham Palatnik -, que haviam abandonado de pouco o rumo naturalista de inķcios de suas carreiras expunham obras sem a menor alusćo ąs formas e cores naturais, fieis ao ponto-de-vista gestaltiano defendido por Pedrosa de que "o conteśdo de uma forma nćo se encontra na sua associaēćo com as formas da natureza, mas no carįter próprio da forma". A pintura exposta por Serpa, ignificativamente entitulada Formas, e um originalķssimo aparelho cinético-cromįtico que constituķa o envio de Palatnik (hoje considerado um dos precursores da arte cinética a nķvel mundial) seriam aliįs premiados no certame, abrindo-se dessa maneira aos novos artistas um campo de criatividade para além dos padrões estéticos até entćo aceitos.
Pouco depois de encerrada a I Bienal em 1951, Mavignier partiu para a Europa, ali se radicando em definitivo: quedavam no Brasil, como elementos aglutinadores das novas tendźncias, Serpa e Palatnik no Rio de Janeiro, e Waldemar Cordeiro e Geraldo de Barros em Sćo Paulo. Jį em 1952 surgia na capital paulista o Grupo Ruptura, liderado por Waldemar Cordeiro e Geraldo de Barros e integrado ainda por Lothar Charoux, Kazmer Fejer, Leopoldo Haar, Luķs Sacilotto e Anatol Wladislaw; também em 1952 era criado no Rio de Janeiro o Grupo Frente, formado por Serpa, Décio Vieira, Aloķsio Carvćo, Lķgia Pape, Hélio Oiticica e poucos mais. Tanto o grupo paulistano quanto o carioca declaravam-se nćo apenas contra a arte figurativa, a pura e simples cópia ou recriaēćo da natureza, como do mesmo modo contra a arte nćo-figurativa lķrica, expressionista ou romāntica, de cunho hedonķstico, que pela mesma época comeēava timidamente a despontar entre alguns jovens pintores. O Grupo Ruptura teria vida efźmera, dispersando-se após a realizaēćo de uma śnica exposiēćo; jį o Grupo Frente, após a exposiēćo inaugural de 1953 ainda realizou outras mostras em 1955 e 1956 antes de encerrar suas atividades; menos ortodoxo do que o pessoal de Ruptura, em sua śltima exposiēćo o grupo carioca admitia artistas que pouco ou jį nada tinham a ver com o nćo-figurativismo geométrico, entre eles o abtracionista lķrico Vincent Ibberson e até mesmo uma ingźnua, Elisa Martins da Silveira.
Também em 1953 realizou-se no Hotel Quitandinha em Petrópolis a I Exposiēćo Nacional de Arte Abstrata (nćo haveria a segunda), com a participaēćo de 23 artistas de diversas tendźncias e linguagens - de Bandeira a Serpa, de Palatnik a Carvćo e de Lķgia Clark a Fayga Ostrower -, predominando o abstracionismo geométrico. Tal coletiva, além de preparar caminho para os próximos desdobramentos da arte nćo-figurativista no paķs, sinalizava para um momento de fastķgio em que mesmo artistas como Portinari e Pancetti, tradicionalmente vinculados ą tradiēćo figurativa, sentiam-se tentados por certas soluēões formais do abstracionismo, visķveis por exemplo nos Espantalhos do primeiro e nas Lagoas do Abaeté do outro, além de levar o jśri internacional a repartir entre o figurativo Di Cavalcanti e o quase abstrato Alfredo Volpi (o Volpi das Fachadas, apartadas jį da mera representaēćo figurativa) o prźmio de Melhor Pintor Nacional da II Bienal de Sćo Paulo, realizada no mesmo ano. Pouco mais ou menos pela mesma época dois pintores até entćo figurativos, trabalhando em estilos e cidades diferentes - Iberź Camargo no Rio de Janeiro, Rubem Valentim em Salvador - aproximavam-se gradativamente da arte abstrata, embora sem abandonar de todo as referźncias ąs formas e cores naturais ou ąs próprias raķzes.
Em dezembro de 1956 ocorria no MAM de Sćo Paulo a I Exposiēćo Nacional de Arte Concreta, com a presenēa de artistas e escritores tanto paulistas quanto cariocas. Levada meses depois ao MAM do Rio de Janeiro, nessa cidade a mostra contou com o decisivo apoio do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, criado pouco antes e dirigido pelo poeta Reinaldo Jardim; foi em grande parte graēas a esse periódico que o Concretismo se impōs rapidamente para além do eixo Rio/Sćo Paulo, conquistando adeptos inclusive em cidades como Fortaleza, onde em 1957 chegou a ser realizada uma Exposiēćo Concreta. A partir de 1960, contudo, como consequźncia de divergźncias surgidas entre os concretos de Sćo Paulo e os do Rio, o movimento jį dava sinais de esgotamento. Jį no ano anterior, com efeito, ocorrera no MAM do Rio de Janeiro a primeira exposiēćo do grupo que se apresentava como neoconcreto, precedida no catįlogo de um manifesto no qual se afirmava:
- O neoconcreto, nascido da necessidade de exprimir a complexa realidade do homem moderno dentro da linguagem estrutural da nova plįstica, nega a validez de atitudes cientificistas e positivistas em arte e repõe o problema da expressćo, incorporando as novas dimensões verbais cradas pela arte nćo-figurativa construtiva.
Apesar de ter tido repercussćo em Sćo Paulo e em Salvador, o neoconcretismo foi um movimento basicamente carioca, que também se esvaiu rapidamente em comeēos da década de 1960. Foram seus representantes, no Rio de Janeiro, Lķgia Clark e Lķgia Pape, Helio Oiticica, Aluķsio Carvćo e Décio Vieira, mais os poetas Ferreira Gullar e Reinaldo Jardim; em Sćo Paulo, Theon Spanudis, Willys de Castro e Hercules Barsotti.
No mesmo ano de 1959 em que se realizou no Rio de Janeiro a mostra neoconcreta fazia seu aparecimento através da V Bienal de Sćo Paulo o abstracionismo informal, que por alguns anos de entćo por diante iria tornar-se a tendźncia nćo-figurativa dominante na pintura brasileira. Revigorava-se assim uma corrente nćo-figurativista e nćo-gométrica que com oscilaēões vinha acompanhando desde fins da década de 1940 a evoluēćo da arte nćo-figurativista geométrica ou construtivista no paķs. Os artistas brasileiros que aderiram a essa vertente alternativa do abstracionismo resvalaram com frequźncia para jogos gratuitos de textura, sob a influźncia da Action Painting norte-americana ou do Tachismo francźs. Num dado momento, mesmo veteranos pintores figurativistas aderiram ao modismo, o que explica o carįter superficial de que se revestiu de modo geral esse tipo de pintura entre nós. Realce-se apenas a coerźncia do grupo nipo-brasileiro, liderado por Manabu Mabe e integrado por Tomie Ohtake, Fukushima e Wakabayashi, entre outros, e a contribuiēćo pessoal de alguns poucos que, como Iberź Camargo, Yolanda Mohalyi, Sheila Brannigan, Wega Nery ou Laszlo Meitner encontraram no abstracionismo orgānico, lķrico ou expressionista sua maneira própria de externar idéias ou emoēões.
Ą medida em que a década de 1960 avanēava, a posiēćo hegemōnica até entćo ocupada pelos pintores de orientaēćo nćo-figurativista via-se aos poucos tomada por artistas de outras tendźncias, com o retorno inclusive ao figurativismo. Pode-se dizer contudo que o nćo-figurativismo desde sua irrupēćo hį mais de 50 anos nunca deixou de representar uma forēa viva e atuante na pintura moderna e contemporānea, a ele permanecendo fieis inśmeros artistas até os dias de hoje, sem falar em freqüentes revivals observados de tempos em tempos - como no caso dos adeptos da chamada geometria sensķvel, nos anos 70, ou em certas pinturas neoexpressionistas dos anos 80.

Antonio Bandeira, A grande cidade iluminada, óleo s/ tela, 1953;
0,72 X 0,91, Museu Nacional de Belas Artes, RJ.

Lothar Charoux, Sem título, grafite e guache, 1956;
0,49 X 0,37, Museu de Arte Contemporânea da USP.

Iberê Camargo, Expansão, óleo s/ tela, 1964;
0,80 X 1,39, Museu de Arte Contemporânea da USP.



Amainada em começos da década de 1960 a tempestade diluidora do informalismo, do gestualismo e do tachismo, manifestou-se na produção artística brasileira, primeiro velada e depois ostensivamente, como que uma grande saudade do objeto, uma nostalgia indefinível das formas e cores naturais, passando em conseqüência os artistas emergentes a defender e praticar uma pintura que se reportasse mais diretamente ao mundo objetivo. Claro, o simples retorno ao figurativismo tradicional estava fora de cogitações, já que a um novo tipo de humanismo deveria forçosamente corresponder uma nova figuração. Desde poucos anos antes artistas e críticos de arte do mundo inteiro tinham chegado à conclusão de que toda a pintura ocidental, de Rembrandt a Picasso, de Giotto a Chagall e de Leonardo a Cézanne podia ser enfiada num mesmo saco como arte de ilusão, não passando de engenhosas manipulações de formas e cores dispostas sobre um suporte bidimensional e que, observadas de certa distância e desde determinado sítio, apenas fingiam ser uma figura humana, uma paisagem ou um objeto qualquer. Essa arte de faz-de-conta pareceu altamente insatisfatória a um grupo de moços que então trabalhavam em Paris e Londres naquilo que logo se transformaria respectivamente no Nouveau Réalisme e na Pop Art. Pretendiam esses jovens criticar a sordidez do modus vivendi contemporâneo, lançando mão dos detritos da civilização tecnológica para enfocar em suas obras - que já não eram pinturas nem esculturas, porém objetos a meio caminho entre umas e outras -, os aspectos mais prosaicos, banais e por isso mesmo mais característicos da sociedade de consumo da segunda metade do Séc. XX, tais como restos de fast food, imagens publicitárias e de estórias-em-quadrinhos, ícones da cultura popular, elementos da cultura de massa etc.
Nascida como se vê na Europa, a nova arte encontraria nos Estados Unidos seu habitat ideal, até porque nesse país tinham já trabalhado alguns de seus grandes precursores, como Stuart Davis, Edward Hopper e Marcel Duchamp. A partir de 1962, com a mostra The New Painting of Common Objects no Pasadena Art Museum, a Pop Art iria se tornar uma espécie de estilo nacional norte-americano - a arte oficial da Disneyland, como lhe chamou sarcasticamente o crítico Martin Ries.
É lógico que ecos dessa reviravolta artística cedo chegariam ao Brasil, antes inclusive de sua aparição definitiva e triunfal na IX Bienal de São Paulo, em 1967, quando da sala especial Ambiente USA: 1957/1967 participaram, e com obras remarcáveis, todos os grandes nomes da Pop norte-americana: entre tais mostras pioneiras cumpre citar, como das mais influentes, a que sob o título de Otra Figuración reuniu em 1963, na Galeria Bonino, obras dos quatro artistas argentinos Macció, Noé, Jorge de la Vega e Deira.
A primeira exposição em que se procurou reunir, em levantamento curatorial, os jovens artistas brasileiros marcados pelas novas tendências foi Opinião 65, organizada em 1965 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro por Ceres Franco, a qual, após dizer logo no começo do texto de apresentação no catálogo ser aquela uma exposição de ruptura com a arte do passado, apontava como fontes onde deveriam se dessedentar os artistas emergentes nacionais "o exemplo vitorioso da Pop Art americana e as realizações do novo realismo europeu". Para Ceres, a jovem pintura teria de ser "independente, polêmica, inventiva, denunciadora, crítica, social, moral", inspirada "tanto na natureza urbana imediata como na própria vida com seu culto diário de mitos".
Distinguia-se desde logo essa jovem pintura brasileira da norte-americana por seu conteúdo político e contestatório, em aberta e corajosa oposição ao regime de exceção que se instalara no país com o golpe militar de 1º de abril de 1964. Assim, enquanto os artistas Pop norte-americanos expunham pragmatica, friamente, os aspectos de seu mundo pasteurizado, os brasileiros condenavam, de modo não raro apaixonado, os excessos da massificação, a mecanização da vida, a banalidade de uma época dominada pela publicidade mas também, como se já não bastasse, a estupidez da ditadura militar havia pouco instaurada no país. Daquela primeira mostra aglutinadora dos novos valores da pintura brasileira de meados dos anos 60 participavam alguns nomes hoje clássicos da vanguarda brasileira - como Rubens Gerchman e Hélio Oiticica, Pedro Geraldo Escosteguy e Carlos Vergara, Antonio Dias e Waldemar Cordeiro, lado a lado com alguns precursores e artistas de sensibilidade afim, como respectivamente Ivan Serpa e Ivan Freitas.
Muito importante também, pelo que revelou sobre certos aspectos da arte brasileira da época, foi a exposição inaugural da Galeria G-4 no Rio de Janeiro, em maio de 1966, apresentando o chamado Grupo Neo-Realista carioca, integrado por Antonio Dias, Rubens Gerchman, Roberto Magalhães, Pedro Escosteguy e Carlos Vergara, todos já anteriormente reunidos na coletiva Supermercado 66, realizada pouco antes na Galeria Relevo da mesma cidade. Apesar de seus 22 anos, Antonio Dias funcionava como uma espécie de chefe de escola; fazendo uso de uma temática na qual se mesclavam memórias da infância e símbolos fálicos, vísceras sangrentas e máscaras contra gases, tudo externado em vermelho, preto e branco, ele explicou, em depoimento de 1966 escrito especialmente para o catálogo da mostra Vanguarda Brasileira na Universidade de Belo Horizonte, em 1966, o aspecto militante e subversivo de seu trabalho de então:
- As coisas mudam constantemente e é preciso estar sempre atento, fazer as reformulações no momento exato. Só assim conseguiremos uma ação efetiva mínima, já que é impossível controlar todas as coisas do mundo. Se eu conseguir dizer o que penso no meu trabalho, as pessoas o entenderão. Mas as idéias subvertem dentro de campos paralelos; só posso subverter aqueles que consomem pinturas. Mesmo assim, se dez pessoas entenderem o que faço, se apenas dez se aproximarem do meu trabalho e disserem: "Compreendo o que este cara está dizendo", esta corrente de dez pessoas irá engrossando tremendamente até se diluir no sentido geral da vida.
Em agosto de 1966, de novo no MAM do Rio de Janeiro, realizava-se a coletiva Opinião 66: outra vez com organização de Ceres Franco, era a repetição, ampliada, da mostra do ano anterior, e contava com a participação de diversos pintores europeus, lado a lado com bom número de artistas brasileiros, alguns já conhecidos de mostras anteriores - como Serpa, Lígia Clark e Glauco Rodrigues, os dois primeiros oriundos do Concretismo, o último do chamado Realismo Social -, outros, como Angelo de Aquino, Teresa Simões ou Renato Landim, praticamente iniciando então sua carreira. Num texto especialmente preparado para o catálogo, Hélio Oiticica, então às voltas com suas primeiras apropriações, aborda o tema da antiarte, que a partir daí o absorveria:
- Chegou a hora da antiarte. Com as apropriações descobri a inutilidade da chamada elaboração da obra de arte. Está na capacidade do artista declarar se isto é ou não uma obra, tanto faz que seja uma coisa ou uma pessoa viva.
Entre muitas outras manifestações da vanguarda carioca na década de 1960 podem ser citados Pare!, em 1966 na Galeria G4, a coletiva Objetos na Galeria Celina, em 1969, os Salões de Abril, Esso e da Bússola, efetuados no MAM entre 1966 e 1969, e a mostra anual Resumo-JB, idealizada por Harry Laus, crítico de arte do Jornal do Brasil. A mais abrangente mostra de arte reunindo até então a vanguarda não apenas carioca como brasileira seria contudo Nova Objetividade Brasileira, aberta em abril de 1967 no MAM do Rio de Janeiro. No catálogo, Waldemar Cordeiro pelo grupo paulista e Hélio Oiticica pelo carioca assinam textos significativos. Hélio, por exemplo, após definir a Nova Objetividade como "um estado típico da arte brasileira de vanguarda atual", assim enuncia suas seis premissas básicas: vontade construtiva geral, tendência para o objeto ao ser negado e superado o quadro de cavalete, participação corporal, tátil, visual, semântica etc., do espectador, tomada de posição em relação a problemas políticos, sociais e éticos, tendência a uma arte coletiva e ressurgimento e reformulação do conceito de antiarte. De Nova Objetividade Brasileira participariam, além de nomes já mais conhecidos, artistas como Raimundo Collares, Ana Maria Maiolino, Maria do Carmo Secco, Avatar Morais, Marcelo Nitsche, Gastão Manuel Henrique e Mona Gorovitz.
Até aqui focalizamos aspectos que a rigor se circunscrevem à vanguarda carioca dos anos 60; cumpre agora revelar o que ocorria pela mesma época com a vanguarda paulista, distinta da do Rio de Janeiro por nítidas peculiaridades - impulsiva, espontânea e romântica aquela, comedida e pragmática essa, os cariocas por assim dizer mais "artistas", os paulistas mais designers, publicitários ou arquitetos -, sinalizando diferenças de temperamento e comportamento que são em última análise as mesmas que, como escreveu Walter Zanini, contribuíram para cavar um abismo "entre o meio extrovertido e de agregação nacional da antiga capital e o ambiente circunspecto e de composição humana internacional de São Paulo".
Em São Paulo, em 1965 e 1966, paralelamente às duas Opiniões abertas no MAM-RJ, a Fundação Armando Alvares Penteado realizou as mostras Propostas 65 e Propostas 66, das quais participaram artistas como José Roberto Aguilar, Tomoshige Kusuno, Bin Kondo, Flávio Império, Wesley Duke Lee e Waldemar Cordeiro, além dos representantes do grupo carioca. Na segunda dessas exposições vários novos nomes surgiram, entre eles Sergio Ferro, Fabio Magalhães, Vera Ilce, Samuel Szpiegel e Mona Gorovitz
Também sobre a vanguarda paulista atuaram, é claro, os mesmos condimentos que motivaram a carioca, inclusive a repressão militar e o engajamento político; mas circunstâncias especiais fizeram-na mais complexa e dinâmica, a começar pela demorada presença na cidade, em diferentes ocasiões ao longo da década, de importantes representantes da melhor vanguarda europeia, que exerceriam influência sobre um meio no qual introduziram novos modos de ver ou de sentir; sem falar nas consequências que eventos como a exposição do Grupo Phases em 1964 ou a XII Exposição Internacional do Surrealismo em 1967 trariam ao mundo-de-ideias dos jovens artistas locais; ou na continuada chegada a São Paulo, onde se radicaram, de artistas de várias nacionalidades e tendências estilísticas; e pondo enfim em destaque a atuação seminal de artistas como Wesley Duke Lee, autor do primeiro happening brasileiro e principal representante do Realismo Mágico, como o neodadaísta Nelson Leirner ou como Waldemar Cordeiro, que em 1964 abandonou temporariamente a ortodoxia de posições anteriores para lançar o movimento Popcreto, buscando combinar em seus quadros-objetos a Pop Art e o Concretismo.
Fora do eixo Rio-São Paulo, vale citar certa efervescência revitalizadora ocorrida em 1967 na capital da República, com a realização do polêmico IV Salão de Brasília, e em 1968 em Salvador, quando a censura fez gorar a II Bienal da Bahia, assim pondo fim à bela iniciativa criada no ano anterior.
Enquanto em fins dos anos 60 eram ainda bastante numerosos os que viam nos veículos tradicionais da pintura ou do desenho meios expressivos perfeitamente aptos a externar seu mundo-de-idéias, bastando citar os exemplos de João Câmara, Sonia von Brüsky, Evandro Carlos Jardim, Antonio Henrique Amaral, Humberto Espínola ou Gilvan Samico, a década de 1970 seria marcada pelo surgimento de novas linguagens, preponderando as soluções conceituais, o experimentalismo de eventos como os Domingos da Criação realizados em 1971 nos espaços externos do MAM do Rio de Janeiro ou como Brasil, a Festa e a Construção, levado a efeito em Belo Horizonte. Deve-se observar contudo que nos anos 70 o território privilegiado da vanguarda deixara de ser o Rio de Janeiro, situando-se em São Paulo, com as experiências pioneiras de arte-computador feitas pelo incansável Waldemar Cordeiro já desde 1968 e a intensa atividade desenvolvida pelo Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, através das sucessivas edições de mostras como Jovem Arte Contemporânea, entre outras.

A mail-art, o livro de artista, a vídeo-arte, a instalação, a performance, a holografia etc., testemunhos, todos eles, da gradativa desmaterialização da arte que se processava então não só na arte brasileira, também na internacional, dominam como já ficou dito o período, à pintura e outras linguagens afins cabendo papel muito mais discreto, para só se recuperarem em começos dos anos 80.

Tomie Ohtake, Cinza e vermelho, óleo s/ tela, 1977;
1,54 X 1,54, Palácio Bandeirantes, SP.

Manabu Mabe, Equador II, óleo s/ tela, 1973;
1,80 X 2,00, Museu de Arte Contemporânea da USP.


17. A Geração Finissecular

Os primeiros anos da década de 1980 presenciaram a retomada do interesse pela pintura, graças ao aparecimento, principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo, de toda uma legião de jovens artistas fascinados pelo prazer de pintar. Fenômeno que se verificou inicialmente na arte europeia, com o neo-expressionismo alemão e a Transvaguarda italiana (cujo teórico Achille Bonito Olivo, diga-se de passagem, exercia nesse momento forte influência no Brasil), êsse retorno à pintura assumiu entre nós características que em essência não diferem muito das de seus modelos europeus: tendência ao matérico e ao gestual, ênfase na figuração, predomínio da emoção sobre a razão, formas e cores truculentas, pinceladas convulsas, grandes suportes, abolição de chassis e molduras.
No Rio de Janeiro a Escola de Artes Visuais do Parque Lage e em São Paulo a Fundação Armando Alvares Penteado foram os núcleos de onde se espraiou o modismo, entusiasticamente recebido pelo mercado e propagado e defendido por críticos de prestígio, mormente naquela cidade. Os marcos da evolução da tendência seriam, no Rio de Janeiro, as exposições Entre a Mancha e a Figura, realizada em setembro de 1982 no Museu de Arte Moderna; À flor da pele - pintura & prazer, no Centro Empresarial, Pintura/Pintura, na Casa de Rui Barbosa, e 3 x 4 - Grandes Formatos, no Museu de Arte Moderna (as três em 1983); e Como vai você, Geração 80?, em 1984 na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, balanço que reuniu 123 artistas nascidos ou ativos em várias cidades, mormente no Rio de Janeiro e em São Paulo; nessa cidade, Pintura como Meio (Museu de Arte Contemporânea da USP) e Panorama da Pintura Brasileira (Museu de Arte Moderna), ambas em 1983; em Belo Horizonte, Brasil/Pintura (Palácio das Artes, 1983).
Como se vê, o ano de 1983 representou o triunfo absoluto da Geração 80, que porém continuava em grande voga em 1985, quando em São Paulo Nuno Ramos, Fábio Miguez, Carlito Carvalhosa, Paulo Monteiro e Rodrigo Andrade reúnem-se para criar o Ateliê Casa 7 e no Rio Daniel Senise, Angelo Venosa, Luiz Pizarro e João Magalhães fundam o Ateliê da Lapa. Também em 1985, a 18ª Bienal de São Paulo apresenta em sala especial a Grande Tela, que sintetizava tudo quanto então se fazia dentro e fora do Brasil em termos de pintura, eliminando os intervalos entre várias telas de grandes formatos, aproximadas pela curadora Sheila Leirner para formar uma única e extensíssima tela. Apogeu e canto do cisne, após a Grande Tela pareceu exaurido o prazer de pintar, afinal esgotado nos anos finais da década. Um balanço do que representou para a arte brasileira a Geração 80 revelaria que ela teve seus mártires, como Jorge Guinle e José Leonilson, um grande professor na figura de Luiz Áquila, marchands como Thomas Cohn e Luiza Strina, críticos e divulgadores como Frederico Morais, Roberto Pontual e Marcos Lontra, raros talentos (como o próprio Leonilson) e muitos, muitíssimos diluidores.
Sempre mais comedidos e formando um contraponto aos posicionamentos tão mais hedonistas assumidos por seus colegas cariocas, os artistas de São Paulo começam a se orientar, a partir de meados dos anos 80, de preferência para outras direções, como por exemplo a reflexão conceitual sobre a essência e o questionamento dos limites da própria pintura, em obediência a linhas de trabalho e pesquisa de mestres como Nelson Leirner, Regina Silveira e Julio Plaza, mentores da nova geração.