Mas essa sua assertiva está longe de ser pacificamente aceita por muitos estudiosos norte e sul-americanos do passado das Américas.
Entre todos os capítulos da Arqueologia Brasileira ainda tão pouco conhecida, um dos mais importantes e relativamente mais estudados é sem dúvida o da chamada arte rupestre. Ela já vinha espicaçando a curiosidade de bom número de amadores, mas de poucos profissionais nacionais e sobretudo estrangeiros. Isso pelo menos desde começos do Séc. XIX, embora a ela já se refiram autores quinhentistas ou seiscentistas como Ambrósio Fernandes Brandão e Barleus. O estudo científico só tomaria impulso neste campo, na segunda metade do nosso próprio século, depois que, em 1950, Paulo Duarte fez vir ao Brasil a célebre especialista francesa Annette Laming Emperaire.
Principalmente da década de 1980 e após o fim do regime militar, diversas missões científicas francesas têm atuado
Regra geral, só uma cor era empregada na elaboração de cada pintura rupestre. Utilizavam-se pigmentos minerais como o óxido de ferro para o vermelho, que era a cor mais difundida ou vegetais (urucum, genipapo, carvão), por vezes mesclados a resinas vegetais. Há coexistência, por vezes numa única pintura, de formas geométricas, abstratas. Outras vezes, de formas figurativas de homens e de animais, o que poderia segundo alguns estudiosos corresponder à antiquíssima divisão entre trabalho feminino e trabalho masculino. Às mulheres se atribuiu desde sempre a função de produzir cestas, têxteis e cerâmicas, atividades nas quais a forma e principalmente a decoração são obtidas pelo emprego de padrões estilizados repetitivos. Elas podem ter sido as responsáveis por esses pontos e círculos, losangos, cruzes e lancetas que ocorrem em tantas pinturas rupestres brasileiras. Já os homens, caçadores por índole, e por isso mesmo obrigados a conhecer com precisão a aparência de cada animal, terão sido os autores das formas orgânicas e das representações naturalistas.
Com exceção do litoral, pode-se dizer que todas as regiões do território brasileiro ainda hoje conservam numerosos exemplos de arte rupestre, a despeito das depredações ocorridas nas últimas décadas, motivadas geralmente por interesses econômicos. Existem no entanto regiões que hoje nos apresentam acervos rupestres mais ricos. Isso talvez apenas signifique que nessas regiões as pesquisas começaram há mais tempo e com melhores recursos. Assim, entre os principais sítios arqueológicos brasileiros possuidores de importante acervo de pinturas rupestres devem ser citados São Raimundo Nonato e Sete Cidades, no Piauí; o Vale do Seridó, no Rio Grande do Norte; a Pedra do Ingá, não longe de Campina Grande, na Paraíba; a Pedra Furada, no Município de Venturosa, em Pernambuco; numerosíssimas cavernas distribuídas pelos municípios de Lençois, Morro do Chapeu, Montalvânia e outros, na Bahia; Serranópolis e Caiapônia, em Goiás; Lagoa Santa e Januária,
Piauí. São Raimundo Nonato, com suas numerosas tocas ocupadas por homens pré-históricos entre pelo menos 17.000 e 5.000 anos atrás - Toca do Paraguaio, do Boqueirão da Pedra Furada, do Baixão das Europas, da Chapada da Cruz etc, foi o foco de irradiação do que os especialistas chamam de "Tradição Nordeste", caracterizada por abundantes cenas de caça a tatus, veados e onças, estas flechadas à distância, com ajuda de um propulsor. Tudo aplicado com auxílio de pinceis vegetais ou com os dedos. Predomina o vermelho, ocorrendo em menor proporção o amarelo, o preto, o branco e o cinza. As manifestações mais antigas são também as mais remotas até hoje encontradas no Brasil: 17.000 anos, conforme o método do carbono 14. Na Toca do Baixão das Europas I pode-se ver curiosa representação de três figuras humanas de estaturas diversificadas em canhestra perspectiva, pintadas há cerca de 7.000 anos. Já na arte rupestre de Sete Cidades, cuja idade foi estimada por equipes da Universidade Federal do Piauí entre 6.000 e 4.000 anos, predomina o estilo geométrico, apresentando-se as raras figuras humanas e de animais muito estilizadas e com um mínimo detalhamento anatômico. Aqui, exclusivamente o vermelho é empregado.
Rio Grande do Norte. Ao longo do Vale do Seridó espraiou-se o chamado "Estilo Seridó", especialmente notável pela impressão de movimento e pela tendência à expressão, visíveis em sua arte rupestre. Pintadas em branco, amarelo alaranjado e vermelho, as figurinhas (de
Paraíba. Em sítios pré-históricos como o da Pedra do Ingá - um paredão de
Pernambuco. Dois sítios se destacam: Pedra das Figuras, com representações estilizadas de répteis e emas
Bahia. Animais, principalmente aves, também muito estilizados, constituem a principal temática da arte rupestre bahiana, em municípios como Lençois e Montalvânia.
Goiás. Nessa região calcula-se que tenham-se sucedido 500 gerações humanas. Destacam-se os sítios arqueológicos de Serranópolis e Caiapônia. As pinturas são abundantes, ocupando por vezes extensões que chegam a
Minas Gerais. Desde Lagoa Santa, onde já foram estudados mais de 200 sítios com pinturas antigas de até 12.000 anos, descendo em direção sul até ao Paraná, predomina a chamada "Tradição Planalto": são pinturas animalistas executadas monocromaticamente e se alternando com raras figurações humanas e a padrões geométricos. Na arte rupestre, comumente ocorre que as pinturas mais recentes simplesmente encobrem ou recobrem as mais antigas a ponto de não raro torná-las indecifráveis. Aqui, ao contrário, certas pinturas dão mostras de terem sido várias vezes "restauradas", de tempos em tempos, por sucessivas gerações. Em Santana do Riacho existe um paredão de
Rio Grande do Sul. Apresentando ainda vestígios da monocromia original, quase sempre em preto mas também em verde, branco, castanho e roxo, as incisões de Canhemborá prendem-se à chamada "Tradição Humaitá" (cerca de 3.000 anos atrás). Representam pegadas de aves e mamíferos, além de símbolos sexuais. Já na Pedra Grande
DECORAÇÃO CERÂMICA. Além dos abundantes testemunhos propiciados pela arte rupestre, a pintura pré-histórica brasileira também pode ser estudada pela observação da decoração de objetos cerâmicos, como urnas mortuárias antropomórficas e vários tipos de vasos, tangas cerimoniais etc., destacando-se ao Norte os estilos Marajó e Santarém, o primeiro mostrando ornamentação de frisos estilizados em meandros, padrões geométricos repetitivos, sinuosidades, curvas e contracurvas, executada em vermelho e branco. O segundo mais "barroco" e figurativo, com ornamentação abundante e não raro excessiva de aves, animais e seres humanos policromados. Mais recentes, já contemporâneas da chegada dos primeiros europeus, são as cerâmicas Maracá, Aruã e Tupiguarani, também exibindo realces a cor. Na Tupiguarani existem só no interior, permanecendo as paredes externas de vasos e recipientes na cor natural da argila.
A principal manifestação pictórica desses grupos consiste na ornamentação corporal à base de três cores principais: o vermelho, extraído das sementes do urucum; o preto, obtido do sumo do jenipapo; e o branco de tabatinga, aplicadas a dedo ou, em certos casos, como entre os Timbira, com a utilização de placas ou rolos. Trata-se, como demonstrou Lévy-Strauss ao estudar os Kadiweu do Pantanal matogrossense - de longe os melhores pintores entre os indígenas brasileiros - de adornar com pinturas as diferentes partes do corpo humano, não por simples divertimento ou puro espírito lúdico, como por tanto tempo se pensou. Isto era feito para que cada membro da coletividade pudesse ser imediatamente identificado segundo o grupo social a que pertencia: nobres, guerreiros ou povo comum. Rosto, tronco, dorso, braços e demais partes do corpo não são simplesmente recobertos de tinta: os padrões ornamentais tradicionais de figuras geométricas, listas, pontos, serrilhas etc. não lhes respeitam os limites ou contornos, mas os ultrapassam, buscando camuflá-los ou reestruturá-los. Isto é, obedecendo apenas à maior ou menor habilidade das mulheres que os executam. Algumas delas chegaram a se tornar, por sua habilidade, figuras conceituadas na tribo. Em tempos mais recuados os kudinas, homens que assumindo a condição feminina chegavam a se casar com outros homens, podem ter sido, segundo a tradição, os criadores de vários padrões ainda hoje
Darcy Ribeiro, escreveu que o corpo humano é "a tela onde os índios mais pintam e aquela que pintam com mais primor". A ornamentação, sempre com padrões geométricos ou signos convencionais, de cerâmica utilitária, estatuetas e figuras (como em tempos mais recentes os conhecidos licocós ou bonecas Karajá da Ilha do Bananal), bancos zoomorfos e demais peças do singelo mobiliário e objetos utilitários como remos, constitue um campo de aplicação nada desprezível da arte da pintura entre os nossos indígenas.
De todos os costumes dos naturais do Brasil, o que mais chocou e ao mesmo tempo fascinou os europeus, foi a antropofagia. Por isso, a mais remota representação de indígenas brasileiros é uma xilogravura anônima ilustrativa do Novus Mundus de Vespúcio (c. 1505). Mostra um grupo de onze canibais, entre eles mulheres e crianças, devorando à beiramar o corpo de um inimigo que acabaram de assar numa fogueira, vendo-se ao longe, fundeadas, duas caravelas. A beleza física dos antropófagos, sua longevidade, o fato de andarem despidos, não possuírem propriedade privada ou forma de governo, foram noções todas elas equivocadas ou imprecisas, que só muito mais tarde seriam reformuladas.Tudo isto parecia aproximar os naturais da América daquela perdida Idade de Ouro da raça humana à qual se referem Vergílio e Ovídeo. Um grande poeta francês, Pierre Ronsard, num poema dedicado a Villegaignon sustentou que ils vivent maintenant en leur âge doré (eles vivem atualmente na sua época de ouro). Dessa visão nostálgica e irreal dos nossos ameríndios travestidos em herois da Antiguidade Clássica, derivam certas representações, nas quais assumem aparência ou postura hercúlea ou apolínea. Corpos bem proporcionados como estátuas gregas, algumas devidas a grandes artistas como Albrecht Dürer e Hans Burgkmair, os quais, logicamente, nunca chegaram a ver um ameríndio de perto. Embora já desde os primeiríssimos anos do Séc. XVI começassem a chegar a Portugal e a outros países da Europa, trazidos como bichinhos amestrados pelos colonizadores. Foi o que aconteceu com alguns desses indígenas, como o índio brasileiro Essomericq, levado para a França por volta de 1505 e os cerca de 50 brasileiros, que em 1550 causaram sensação ao participar da Entrada de Henrique II em Rouen.
É pouco provável que, ao retornar a Portugal de volta de sua viagem de descobrimento, Cabral trouxesse a bordo indígenas brasileiros. Tal feito implicaria em antes tê-los levado à longinqua Índia, para onde partiu ao deixar o Brasil. Por isso torna-se enigmática uma pintura do Museu Grão Vasco em Vizeu, representando uma Adoração dos Magos e atribuída ao grande pintor português Vasco Fernandes (1475?-1541?). A mais curiosa particularidade dessa pintura é que o Rei Mago Baltazar não figura sob a aparência tradicional de um mouro ou de um negro, mas sim como um autêntico tupinambá. A obra dataria dos primeiros anos do Séc. XVI . Parece estar de algum modo ligada à descoberta do Brasil pelo Almirante Cabral. Este, segundo certos autores talvez por demais imaginosos, estaria retratado na figura do Rei Mago que, de joelhos, adora o Menino Jesus. Como Vasco Fernandes não veio ao Brasil, forçoso é concluir que a figura do tupinambá deve ter sido executada a partir de desenhos feitos in loco possivelmente por um amador com alguma habilidade artística e suficiente senso de observação para dar do indígena uma versão etnograficamente convincente.
Numa outra pintura portuguesa de c. 1550, do Museu Nacional de Arte Antiga de Lisboa, acha-se representado um Inferno, à maneira de Jan Mandyn ou outro imitador de Bosch. Aqui demônios cozinham os condenados num caldeirão sob as vistas de um Satanás de vistoso cocar à cabeça e exibindo um traje de penas semelhante ao usado por Baltazar na pintura atribuída a Vasco Fernandes acima referida. Embora caldeirões escaldantes fossem mais ou menos comuns em representações pictóricas do Inferno desde fins da Idade Média, não há dúvida de que o considerável know-how dos canibais brasileiros em cozinhar seus inimigos foi o que sugeriu ao anônimo autor da pintura emprestar a Satanás a aparência de um feroz tapuia. Muitos lusitanos devem ter visto , nessa época, tais selvagens como demônios.
Uma das mais belas representações de índios brasileiros é uma xilogravura de autor ignorado, talvez Jean Cousin, no livro C’est la deduction du sumptueux ordre plaisantz spectacles, publicado em Rouen em 1551 para celebrar a entrada triunfal de Henrique II e Catarina de Médici na cidade, um ano antes. A xilogravura, "Figure des brisilians", retrata a aldeia indígena brasileira especialmente montada para a ocasião, com seus moradores entregues às mais diversas atividades e ocupações.
Entre os companheiros de Jean de Léry em sua viagem de 1555 ao Brasil achava-se certo Jean Gardien, que o próprio Jean de Léry define como um "expert en l‘art du portrait" em seu livro Histoire d’un voyage faite en la terre du Brésil (
Também de 1557 é o livro de André Thevet Les Singularitez de la France Antarctique, ilustrado com 41 retratos de homens famosos de todos os tempos em xilogravuras baseadas, de acordo com o próprio Thevet, em "poutraits au naturel faits d’après creon que j’ai rapporté de dessus les lieux". Permanece em aberto a questão de se ele, ou algum outro, foi o autor dos desenhos. Numa nova edição dessa obra, aparecida em 1584 sob o título de Les vrais Pourtraits et vies des hommes illustres Grecs, Latins, et Payens etc., Thevet acrescentou as vidas e os retratos de cinco indígenas americanos, entre os quais o brasileiro Quoniambec (ou Cunhambebe). Também no Recueil de la diversité des habits etc., de François Descerpz, publicado em Paris em 1562, seis das 129 ilustrações xilográficas (tudo, como explica o subtítulo da obra, "fait après le naturel"), referem-se ao Brasil: Le Portugais e
Na Historia da provincia sãcta Cruz a que vulgarmente chamamos de Brasil, de Pero de Magalhães Gandavo (Lisboa, 1576), aparecem duas ilustrações xilográficas assinadas Jeronimo Luiz. Uma delas retrata a execução de um prisioneiro por um grupo de indígenas, e a outra uma imagem, mais engraçada do que amedrontadora, da criatura marinha que irrompeu dos mares em 1564
Procedendo em 1976 ao levantamento das imagens de indígenas das Américas produzidas por europeus até 1590, William C. Sturtevant chegou a elencar exatas 268, nesse número incluídas as ilustrações em livros e mapas. Nesse ano de 1590, porém, abriu-se um novo capítulo na história da iconografia americana e brasileira, com o início da publicação em Frankfurt de uma coleção de livros enfeixando praticamente toda a literatura até então produzida por descobridores, navegantes e aventureiros sobre as terras exóticas da América, África e Ásia, em textos latino e alemão acompanhados de numerosas ilustrações. Essas Narrationes Peregrinationum ou Schiffarten dividiam-se em duas séries - as Grandes Viagens, consagrada à América, e as Pequenas Viagens, dedicada à África e à Ásia. Eram uma iniciativa do ourives e gravador flamengo Theodore de Bry (1528-1598), continuada após sua morte por seus filhos e genro. Até 1630 tinham sido publicados 25 volumes, compondo uma gigantesca enciclopédia do exotismo fartamente ilustrada com gravuras em metal feitas a partir de desenhos originais dos mais diversos autores. Em 1631, ao mesmo tempo em que dava continuidade à publicação das Narrationes, o genro e sucessor de De Bry, Matthäeus Meryan (1593-1650) iniciava novo e mais ambicioso projeto editorial: a Historia Antipodum oder Newe Welt etc., abarcando em mais de 600 páginas de grande formato, 173 gravuras e sete mapas, todos os relatos de viagens à América, inclusive os de Hans Staden, Jean de Léry e Aldenburgh relativos ao Brasil.
Para encerrar citem-se as duas gravuras m metal que ilustram a Histoire de la mission des pères Capucins en L’Isle de Maragnan, de Claude d’Abeville (Paris, 1614), e sua continuação, a Suite de l’Histoire des Choses plus memorables advenuës en Maragnan ès annés 1613 & 1614, de Yves d’Evreux (Paris, 1615. Representam três tupinambás levados do Maranhão para a França, onde receberam o batismo, foram apresentados ao Rei e despertaram a curiosidade do poeta François Malherbe, além de terem motivado a um dos principais compositores franceses da época, Gautier, uma sarabande com motivos indígenas. Os tupinambás envergam trajes europeus, mas exibem seus cocares e tembetás, fazendo vibrar seus maracás.
Graças ao mecenato artístico desempenhado por Dom João III, puderam estudar na Itália pintores maneiristas como Gaspar Dias, António Campelo, Francisco Venegas, Fernão Gomes e o miniaturista Francisco de Holanda, que em Roma se tornou amigo de Michelangelo. Deve registrar-se a permanência em Lisboa, nos começos da segunda metade do Séc. XVI, do excelente pintor maneirista flamengo Anthonis Mor e do seu discípulo espanhol Sánchez Coello. Apesar de tudo isso, a segunda metade do Séc. XVI representa para as artes em Portugal um momento de decadência generalizada, que ainda mais se acentuaria após 1580, quando Portugal passa ao domínio de Espanha, do qual só se libertaria muitos anos mais tarde, já pelos meados do Séc. XVII. Documento revelador quanto ao estado da pintura e à baixa condição profissional dos pintores portugueses da época é o Regimento dos Pintores de Lisboa, de 1572, no qual o legislador distingue entre três categorias de pintores: os executantes a óleo; os que pintavam a fresco ou a têmpera; e os encarnadores de imagens. Após isto especificava que qualquer um deles podia também pintar portas, janelas ou paredes.
Esboçamos acima em linhas muito gerais o que era a pintura portuguesa no decurso do Séc. XVI, para melhor situar as primeiras manifestações pictóricas dessa arte transplantada ao Brasil. Aqui, no primeiro século da colonização não foram trazidos, evidentemente, pintores, mas sim administradores, muitos soldados, alguns mestres-de-obras e artífices, centenas de degredados e, após 1549, com os primeiros jesuítas missionários. E seriam estes, justamente os primeiros pintores europeus ativos no Brasil, suprindo com maior ou menor habilidade sua falta de aprendizado profissional. Trabalhavam para a edificação dos fieis, a salvação das almas e a maior glória de Deus e de sua Igreja. Obra de religiosos, era de esperar que a pintura do Séc. XVI - como de modo geral toda a pintura realizada no Brasil Colonial - viesse a ser, como foi, exclusivamente religiosa, com mínima incidência de retratos e umas raras (e toscas) representações paisagísticas servindo de fundo a cenas da vida de Cristo e dos santos.
Entre poucos nomes a realçar, todos de obra ignorada, citem-se os jesuítas Manoel Álvares, que esteve alguns meses na Bahia em
Ao longo da primeira metade do Séc. XVII, mas ainda de alguma forma ligados ao Séc. XVI, haveria que citar, entre poucos outros, em Pernambuco, os flamengos João Batista (protestante, convertido ao Catolicismo em 1606) e Remacle Le Gott (vindo em 1628); na Bahia Antonio Bastos, Aleixo Cabral, André Rodrigues e Manoel Pinheiro. E no Maranhão Frei Cristóvão de Lisboa, chegado em 1624, primeiro Custódio da Ordem Franciscana no Maranhão, autor de um precioso manuscrito com desenhos de animais e plantas que antecedem em mais de uma década o que fariam no gênero os chamados pintores de Nassau.
Entre os pintores de que dispunha o Conde no Brasil apenas dois, ambos holandeses, são suficientemente conhecidos: Frans Post, paisagista, e Albert Eckhout, pintor de tipos etnográficos e de naturezas-mortas.
O próprio Nassau, em carta de 1678 remetida ao Marquês de Pomponne, ministro de Luís XIV de França, afirmou ter tido aqui sob suas ordens seis pintores. Até hoje os especialistas discutem sobre quem terão sido os outros quatro. É possível que Nassau tenha incluído, na relação dos seus pintores, seu compatriota e moço-de-cozinha Zacharias Wagener, que nas horas vagas pintou as singelas aquarelinhas que compõem o Livro dos Animais. Talvez outro alemão, Georg Marcgraf, astrônomo, cientista e autor de ilustrações cartográficas. Quem sabe Jan Vingboons, cartógrafo profissional que bem pode ter produzido pinturas, até porque descendia de uma dinastia de pintores. Sabe-se igualmente que o grande marinhista Abraham Willaerts veio ao Brasil acompanhando Nassau, aqui permanecendo pouquíssimo tempo, pois logo embarcou para Angola de onde retornou à Europa. E admite-se que o arquiteto e pintor Pieter Post, irmão mais velho de Frans, tenha também se demorado alguns meses
A permanência, dos artistas de Nassau no Nordeste, representa um episódio isolado e dos mais interessantes da História da Pintura Brasileira, pois não deixaram discípulos ou continuadores. O fato se reveste de importância também para a História da Arte ocidental, pois corresponde cronologicamente à primeira investida da arte holandesa fora do continente europeu. Além disso, por não serem católicos, esses pintores puderam entregar-se livremente a gêneros pictóricos até então jamais praticados no Brasil. Aqui foram os primeiros, a nível profissional, a fixarem a paisagem, os habitantes, a fauna e a flora. As pinturas e desenhos de Post, Eckhout e provavelmente outros artistas de Nassau, foram aproveitadas como cartões de tapeçarias pela Manufatura dos Gobelins e divulgadas em sucessivas tiragens até vésperas da II Guerra Mundial. Foi em grande parte como conseqüência destes fatos que a partir de fins do Séc. XVII, as artes decorativas conheceram enorme voga principalmente em França e também em outros países da Europa.
Albert Eckhout, Mameluca
Zacharias Wagener, Tamanduá
Franz Post, Cachoeira de Paulo Afonso.
Frontispício do livro de Gaspar Barlaeus
Rerum per Octennium, 1647.
A partir da década de 1660 trabalharam no Maranhão os jesuítas João Filipe Bettendorf, nascido em Luxemburgo, e o holandês Baltazar de Campos, autor de uma série de pinturas sobre a Vida de Cristo, que outrora se conservava na primitiva sacristia da Igreja de São Francisco Xavier em Belém do Pará.
Eusébio de Matos (Frei Eusébio da Soledade) irmão do célebre poeta Gregório de Matos, passa por ter sido aluno de um dos pintores holandeses de Nassau, o que é muito pouco provável. Mesmo que Albert Eckhout tenha estado em 1640 na Bahia, como sustenta antiga tradição, Eusébio, nascido em 1629, teria na ocasião pouco mais de 10 anos. De qualquer modo, nenhuma obra sua chegou até nossos dias, embora muitas lhe sejam atribuídas. Também ativos na Bahia foram Antonio de Lustosa, comissionado em 1679 pela Santa Casa de Misericórdia para pintar sua bandeira. E Lourenço Veloso, nascido em Goa e de quem apenas sobrevive uma pintura datada de 1699 - o Retrato do Capitão Francisco Fernandes da Ilha, da Santa Casa de Misericórdia de Salvador. O historiador da arte bahiana Carlos Ott chegou a perceber influências de Rembrandt e El Greco. Além desses, existe uma série de vultos menores mencionados em documentos de arquivos, como Vicente Rodrigues (1652), Francisco Rodrigues (1659), Domingos Rodrigues (jesuíta que entre 1660 e 1706 realizou douração de talhas e pintou quadros para a Catedral de Salvador, onde ainda podem existir obras de sua autoria); Luís Grem (1673-1697); Francisco Nunes (1675-1697); José Pereira da Costa (1682-1688) e uma dúzia de outros.
Oratório, Minas, século XVIII
O Séc. XVIII é considerado a Idade de Ouro do Brasil (na expressão de Charles R. Boxer), por ser aquele em que se descobriram quantidades significativas de ouro e pedras preciosas, numa região que por isso mesmo se tornaria conhecida como das Minas Gerais. O fato de Minas ter servido de cenário nesse período para um surto de efervescência artística, não foi mera coincidência. Na América Colonial portuguesa e espanhola foi justamente em zonas de mineração como Taxco no México, Potosi na Bolívia ou Ouro Preto no Brasil, que se localizaram os principais centros de irradiação artística e cultural.
Comparado ao Barroco hispano-americano, o brasileiro apresenta-se menos rebuscado e mais sóbrio. Desenvolvido desde cedo por mão-de-obra negra e principalmente mulata, ficou mais próximo do povo. Essa mulatização do Barroco no Brasil acabou emprestando sabor peculiar à arte brasileira do Setecentos, nela obviamente também incluída a pintura, transformando-a numa variante dialetal da linguagem original. Observando atentamente as várias vertentes em que se disseminou o Barroco pelo país, ver-se-á que a rigor podem ser resumidas a duas apenas. O Barroco litorâneo, de Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro, e o Barroco interiorano, que é principalmente o de Minas Gerais, ciosamente protegida por suas montanhas. No litoral, o Barroco trazido da Europa manteve-se menos independente, mais atado à Metrópole. No interior o estilo viu-se obrigado pelas circunstâncias a adotar soluções próprias, tornando-se mais original. Por isso, muitos estudiosos costumam ver na arte mineira do Séc. XVIII a expressão mais brasileira do Barroco no Brasil, enquanto a arte de Pernambuco, por exemplo, conserva-se bem mais "portuguesa". Há ainda uma outra distinção fundamental entre o Barroco mineiro e o pernambucano: êsse último reflete os gostos de uma sociedade rural aristocrática, sendo por conseguinte mais requintado, enquanto aquele nasce numa sociedade urbana e ideologicamente burguesa, enriquecida a duras penas na mineração e avessa a ostentações.
No Brasil do Séc. XVIII a pintura, do mesmo modo que as demais artes e ofícios, continuava sendo praticada, ensinada e orientada por religiosos jesuítas, beneditinos, franciscanos, dominicanos, terésios etc. Sendo esses padres, monges, frades ou irmãos terceiros não somente portugueses, mas também alemães, franceses, italianos, espanhois, austríacos, belgas e de outras nacionalidades, ocorreu que muitas características e peculiaridades de diversos estilos nacionais contribuíram para o enriquecimento do Barroco Brasileiro. Também persistem na arte brasileira do Setecentos, como em geral nas diversas manifestações artísticas da América Colonial, ingredientes estilísticos que nada têm a ver com o Barroco - maneiristas, renascentistas, góticos, românicos, para não falar nos fortíssimos componentes africano e asiático, o que ainda mais contribui para a sua fisionomia peculiar.
Na pintura setecentista brasileira predomina a temática religiosa, embora existam retratos, umas raras decorações de tema profano e até pagão e ainda mais escassas interpretações estilizadas da paisagem local. A pintura de cavalete só excepcionalmente foi praticada, com ênfase na pintura arquitetônica. Sobretudo após 1732 experimentou grande desenvolvimento a pintura perpectivista ou di sotto in sù, invenção jesuítica . Em nosso país, mencionem-se Caetano da Costa Coelho, Manoel da Costa Ataíde, José Joaquim da Rocha e João de Deus Sepúlveda, entre outros. Diga-se ainda que raras vezes a pintura trocou a atmosfera de igrejas e conventos pelo ambiente familiar. Desempenhando função ao mesmo tempo religiosa e social, poucas pessoas a tiveram em suas moradas, fossem elas palácio ou mansão.
Tal como sucedeu com a pintura colonial na América Hispânica, os pintores setecentistas brasileiros socorreram-se de modelos europeus para produzirem suas próprias composições. Procuraram não em outras pinturas - não as havia por aqui - porém em estampas e ilustrações de missais, breviários e livros de horas flamengos, franceses, italianos etc. Daí resulta a singular dicotomia que oferecem certas obras, nas quais uma composição apurada, segundo os melhores preceitos da arte, contrapõe-se ao desenho ingênuo e ao colorido singelo. Estes modelos europeus emprestam a muitas pinturas brasileiras do Séc. XVIII ou já do Séc. XIX aparência bem mais antiga: como entender de outro modo que uma obra repleta de pormenores arcaicos ou primitivos, por exemplo, a Ceia de Ataíde, foi na verdade pintada em 1828?
As principais regiões de produção pictórica no Séc. XVIII foram Bahia e Pernambuco, Minas Gerais e Rio de Janeiro, seguindo-se outras, como São Paulo, Grão-Pará ou Mato Grosso, em que essa arte não conheceu desenvolvimento particularmente notável. Em cada uma destas ultimas regiões, embora sejam conhecidos os nomes de vários pintores e a autoria de diversas obras, prevalecem as pinturas de paternidade ignorada à espera de quem as identifique. Tarefa ainda agravada pelo mau ou péssimo estado de conservação em que se encontram quase todas. Além disso, em recibos e termos de empreitadas conservados em arquivos, há freqüentes menções a nomes de pintores, sem que se possa identificar ao certo as obras a que possam ter dado origem.
Manuel da Costa Ataíde, Flagelação de Cristo.
Cômoda brasileira do século XVIII em jacarandá e marfim.
São Francisco de Assis, Diamantina, Minas Gerais.
J
osé Joaquim da Rocha, O Sepultamento.
João de Deus Sepúlveda, Igreja de Nossa Senhora da Conceição dos Militares, Recife,
detalhe de A Batalha dos Guararapes.
Pintura barroca no Mosteiro de Santo Antônio,
Capela Dourada, Recife.
Quando a Missão Artística Francesa aportou ao Rio de Janeiro, já havia algum tempo que Napoleão fora derrotado. Por essa razão muitos dos que a integravam tinham sido obrigados a deixar a França, sob a acusação de terem servido ao Imperador deposto. Resta saber se, como se pensava até recentemente, , os franceses da Missão foram convidados ou se, como é mais plausível e hoje comumente aceito, se ofereceram para trabalhar no Brasil. Convidados ou não, em 26 de março de 1816 desembarcavam no Rio Joachin Lebreton, chefe da Missão, grande latinista, um dos fundadores do Louvre e antigo secretário da classe de Belas Artes do Instituto de França. Os pintores Nicolas-Antoine Taunay, acompanhado de toda a família. E Jean-Baptiste Debret, o arquiteto Grandjean de Montigny, o escultor Auguste-Marie Taunay, o gravador Charles Simon Pradier, o músico Segismund Neukom e ainda artesãos como Ovide, Pilité, Level, Roy e Enout . A intenção inicial não era, como se vê, criar uma Academia de Belas Artes, mas sim um liceu onde se ensinassem todas as artes e ofícios. Por isso é que, ao ser oficialmente fundado em 13 de agosto de 1816, o estabelecimento de ensino dirigido por Lebreton recebeu o nome de Escola Real das Ciências, Artes e Ofícios, substituído sucessivamente pelos de Real Academia de Desenho, Pintura, Escultura e Arquitetura Civil, Academia das Artes, Academia Imperial das Belas Artes e, em 1826, Imperial Academia e Escola de Belas Artes.
Quando os membros da Missão chegaram ao Brasil, ainda estavam em plena atividade muitos dos nossos mais importantes pintores coloniais, como Manuel da Costa Ataíde em Minas, Franco Velasco na Bahia e Manoel Dias de Oliveira (dito o Brasiliense) no Rio. Ataíde, inclusive, solicitaria a Dom João VI, em
As dificuldades que os franceses da Missão encontraram no Brasil só aumentaram com a morte de Lebreton em 1819 e a conseqüente nomeação do novo diretor da Academia, o pintor português Henrique José da Silva. Este obviamente favorecia seus compatrícios em detrimento dos estrangeiros. Não suportando a guerra movida pelo novo diretor, Nicolas-Antoine Taunay regressou à França em 1821. E não fora pela obstinada determinação de Debret, a Academia teria fracassado, tantas vezes teve de ser adiado o início de seu funcionamento, afinal ocorrido em 1826.
Nicolas-Antoine Taunay foi o mais importante artista da Missão de 1816. Parisiense, dedicou-se inicialmente à paisagem, fixando cenas de Fontainebleau e de florestas vizinhas à capital, além de pintar minúsculas figuras em composições de pintores como Swenbach e Bruandet. Mais tarde deu provas de grande versatilidade, praticando vários gêneros. Era um dos artistas prediletos de Napoleão, para quem pintou várias cenas de batalha, e da Imperatriz Josefina. A queda do Império obrigou-o a embarcar aos 61 anos para o longinquo Brasil onde, por cinco anos, continuou pintando seus pequeninos quadros de assunto bíblico, mitológico ou histórico, cenas de gênero e deliciosos retratos infantis, além de umas 30 paisagens da Floresta da Tijuca e vistas do Rio de Janeiro. Êsse artista, cujo prestígio tem aumentado em anos recentes, é sob muitos aspectos o herdeiro e continuador dos paisagistas holandeses do Séc. XVII, porém tocado pela visão renovadora de Joseph Vernet e pelas invenções pré-românticas de Francesco Casanova.
Não tão grande artista quanto Taunay, Debret foi a verdadeira alma da Missão. Aparentado a dois grandes pintores franceses, Boucher e David (a quem acompanhou muito jovem à Itália), a partir de 1806 voltou-se para as grandes composições de tema napoleônico, muitas delas encomendas oficiais, de títulos extensos como Napoleão em Tilsit condecorando com a Legião de honra um Bravo do Exército Russo. A queda de Napoleão e o desgosto pela morte de um filho fizeram-no partir para o Brasil, onde se demorou até 1831. Desenvolveu em nosso país intensa atividade como pintor de história, cenógrafo, decorador, professor de pintura e animador cultural. Ao deixar o Brasil levou seu melhor aluno, Manuel de Araújo Porto-alegre. Lente da Academia em 1820, esperaria mais alguns anos até abrir um ateliê freqüentado a princípio por cinco alunos, número que em 1827 aumentaria para 38 (dos quais 21 na classe de pintura). Nesse ano finalmente ficou pronto e entrou em funcionamento o edifício da Academia, projetado por Grandjan de Montigny. Em 1829 organizou a primeira exposição pública de arte realizada no Brasil, com catálogo pago de seu próprio bolso. Entre 1834 e 1839, em Paris, publicou a obra que hoje lhe garante maior notoriedade: Voyage Pittoresque au Brésil.
Sucessor de Lebreton na direção da Academia, que dirigiria de 1819 até 1834 quando morreu (sendo então substituído pelo filho mais velho de Nicolas-Antoine Taunay e bom paisagista Félix-Emile Taunay), o português Henrique José da Silva estudou em Lisboa com Pedro Alexandrino de Carvalho. Veio para o Brasil a convite do Barão de São Lourenço. Fez sempre o possível para estorvar a ação dos artistas franceses da Missão. Ele está bem longe de ser o pintor medíocre que alguns historiadores tentaram impingir-nos, tendo sido em verdade retratista de bons recursos.
Quanto aos discípulos de Debret, merecem destaque Francisco Pedro do Amaral, último representante da chamada Escola Fluminense de Pintura e autêntico elemento de ligação entre a pintura colonial setecentista e os novos ideais estéticos de começos do Séc. XIX ; os portugueses Simplício Rodrigues de Sá e José de Cristo Moreira, aquele pintor religioso e retratista, e este, dos nossos primeiríssimos paisagistas e marinhistas; o retratista Francisco de Souza Lobo; o pintor de flores José Reis Carvalho. E, acima de todos, o já citado Porto-alegre, pintor, arquiteto, cenógrafo, caricaturista, escritor, poeta, libretista, político, diplomata, fundador da Crítica e da História da Arte no país, um dos introdutores do Romantismo no Brasil. É autor de 135 obras literárias e 20 peças de teatro, além de ter sido professor de Pintura Histórica e, entre 1854 e 1857, diretor da Academia Imperial de Belas Artes, na qual lhe coube formar alunos como Augusto Müller, Agostinho José da Mota, José Correia de Lima, Manoel Joaquim de Melo Corte Real, Francisco Nery e Jean Leon Pallière Grandjean de Ferreira, os quais se tornariam também vultos destacados da jovem Escola Brasileira.
À margem da Academia deve-se mencionar a atuação, na província, de uns poucos autodidatas, dos quais talvez o mais destacado e típico terá sido Miguel Arcanjo Benício da Assunção Dutra ou Miguelzinho, paulista de Itu, fundador de uma dinastia de artistas ativa até nossos dias e que foi, além de arquiteto, escultor, ourives e músico, pintor de aquarelas singelas, nas quais retratou tipos populares com verve e espontâneidade.
Manuel Dias de Oliveira, O Brasiliense,
D. João VI e D. Carlota Joaquina.
Nicolas Antoine Taunay, Moisés salvo das águas.
Jean-Baptiste Debret. Botica.
Manuel de Araújo Porto-Alegre, Sagração de D. Pedro II.
Augusto Müller, Retrato do arquiteto Grandjean de Montigny
Miguel Arcanjo B. A. Dutra, Festa do Divino.
O mais antigo desses artistas-viajantes, como entre nós ficariam conhecidos, parece ter sido o tenente holandźs Quirijn Maurits Rudolph Ver Huell. Forēado a permanecer vįrios meses em Salvador entre 1807 e 1810, na ocasićo executou diversas aquarelas do que logrou observar na velha cidade. Mais ou menos pela mesma época desembarcava no Rio de Janeiro o comerciante inglźs Richard Bate, cujas ingźnuas cenas aquareladas da vida na jovem Corte só seriam divulgadas em 1965, reunidas num įlbum litogrįfico.
O portuguźs Joaquim Cāndido Guillobel, chegado ao Rio em 1811, deixou numa série de desenhos um delicioso retrato da sociedade do Rio de Janeiro de comeēos do Séc. XIX. Sob muitos aspectos revelou-se, como dele escreveu Marques dos Santos, "mais palpitante do que Debret, mais original do que Rugendas".
Filho de um diplomata inglźs e oficial de Marinha, Henry Chamberlain chegou ao Rio em 1815, publicando sete anos depois na Inglaterra o įlbum Vistas e Costumes da Cidade e Arredores do Rio de Janeiro. Outro oficial de Marinha inglźs, Emeric Essex Vidal, de passagem em 1816 pelo Atlāntico Sul, publicou em 1820 o įlbum Ilustraēões Pitorescas de Buenos Aires e Montevideo, o qual nćo deixou de incluir algumas paisagens do Rio e suas imediaēões.
O Conde de Clarac esteve em 1816 no Brasil, tendo executado desenhos que Humboldt considerou a representaēćo mais fiel da natureza dos Trópicos. Muito mais importante do que ele, pintor de sólida formaēćo profissional, foi o austrķaco Thomas Ender, paisagista de grande sensibilidade que em 1817 integrou a comitiva da futura Imperatriz Leopoldina, documentando aspectos do Rio de Janeiro, Minas e S.Paulo em centenas de aquarelas e desenhos. Da mesma comitiva participou seu compatriota de menor fōlego Franz Josef Frühbeck, que em 1829 expōs em Viena pinturas feitas a partir dos guaches executados doze anos antes no Brasil.
Augustus Earle, que estudou na Royal Academy de Londres e foi amigo do célebre Turner, esteve trźs vezes no Brasil entre 1820 e 1832, na śltima a bordo do Beagle como desenhista da expediēćo cientķfica de Darwin. Sua obra de temįtica brasileira é mķnima - umas 20 aquarelas e desenhos conservados na Austrįlia, que se caracterizam pela finura da execuēćo, pelo senso de observaēćo e pelo cįustico humor (Coroaēćo de Dom Pedro I, por exemplo). Sćo de Augustus Earle vįrias ilustraēões do Diįrio de uma viagem ao Brasil e residźncia durante parte dos anos 1821, 1822 e 1823, de Maria Graham. Esta, em 1824-1825 se tornaria preceptora da princesinha Maria da Glória e mais tarde seria a autora de um clįssico da literatura infantil inglesa, Little Arthur History of England.
Membro de uma famķlia de artistas ativa em Augsburg desde os comeēos do Séc. XVII, o alemćo Johann-Moritz Rugendas partiu para o Brasil aos 19 anos, fascinado pelo que vira da natureza do paķs numa exposiēćo de Thomas Ender
Charles Landseer acompanhou em 1825 ao Rio de Janeiro o diplomata inglźs Charles Stuart, de quem era pintor particular. Nos 345 desenhos e aquarelas que durante dois anos fez no Brasil, representou com sensibilidade paisagens, tipos e costumes do paķs. Eles só foram localizados em 1924, em poder de um descendente do diplomata. Em companhia de Stuart também esteve no Rio de Janeiro, em 1825 e 1826 o famoso botānico inglźs William John Burchell. Seu Panorama do Rio de Janeiro seria, na opinićo de Gilberto Ferrez, "nćo só o mais artķstico, como o melhor, pela perspectiva, absolutamente correta, e pelos detalhes arquitetōnicos finamente trabalhados". Da mesma época é um įlbum de litografias publicado em Londres em 1826, Cenas da Vida Portuguesa, no qual sćo ridicularizados com fina ironia os costumes luso-brasileiros de inķcios do Séc. XIX, como a cerimōnia do beija-mćo a Dom Joćo VI e a apresentaēćo de um castrato no Rio de Janeiro. O autor, que se assina com as iniciais APDG, nćo foi identificado.
O alemćo Karl Robert, Barćo de Planitz, chegou em 1832 ao Rio de Janeiro, onde faleceu ainda moēo, vitimado pela febre amarela. Homem de muitos talentos, foi desenhista, escultor, escritor, mśsico, arqueólogo, professor de linguas e heraldista, tendo deixado aquarelas do Rio e suas imediaēões, modelos de uniformes militares, atlas herįldicos e outros.
Paulo Harro-Harring permaneceu alguns meses no paķs em
O francźs Quinsac de Monvoisin desembarcou no Rio de Janeiro em 1847 após ter trabalhado no Chile, e pouco se demorou no Brasil, onde obteve grande sucesso o seu Retrato do Imperador Pedro II mostrado na Exposiēćo Geral de Belas Artes. Foi bom paisagista e pintor de costumes. Fecharemos a presente relaēćo com Ferdinand Krumholz, que nasceu na Morįvia, estudou em Roma e Paris e entre 1848 e 1853 se tornou, no Rio de Janeiro, um dos retratistas prediletos do Império.
Richard Bate, Arcos e Santa Teresa
Joaquim Cândido Guillobel, Negro vendedor.
Johann-Moritz Rugendas, Numa fazenda.
Quinsac de Morvoisin, Igreja da Glória.
Mesmo com todas essas precauções, nossos artistas, ao visitarem as Exposições Universais que desde 1855 e a intervalos aproximados de 11 anos eram realizadas em Paris, cada uma delas compreendendo também enormes exposições de pintura, escultura e artes decorativas, começavam confusamente a perceber que a arte não se congelara em começos do Séc. XIX. Ao contrário, continuava seu curso, renovada de tempos em tempos por novos tipos de visão e sensibilidade. Ao regressarem ao Brasil, traziam alguma forma de inquietação, alguma nova idéia ou informação que logicamente acabariam por repercutir em sua produção artística, pelo menos até que a indiferença ou o reacionarismo do meio os forçasse a mudar de rumo e retomar o conservadorismo inicial. Por isso, longe do Brasil, desfrutando de seus prêmios ou simplesmente de passagem pela Europa, nossos pintores se revelavam mais ousados e abertos às novas tendências. Na volta da viagem voltavam a ficar submissos ao marasmo tradicional.
A Exposição Universal de 1855 pusera um ponto final no confronto entre os adeptos do Neoclassicismo de Ingres e os seguidores de Delacroix e do Romantismo, com a vitória dos últimos. Courbet, cujas obras tinham sido rejeitadas pelo júri, armou a pouca distância do recinto da mostra, em sinal de protesto, o Pavilhão do Realismo. Na Exposição seguinte, de 1867, o vilão de 1855 passara a heroi. Courbet e o Realismo se impunham, ao mesmo tempo em que os Pré-Rafaelitas ingleses começavam a despertar admiração. Dessa vez, porém, Manet é quem fora cortado e, inconformado, expunha num pavilhão improvisado. Já a Exposição Universal de 1878 marcaria o início da consagração de Manet e do Impressionismo. A de 1889, o triunfo do Simbolismo, e a de
Em meados do Séc. XIX os artistas ainda priorizavam a pintura de história, aí compreendidos temas históricos propriamente ditos e mais assuntos religiosos, literários ou mitológicos; vinha em seguida a figura humana - retrato, nu, alegoria - e só depois a pintura de gênero, a paisagem, a marinha, e enfim a natureza-morta. Ser pintor de história, como Vítor Meireles ou Pedro Américo, era poder dominar, do topo da hierarquia das artes, todos os demais gêneros pictóricos. Algo assim como em música um compositor sinfônico. Menor importância era concedida aos paisagistas, e mínima aos pintores de flores e naturezas-mortas, desdém que decerto explica porque paisagens e naturezas-mortas só tardiamente ocorrem na pintura oitocentista brasileira. A Guerra do Paraguai, entre 1864 e 1870, proporcionou a Vitor Meireles, Pedro Américo e De Martino temas que eram pretextos para a glorificação do Império. É triste constatar que, ao contrário do que aconteceu na literatura e mesmo na música, o problema da escravidão negra ( que só seria resolvido às vésperas da República) não mereceu qualquer condenação por parte de nossos pintores. Fingiram ignorá-lo, certamente porque dependiam estreitamente de uma clientela formada em sua maior parte por intransigentes escravocratas.
Escrevendo em 1915 acerca da atividade artística nos quase 50 anos que medeiam entre a Maioridade e a queda do Império, dizia Araújo Viana que, para estudá-la, "bastava tomar como elemento inicial ou fundamental a efígie do imperador menino, adolescente, imberbe, com pouca barba, completamente barbado, e encanecido; o imperador, em todos os tempos, com todas as idades.... representado com a indumentária magestática ou imperial, uniformizado de almirante ou generalíssimo, de casaca preta ou sobrecasaca; o sr. D. Pedro II de perfil ou não, em busto, em pé, sentado ou a cavalo".
Mas o prestígio do retrato estendia-se para muito além da figura do Imperador. Faziam-se retratar todos, da Família Imperial aos nobres e plebeus, militares e prelados, desembargadores e comerciantes, o que aliás atraiu também a nosso país bom número de razoáveis retratistas estrangeiros, inclusive fotógrafos. Representava-se a mulher, por vezes sob a forma de alegorias. Cenas de gênero, paisagens, marinhas e naturezas-mortas também surgem na pintura brasileira da segunda metade do Séc. XIX, embora não sejam tão numerosas nem despertem maior entusiasmo.
Contra tal cenário é se desenvolveu a atividade de Vítor Meireles, Zeferino da Costa, Pedro Américo e Almeida Júnior, entre muitos outros.
José Wasth Rodrigues, Uniforme militar do final da monarquia.
Pedro Weingärtner, Paisagem.
Pedro Américo de Figueiredo e Melo, Fausto e Margarida.
Augusto Rodrigues Duarte, Cascata da Tijuca.
Vitor Meireles, Batalha Naval do Riachuelo.
Molheira com Prato da Imperatriz D. Amélia de Leüchtenberg,
segunda mulher de D. Pedro I.
segunda mulher de D. Pedro I.
Pedro Weingärtner,
Embaixatriz Maria Luisa Magalhães de Azeredo.
D. Pedro II, litografia de Marvin Lavigne.
O período entre a Proclamação da República e a Semana de 1922 foi de intensa efervescência cultural. Não apenas no que respeita às artes visuais e à arquitetura, também nos domínios da música e da literatura. Em música, por exemplo, poderiam ser destacados nomes como os de Leopoldo Miguez (1850-1902), cuja ópera wagneriana Saldunes, de 1901, possui libreto do pintor e poeta simbolista Heitor Malaguti; Glauco Velasquez (1884-1914), marcado por Wagner e César Franck; Henrique Oswald (1852-1931), influenciado por Fauré e pai do pintor Carlos Oswald; Francisco Braga (1868-1945), aluno de Massenet e mais tarde wagneriano convicto, contemporâneo do pintor Batista da Costa no Asilo dos Menores Desvalidos do Rio de Janeiro; Barroso Neto (1881-1941); Luciano Gallet (1893-1931), que sentiu o impacto de Darius Milhaud e Debussy; ou o também wagneriano Alberto Nepomuceno (1864-1920). Entre os poetas e prosadores poderiam ser citados, entre muitos outros, Henrique Coelho Neto (1864-1934) e Graça Aranha (1868-1931), que ocupariam posições antípodas na disputa estética que se seguiria à irrupção do Modernismo em 1922. O primeiro autodefinindo-se o último dos Helenos, e Graça Aranha dando seu aval aos jovens participantes da Semana de Arte Moderna e inclusive rompendo em 1924 com a Academia Brasileira de Letras que ajudara a fundar; Alphonsus de Guimarães (1870-1921), Lima Barreto (1881-1922), Monteiro Lobato (1882-1947), Augusto dos Anjos (1884-1914), Adelino Magalhães (1887-1969), Raul de Leoni (1895-1926) ou Manuel Bandeira (1886-1962), não o Bandeira de Ritmo Dissoluto, mas o poeta ainda simbolista de A Cinza das Horas. Esses músicos e escritores são correspondentes aos pintores de que nos ocuparemos, alguns permeáveis às novas tendências e formas de expressão, outros recusando-se até a examiná-las, encaramujados em suas velhas fórmulas.
No dia 1º de janeiro de 1901, iniciando-se o Séc. XX, viviam ainda, e produzindo, quase todos os pintores brasileiros da segunda metade do Séc. XIX formados técnica, estilística e ideologicamente à sombra da Academia Imperial de Belas Artes. Inclusive três dos quatro principais: Vítor Meireles (f. 1903), Pedro Américo (f. 1905) e Zeferino da Costa (f. 1916), devendo observar-se que o quarto, Almeida Júnior, fora assassinado em 1849 aos 49 anos de idade. Apenas três dias antes do novo século morria o marinhista Castagneto; um ano antes, em 1899, Gonzaga Duque, pela boca de um dos personagens de seu romance Mocidade Morta insurgia-se contra "os estafados preceitos do academismo, o sistema métrico das concepções guiadas, os dogmas estéticos do ensino oficial". Em palavras contundentes passava o atestado de óbito da pintura brasileira, que via subordinada ainda aos "arcaicos processos onânicos da pintura friccionada, esbatida e raquítica, sem nervos, sem sangue, sem alma!" Embora não o dissesse expressamente, o crítico indicava aos pintores nacionais o Impressionismo como um caminho válido, o que não deixa de ser desconcertante partindo de um simbolista de primeira hora, e até porque no momento em que publicou seu romance o Simbolismo constituía um movimento bem mais avançado que o Impressionismo. Apesar de que ainda continuavam em atividade alguns dos impressionistas históricos, inclusive seu grande criador Claude Monet, só falecido em 1926. Também se esvaziara, havia muito, o Neo-Impressionismo, que se revelara incapaz de sobreviver à morte prematura de seu grande criador Georges Seurat. Seu princípio básico da mistura ótica das cores aplicadas em pequenos toques do pincel transformara-se num mero recurso de métier à disposição de artistas de todas as tendências.
Impressionismo à Brasileira
Nos anos finais do Oitocentos e começos do Séc. XX poucos pintores brasileiros da geração nascida no último terço do Séc. XIX começaram a produzir obras quando não impressionistas, ao menos fieis àquilo que entendiam ser o Impressionismo. A introdução desse estilo no Brasil fez-se portanto tardiamente, no momento em que na França começavam a surgir as primeiras obras fauves e cubistas. Se levarmos em conta que fora de França o Impressionismo e o Neo-Impressionismo só lograriam impor-se mais ou menos pela mesma época em que se manifestaram em nosso país, ver-se-á que a contribuição de artistas como Visconti, Rafael Frederico, Lucílio e Georgina de Albuquerque, Carlos Oswald e poucos mais não foi assim tão defasada a nível internacional. Mais ou menos da idade de Visconti, que nasceu em 1866, eram muitos dos precursores não-franceses do Impressionismo em seus respectivos países. Por exemplo, o italiano Plinio Nomellini (1866-1943), o alemão Max Libermann (1867-1935), o russo Valentin Serov (1865-1911), o canadense James Wilson Morrice (1865-1911), o mexicano Joaquín Clausell (1866-1935) ou o argentino Martin Malharro (1865-1911). Ainda mais moços que ele, e praticando um Impressionismo à francesa ou mesclado a tendências locais foram o belga Henri Evenepoel (1872-1899), o alemão Max Slevogt (1868-1932), os uruguaios Pedro Blanes Viales (1879-1926) e Miguel Carlos Victorica (1884-1955), o argentino Fernando Fader (1879-1935) e o venezuelano Armando Reverón (1889-1954). Visconti não foi decerto o primeiro impressionista latino-americano, pioneirismo que talvez caiba ao venezuelano Emilio Boggio (1857-1920), discípulo de Henri Martin e amigo de Pissarro e de Sisley, talvez ao também venezuelano Rojas (1858-1898), quem sabe ao argentino Eduardo Sívori (1847-1918), todos eles já impressionistas na década final do Séc. XIX. Contudo Visconti foi um dos primeiros pintores da América Latina a incorporar à paleta recursos impressionistas, e também seria dos primeiros a flertar com Simbolismo e a aplicar a gramática do Art Nouveau a seu incipiente desenho industrial.
Por volta de 1914, no Brasil, como em toda a América Latina e decerto em todo o mundo ocidental, raros eram os artistas que não tinham sentido com força maior ou menor o impacto do Impressionismo. Entretanto, ao menos entre nós, poucos possuíam uma noção precisa do estilo. A tal respeito é elucidativa a confusa resposta que Georgina de Albuquerque deu a Angyone Costa quando indagada - em 1927! sobre o tipo de arte que vinha fazendo: "É uma feição moderna, alguma coisa de novo
Na verdade, a despeito de sua diluição, ainda havia entre nós quem encarasse com reservas a solução pontilhista dada por Visconti às decorações do foyer do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, iniciadas em 1913 e que bem podem ter sido o canto-do-cisne daquela tendência a nível internacional.
Simbolismo e Art Nouveau
Por volta de 1900 tanto o Simbolismo quanto o Art Nouveau já tinham sido assimilados por bom número de artistas. Não apenas em França , também no resto da Europa e nas Américas. Entre nós, coube talvez a Rodolfo Amoedo (1857-1941) o pioneirismo na adoção de uma temática e de um mundo-de-ideias simbolistas, pois fora aluno de Puvis de Chavannes na École des Beaux-Arts de Paris entre 1880 e 1887. Composições como Jesus em Cafarnaum, A Partida de Jacob e principalmente Narração de Filetas não escondem quanto Amoedo deveu ao pintor de Pauvre Pêcheur e das decorações de Santa Genoveva. Na década de 1890 Visconti seria fortemente marcado pelo Simbolismo em obras como Gioventù, Oréades, Recompensa de São Sebastião ou Sonho Místico, sentindo paralelamente o impacto do Art Nouveau, (era discípulo de Grasset) em trabalhos de cerâmica, ex-libris, selos e cartões postais.
Existem alguns pontos obscuros quanto à permanência de Visconti em França, entre 1893 e 1900. De acordo com informação prestada oralmente por seu genro Henrique Cavalleiro ao crítico de arte Flávio Motta, Visconti teria mantido contacto pessoal com Gauguin. Este, chegado de sua primeira viagem à Polinésia, permaneceu em Paris de abril de
Passariam mais tarde por fases simbolistas mais ou menos duradouras pintores como o espanhol Francisco Puyg Domenech Colom (1868-1937), chegado ao Brasil por volta de 1915; Maurício Jubim (1875-1923), amigo fraterno de Cruz e Souza, autor de pinturas e de sonetos pelos quais perpassam "angelicais purezas", "lívidos perfis" e "fugidias visões" muito à maneira de Eugène Carrière; Eugênio Latour (1874-1942), também marcado pelo Art Nouveau e um dos artistas contratados para a decoração do Pavilhão do Brasil na Exposição de Turim de 1911, considerada o momento conclusivo do Art Nouveau internacional. Os demais artistas da representação brasileira eram Rodolfo e Carlos Chambelland, João e Artur Timóteo, Carlos Oswald, Manuel Madruga, Leopoldo Gotuzzo e Eduardo Sá ; Lucílio de Albuquerque (1877-1939), autor de O Despertar de Ícaro, motivado pelo vôo pioneiro de Santos Dumont em 1906, ao qual assistiu, e também de Prometeu, O Beijo e algumas outras obras produzidas em França até 1911; Helios Seelinger (1878-1965), aluno de Frans von Stuck na Academia de Munique entre 1897 e 1900, ao tempo em que a freqüentavam Kandinsky, Klee e Frans Marc; e Miguel Capplonch (1882-1963), simbolista típico na mocidade, em obras como Os três beijos, Salomé ou Salambô. O pequeno número de pintores brasileiros influenciados pelo Simbolismo contrasta agudamente com a impressionante quantidade dos nossos poetas simbolistas. Na verdade, só tivemos um único pintor autênticamente simbolista no Brasil, e êsse foi Heitor Malaguti. Quanta a pinturas simbolistas, tivemos muitas.
O caso especial de Helios Seelinger não pode ser plenamente entendido senão em função de sua aprendizagem inicial na Alemanha, continuada em Paris após 1903. Em seus melhores trabalhos há marcas evidentes do Jugendstill, absorvidas ao tempo de sua maior intensidade
-De Stuck recebi a influência panteísta, que é fácil descobrir nos meus trabalhos. O misticismo, revelado nos meus estudos de ateliê, desenvolveu-se fortemente, ao influxo do idealismo alemão. As lendas da Germânia, os cantos e narrações populares dos barqueiros do Reno, o folclore da Floresta Negra, tão rico de tons pela frescura de seus poemas, os rapsodos que enchem uma página viva da literatura e da tradição alemãs, recortaram definitivamnte o perfil de minha obscura personalidade. Saí isto que sou, da longa aprendizagem alemã. O meu espírito, que denunciava, ao partir do Brasil, a maneira especial que define a minha arte, desenvolveu-se integralmente dentro do espiritualismo germânico e tomou essa feição que vou conduzindo comigo.
Ao retornar de Munique em 1902, Helios Seelinger realizou no Rio, na sede da revista O Malho, uma exposição que suscitou tamanha indignação nos setores mais conservadores, acostumados à pintura bem-comportada então em voga, que não faltou quem o chamasse de desequilibrado, antecipando em 15 anos o autor de "Paranoia ou Mistificação". A modernidade de Seelinger foi mal-entendida inclusive pelos defensores de sua pintura, como M. Nogueira da Silva. Em artigo de 1926,este alude ao seu desenho "não raro informe", à sua maneira "de um demoníaco doentio... tocando em mais de um ponto as raias da loucura". Não por acaso Seelinger seria dos primeiros a reconhecer o talento do jovem Victor Brecheret, a quem certo dia, em companhia de Di Cavalcanti e Menotti del Picchia, encontrou trabalhando no Palácio das Indústrias de São Paulo, pelos idos de 1919 ou 1920.
Entre Tradição e Renovação
O contacto com as novas tendências artísticas foi obviamente mais fácil para os artistas brasileiros que já residiam em Paris, como Belmiro de Almeida. Ou em centros culturais como por exemplo Bruxelas, onde desde 1898 se fixara Henrique Alvim Correa (1876-1910). Não bastava simplesmente morar fora do Brasil para assimiliar os estilos emergentes da arte europeia da época, como comprovam os casos de Pedro Américo e Pedro Weingärtner. Residindo longos anos respectivamente em Florença e em Roma, estes nunca chegaram a aperceber-se dos novos movimentos estéticos que se desenvolviam não longe de suas vistas. Se acaso o fizeram, não lhes concederam a menor importância, preferindo quedar-se cômodamente atados ao seu próprio passado. O caso de Belmiro de Almeida é conhecido. Realizou em Dampierre, entre 1912 e 1920, várias paisagens pontilhistas, do mesmo modo que em 1921 -e de pura brincadeira- pintou à maneira futurista pelo menos uma obra, Mulher
O caso de Navarro da Costa (1883-1931) é diferente. Pintor de marinhas, iniciou sua carreira na esteira de Castagneto. Tendo ingressado em 1914 no serviço diplomático, teve a oportunidade de sentir o impacto da arte moderna nas cidades em que serviu como cônsul, como Paris e Munique, chegando ao fim da vida a utilizar-se de uma paleta quase fovista. O interesse de Navarro da Costa pelas novas tendências ficaria também patenteado em 1924, quando organizou a vinda ao Brasil de uma missão de intercâmbio cultural que realizou com sucesso exposições de arte e de arte decorativa alemãs no Rio de Janeiro, São Paulo, Campinas e Santos.
No fim da vida, e à medida em que seu espírito declinava (ele falceu ainda moço, no Hospício dos Alienados do Rio de Janeiro), Artur Timóteo da Costa (1882-1923) produziu paisagens e marinhas nas quais críticos conservadores, como Acquarone e Queirós Vieira, não viram senão "alucinações de cores e de tintas berrantes". Em obras como Docas do Velho Mercado, de 1920, Artur Timóteo antecipa, de certa forma, pinturas que 15 anos mais tarde José Pancetti realizaria no Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro ou em suas imediações.
Rodolfo Chambelland (1879-1967), mais sensível, e seu irmão Carlos Chambelland (1884-1950), mais expressivo, também apontam para o futuro, principalmente Carlos nos óleos em que representou cenas e tipos de vaqueiros e sertanejos, produzidos durante uma permanência no Nordeste. Rodolfo, que foi um dos professores de Portinari, se não chegou a praticar ele próprio a arte moderna, mas quando muito um pontilhismo meio fora de moda em obras como Baile à Fantasia, ao menos não se alinhou entre os que a acusavam de charlatanice, como se depreende das seguintes palavras, proferidas em 1927:
-Todas as tentativas de arte futurista, que se geram, presentemente, são úteis elementos determinados pelo espírito novo. O cubismo é perfeitamente honesto. Os artistas que o fazem são dignos do maior acatamento, do maior respeito. É um erro julgá-los exibicionistas ou temperamentos dados ao escândalo, que fazem arte pour épater. Procuro praticar a pintura moderna como o meu temperamento a sente, e seria repudiar o meu trabalho enfileirar-me entre os que combatem a pintura nova, como todas as tendências novas, do espírito novo.
Almeida Júnior, Descanso do modelo.
Eliseu Visconti, Jardim do Luxemburgo, Paris.
Georgina de Albuquerque, No verão.
Rudolfo Amoedo, Jesus em Carnafaum
Eliseu Visconti, Gioventú
Helios Aristides Seelinger, Luta pela vida.
Navarro da Costa, Marinha.
Artur Timóteo da Costa, Cigana.
- A paisagem com a vegetação dos canos das usinas, as sombras fugitivas dos aeroplanos, a disparada dos automóveis, os oceanos desventurados pelos submarinos obrigam o artista a sentir e ver doutro modo, amar doutra forma, reproduzir doutra maneira... A aspiração dos artistas novos seria a de fixar através da própria personalidade o grande momento de transformação social de sua pátria na maravilha da vida contemporânea; a de refletir a vertiginosa ânsia de progresso; a de gravar o instante em que os velhos sonhos afundam, com todas as superstições de outrora, inclusive a moral, na eclosão de uma vida frenética e admirável!
Três outras ocorrências isoladas iriam aplainar em seguida o caminho para a Semana de 1922: a exposição de Lasar Segall
As exposições de Segall
Em 1913 um jovem pintor lituano recém-chegado ao Brasil, Lasar Segall (1891-1957), expunha primeiro
Paranoia ou Mistificação?
Em dezembro de 1917, na Rua Liberó Badaró da capital paulista, Anita Malfatti (1889-1964), recentemente retornada de uma viagem de estudos aos Estados Unidos da América, inaugurava uma exposição de 53 obras, entre pinturas, desenhos, gravuras e caricaturas. Estavam expostas na ocasião telas hoje célebres, como O Homem Amarelo, Mulher de Cabelos Verdes, A Estudante Russa e várias outras. Se por um lado atestavam a modernidade da artista e o quanto lucrara com sua permanência em Berlim, Paris e Nova York, por outro contrastavam agudamente com o rastaquerismo cultural então vigente no Brasil. A exposição chegou a ter sucesso comercial, com onze obras vendidas. Já do ponto de vista crítico, ao lado de umas poucas notinhas favoráveis, motivou a Monteiro Lobato o longo artigo "A Propósito da Exposição Malfatti", publicado
Hoje é difícil entender porque o autor de Urupês, êle próprio escritor pré-modernista, emitiu acerca de Malfatti (e de modo mais amplo sobre a arte moderna) conceitos tão reacionários e estreitos. A menos que se observe, como Sérgio Milliet, que sua crítica de arte baseava-se "na concepção primária de uma pintura fotográfica, de uma escultura naturalística". Ou, como notou Gilberto de Mello Kujawski, que sua tomada de posição "pode ser interpretada como a reação indignada de um literato puro-sangue, face a face com um novo tipo de criação plástica destituído de qualquer referência literária". No seu artigo, Lobato dividia os artistas em duas grandes categorias, "uma composta dos que vêem normalmente as coisas e em consequência disso fazem arte pura, guardando os eternos ritmos da vida". E a outra "formada pelos que vêem anormalmente a natureza, e interpretam-nas à luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica das escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos da cultura excessiva, ...... produtos do cansaço e do sadismo de todos os períodos de decadência........., frutos de fim de estação, bichados ao nascedouro". A seguir sustentava serem todas as artes "regidas por princípios imutáveis, leis fundamentais que não dependem do tempo nem da latitude", e que "as medidas de proporção e equilíbrio, na forma ou na cor, decorrem do que chamamos sentir. Quando as sensações do mundo externo transformam-se em impressões cerebrais, nós sentimos: para que sintamos de maneira diversa, cúbica ou futurista, é forçoso ou que a harmonia do universo sofra completa alteração, ou que o nosso cérebro esteja em panne por virtude de alguma grave lesão". Não chegava a negar valor a Malfatti, em quem reconhecia "um talento vigoroso, fora do comum". O que o indignava era vê-la trilhar a "má direção" que lhe torcera a obra: "Seduzida pelas teorias do que ela chama arte moderna, penetrou nos domínios de um impressionismo discutibilíssimo, e põe todo o seu talento a serviço duma nova espécie de caricatura. Sejamos sinceros: futurismo, cubismo, impressionismo e tutti quanti não passam de outros tantos ramos da arte caricatural". E apresentava à pintora, como exemplos a serem seguidos e modelos de excelência, Rodin e André Zorn, o obscuro Frank Brangwyn, a quem chama de "gênio rembrandtesco". E o pintor de lolitas açucaradas Paul Chabas, "mimoso poeta das manhãs, das águas mansas e dos corpos femininos em botão"!
O artigo de Lobato produziu efeitos díspares: aglutinou em torno de Anita todos os novos pintores e intelectuais, transformando-a no que Mário da Silva Brito anos mais tarde chamou de "o estopim do Modernismo". Por outro lado, abalou profundamente a pintora, fazendo-a duvidar dos próprios méritos a ponto de em sua próxima exposição, em 1921, ter causado em Mário de Andrade "a impressão duma artista que tivesse perdido a sua própria alma". Malfatti continuaria pintando pelo resto da vida, e chegou a participar inclusive da Semana de Arte Moderna. Perdera contudo o élan e a criatividade iniciais, contentando-se doravante em praticar uma arte mais bem-comportada e discreta. Para Menotti del Picchia, que a incluiu em nosso martirológio artístico, ela tornara-se "uma espécie de santa da ala demoníaca dos reformadores. Seu nome traz o prestígio dos taumaturgos e dos renegados".
A Semana de Arte Moderna
Em 29 de janeiro de 1922 o Correio Paulistano noticiava a realização, entre 11 e 18 de fevereiro, de uma Semana de Arte a realizar-se no Teatro Municipal de São Paulo com a participação de escritores, músicos, artistas e arquitetos de São Paulo e do Rio de Janeiro. Conforme a notícia, a Semana, organizada por intelectuais das duas cidades, Graça Aranha à frente, tinha por meta dar ao público paulistano "a perfeita demonstração do que há em nosso meio em escultura, arquitetura, música e literatura sob o ponto de vista rigorosamente atual". Do comitê patrocinador faziam parte entre outros Paulo Prado, Alfredo Pujo, René Thiollier e José Carlos de Macedo Soares. Entre os participantes de presença anunciada figuravam músicos como Villa-Lobos, Ernani Braga e Frutuoso Viana, escritores como Mário de Andrade, Ronald de Carvalho, Álvaro Moreira, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, Renato de Almeida, Ribeiro Couto, Sérgio Milliet, Guilherme de Almeida e Plínio Salgado. Artistas plásticos como Victor Brecheret, Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Vicente do Rego Monteiro, Ferrignac, Oswaldo Goeldi, Zina Aita, Regina Graz e John Graz. E enfim os arquitetos Antonio Moya e Georg Przyrembel. Como vários dos participantes ocupavam cargos de destaque nas redações de alguns dos principais jornais da época, o evento teve boa divulgação desde o início.
Em nota do Correio Paulistano Graça Aranha surgia como o idealizador da Semana. É mais provável, que a idéia tenha partido de Di Cavalcanti, acatando sugestão de Marjorie Prado, a esposa francesa de Paulo Prado. O próprio artista escreveu em sua autobiografia: "Falamos naquela noite, e em outros encontros, da Semana de Deauville e outras semanas de elegância europeia. Eu sugeri a Paulo Prado a nossa semana, que seria uma semana de escândalos literários e artísticos".
Quem quer que tenha sido seu idealizador, o objetivo da Semana era renovar o ambiente artístico e cultural de São Paulo e do país, e redescobrir o Brasil, repensando-o de modo a desvinculá-lo esteticamente das amarras que o subordinavam à Europa. É verdade que os jovens participantes ainda se sentiam fracos sem a proteção benévola de um figurão como Graça Aranha, espécie de avalista de sua seriedade de propósitos, ou de figura-de-proa capaz de impor respeito a setores menos abertos à modernidade. Também é fato que a Semana acabou adquirindo "um tom festivo irreconciliável talvez com o sentido de transformação social que em mim deveria estar no fundo de nossa revolução artística e literária" (Di Cavalcanti). A despeito de reavaliações recentes bastante negativas da Semana e principalmente dos seus organizadores, a mesma foi um acontecimento cultural da maior significação, descerrando para o Brasil perspectivas que teriam enormes conseqüências, inclusive políticas.
A exposição
Nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro ocorriam no palco do Teatro Municipal conferências e concertos. Enquanto isso, no saguão expunham os artistas e arquitetos "modernistas". Não eram todos os que haviam sido anunciados no Correio Paulistano, pois Regina Graz não participou, e a presença de Goeldi é controvertida. Também não eram apenas os que constavam do catálogo da mostra, como esclareceu Malfatti em depoimento a Aracy Amaral. De presença comprovada, segundo o catálogo, foram os arquitetos Moya e Przyrembel, os escultores Brecheret e Haarberg e os pintores ou desenhistas Anita Malfatti, Di Cavalcanti, John Graz, Martins Ribeiro, Zina Aita, João Fernando (Yan) de Almeida Prado, Inácio da Costa Ferreira (Ferrignac) e Vicente do Rego Monteiro. O discutível modernismo das obras expostas e a confusão de estilos em que se debatiam os expositores podem ser aferidos pelos títulos muito significativos de certas esculturas, pinturas ou desenhos, como Soror Dolorosa (Brecheret), Impressão Divisionista (Malfatti), Natureza Dadaaísta (Ferrignac), Impressões (Zina Aita) ou Cubismo (Vicente). Estilisticamente, aliás, os "futuristas" de 1922 (como o público teimava em chamá-los) praticavam de tudo um pouco, menos talvez Futurismo. O essencial era escapar ao Academismo, ou àquilo que eles um pouco apressadamente entendiam por esse nome. Muitas omissões foram praticadas, por exemplo a de Artur Timóteo, aliás falecido pouco depois. Por outro lado, por trabalharem longe do Brasil, ou por simples desconhecimento, deixaram de ser convidados a participar artistas como Ivan da Silva-Bruhns, Domingos Toledo Piza e Correia de Araújo, para citar só três.
Importância da Semana
A maioria dos que escreveram sobre a Semana consideraram-na um acontecimento relevante. Outros lhe negaram maior valor - casos aliás de Carlos Drummond de Andrade e Rodrigo Mello Franco de Andrade. A julgar pelos jornais da época, a Semana teve mais desafetos que adeptos, inclusive adversários temíveis como o que, sob o pseudônimo Pauci Vero Electo, assim se expressava pelas páginas de A Gazeta de 22 de fevereiro:
- O estrondoso barulho que os corifeus deste movimento fazem com estas três palavras (Independência, Originalidade, Personalidade) afirmando-se em altos berros os únicos originais, os únicos independentes, os únicos pessoais em meio a uma récua de imitadores, não passa de um mísero estratagema com que tentam encobrir o mais perigoso dos numerosos pontos vulneráveis da sua couraça de cabotinismo impenitente.
Cinqüenta anos mais tarde era a vez de Yan de Almeida Prado fulminar a Semana em livro- da qual aliás participara muito na base da gozação:
- A Semana de Arte Moderna pouca ou nenhuma ação desenvolveu no mundo das artes e da literatura. Nem com extrema boa vontade pode ser comparada à Vila Kyrial, de que pouco se fala. Veio depois dos esforços de Freitas Vale a favor das artes entre nós, sem o brilho nem o alcance da Vila, rapidamente desvanecidos os sete dias famosos, não fosse o interesse dos Andrades em mante-los na lembrança do respeitável público. Os seus reais valores, conhecidos antes de 1922, como por exemplo Villa-Lobos e Brecheret, ausentavam-se logo depois por longo espaço no exterior. O mesmo sucedeu com Anita Malfatti, Zina Aita e outros de sorte a dificultar qualquer influência no meio onde a Vila Kyrial representava o grande incentivo a principiantes e cenáculo a consagrados. A nossa atual situação nas letras e nas artes (......) nada deve à Semana, a qual não deveria ultrapassar, caso ocorresse em ambiente superior ao nosso, apenas certa cediça curiosidade, tão só útil a autores de escasso valor. Pensar-se de modo diverso, crer que a Semana descobriu gênios e influiu na evolução das artes e letras da Paulicéia e do Brasil, é imaginação ingênua, ou cálculo de espertinhos à espera de que as loas por eles dedicadas ao tal prodigioso acontecimento possam favorece-los como sucedeu a outros beneficiários de blefes semelhantes aos do jogo de pôquer, mirificamente dadivosos para os que sabem aplicá-los.
A exposição de artes plásticas parece não ter despertado tanto interesse na imprensa quanto a música de Villa-Lobos ou de Guiomar Novaes ou as idéias dos conferencistas Graça Aranha, Menotti del Picchia e Mário de Andrade. Isso não quer dizer que as obras mostradas no saguão do Teatro Municipal não tenham suscitado no público sentimentos desencontrados entre a diversão e o xingamento. Os trabalhos de Malfatti e Brecheret, principalmente, parecem ter tido o dom de escandalizar os visitantes. Se a intenção dos organizadores era essa, sem dúvida a concretizaram, sacudindo o marasmo artístico-cultural da provinciana São Paulo da década de 1920.
Embora o tipo de modernismo exposto em 1922 hoje nos pareça no mínimo pouco moderno, e confusas as idéias estéticas de seus principais corifeus, não se pode negar que a Semana representou um divisor de águas na história da arte brasileira. Menotti tem razão quando afirma que "a Semana foi apenas uma data, como o 7 de setembro; a eclosão de um movimento de independência nacional que vinha de longe". No próprio ano do centenário da Independência política do Brasil, a Semana difundia idéias de renovação que, embora já tivessem ocorrido de maneira isolada em ocasiões anteriores, nunca se haviam consolidado num movimento organizado. Como escreveria Paulo Mendes de Almeida muitos anos mais tarde, "já não era um gesto isolado de rebeldia o que presenciávamos, mas um clamor em coro, um movimento de grupo, em que se integravam importantes personalidades, e que deu, positivamente, um safanão naquele adormecido em berço esplêndido Brasil das letras, das artes e do pensamento".
Lasar Segall, Bananal.
Anita Malfatti, Tropical.
Participantes da Semana de Arte Moderna.
Tarsila do Amaral, Mário de Andrade.
Tendo iniciado sua carreira tardiamente, Tarsila ainda estudava com Pedro Alexandrino quando Malfatti expôs em 1917
Vivendo desde 1913 em Genebra, onde realizou seus estudos, mais tarde entrando em contacto com Picasso, Braque e os demais cubistas em Paris, Antonio Gomide retornou em caráter definitivo ao Brasil apenas em 1929, quando já tinha realizado muitas de suas melhores obras, inspiradas pelo Cubismo e pelo Art Déco e expostas no Salon d’Automne e no des Indépendants. Sua produção brasileira dos anos 30, que continuou marcada pelo senso construtivista e pelas estilizações déco, abarca além de pinturas de cavalete e aquarelas diversos afrescos e cartões para vitrais. Para o fim da vida, praticamente cego, o artista voltou-se para a escultura e para a representação de vigorosas figuras de negros ou de indígenas.
Também Alberto da Veiga Guignard viveu longos anos sucessivamente na Suíça, em Munique e Florença antes de em 1929 voltar ao Brasil, onde nas próximas décadas iria construir uma obra dominada por intenso romantismo, na qual avultam paisagens, figuras, trágicas figuras de Cristo, naturezas-mortas e, talvez acima de tudo, líricas interpretações do casario das velhas cidades de Minas.
Paraense, radicado no Rio de Janeiro e com duas permanências, de
Entre outros pintores brasileiros de destacada atuação no período e cuja arte exerceria influência sobre os artistas mais jovens devem ser mencionados Pedro Luís Correia de Araújo (1874-1955), que em começos do século integrara-se à vanguarda parisiense, chegando a dirigir em
Como acontecimento notável da década de 1920 deve ser também mencionada a atuação no Rio de Janeiro, a partir de 1924, de Theodor Heuberger, Friedrich Maron, Leo Putz e outros artistas germânicos, integrantes de uma missão de intercâmbio cultural organizada em Munique pelo cônsul e pintor Navarro da Costa: realizando no Rio,
Finalmente, uma breve citação a Cornélio Pena (1896-1958), grande romancista que começou sua carreira como pintor e ilustrador, publicando em junho de 1929 uma inesperada Declaração de Insolvência, na qual explicava os motivos que o levavam a de então por diante abandonar a pintura, trocando-a pela literatura, tão mais arraigada no gosto dos brasileiros.
Tarsila do Amaral, São Paulo, óleo s/ tela, 1924;
0,67 X 0,80, Pinacoteca do Estado de São Paulo.
0,67 X 0,80, Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Antonio Gonçalves Gomide, Composição com figura, tecido, 1925;
1,86 X 1,41, Palácio Bandeirantes, SP.
1,86 X 1,41, Palácio Bandeirantes, SP.
Ismael Neri, Duas amigas, detalhe, óleo s/ tela, 1925.
Cicero Dias, Moça com sombrinha, óleo s/ tela, s/ data;
0,74 X 0,61, Palácio Bandeirantes, SP.
0,74 X 0,61, Palácio Bandeirantes, SP.
Alberto da Veiga Guignard, Família do fuzileiro naval, óleo s/ tela, 1935;
0,58 X 0,42, Instituto de Estudos Brasileiros da USP.
0,58 X 0,42, Instituto de Estudos Brasileiros da USP.
O primeiro desses artistas surge em verdade em fins da década anterior: é Cândido Portinari (1903-1962), contemplado com o prêmio de viagem ao Exterior no Salão Nacional de Belas Artes de 1928. Durante os dois anos em que permaneceu na Europa, êle na verdade quase nada pintou, preferindo observar e meditar: no seu regresso sua visão modificara-se por completo, e ele, que partira quase um acadêmico, tornara-se um pintor moderno. Pelos próximos anos sua pintura, cada vez mais consciente, colheria inúmeros triunfos, a começar pela menção honrosa atribuída ao óleo Café na mostra internacional promovida em 1935 pelo Instituto Carnegie de Pittsburgh. Tal prêmio, concedido nos Estados Unidos a um obscuro pintor brasileiro, seria não apenas a consagração do artista quanto o triunfo da arte moderna no Brasil. Trasformado numa espécie de pintor oficial do Estado Novo, indiferente à disputa que colocaria em campos opostos os adeptos entusiastas do portinarismo, Mário de Andrade à frente, e seus ferrenhos adversários antiportinaristas, como Oswald de Andrade, Portinari realizará nas próximas décadas uma obra gigantesca, na qual se mesclam influências as mais diversas - de Piero della Francesca e Jacques Villon, de Modigliani a Rivera, de Zuloaga a Picasso -, traduzida num grande número de pinturas de cavalete e em grandes murais, para culminar em 1958 nos dois grandes paineis Guerra e Paz oferecidos pelo Brasil ao edifício-sede das Nações Unidas
Em 1931 dois acontecimentos irão sacudir o marasmo artístico em que ainda se achava mergulhada a antiga capital da República: são a XXXVIII Exposição Geral de Belas Artes, conhecida como Salão Revolucionário ou Salão dos Tenentes, organizado por Lúcio Costa (que então dirigia a Escola Nacional de Belas Artes) e aberto pela primeira vez a artistas de orientação moderna como Guignard, Bonadei, Malfatti, Gomide, Portinari, Cícero Dias, Di Cavalcanti, Flávio de Carvalho, Ismael Nery, John Graz, Tarsila do Amaral, Waldemar da Costa e Lasar Segall, entre outros, e a criação do Núcleo Bernardelli por um grupo de jovens artistas que já não aceitavam o tipo de ensinamento ministrado por seus velhos mestres na Escola Nacional de Belas Artes. Funcionando de início nos porões da própria Escola, o Núcleo não tinha professores, porém mentores - artistas mais experientes, como Manuel Santiago ou Quirino Campofiorito, que de bom grado aquiesceram em orientar moços como Ado Malagoli, Edson Mota, José Pancetti, Milton Dacosta, Joaquim Tenreiro, Martinho de Haro e Yoshiya Takaoka, quase todos de orígem humilde e sem maiores recursos econômicos. Tido como a ala moderada do Modernismo brasileiro dos anos 30, o Núcleo Bernardelli revelou pelo menos dois grandes nomes da pintura brasileira: José Pancetti e Milton Dacosta.
A tendência gregária que se manifestou na arte brasileira com a criação em 1930 da Pró-Arte, de Theodor Heuberger, e continuada em 1931 com o surgimento do Núcleo Bernardelli no Rio de Janeiro iria manifestar-se com redobrada intensidade
Pelos meados da década de 1930 Rebolo Gonzalez, ex-jogador de futebol e então bem sucedido pintor de paredes, abriu seu escritório-ateliê no Palacete Santa Helena, à Praça da Sé
Mais ou menos pela mesma época de surgimento do Grupo do Santa Helena novo grupamento de artistas fez sua aparição
Também se revestiram de importância, não apenas pela qualidade das obras expostas como pelo pioneirismo de certas propostas, os três Salões de Maio realizados de
A próxima associação de artistas a surgir
Passando ao largo de uns poucos outros grupamentos de artistas surgidos
Fator também remarcável que atuou de modo benéfico sobre a arte brasileira durante o período considerado foi a chegada ao país de numerosos artistas estrangeiros, simplesmente de passagem - como os japoneses Foujita e Kaminagai, o chinês Chang Dai Chien ou a portuguesa Vieira da Silva -, ou em caráter permanente - casos de Emeric Marcier, Laszlo Meitner, Ernesto De Fiori e muitos outros.
Cândido Portinari, Café, óleo s/ tela, 1935;
130 X195,3 cm , Museu Nacional de Belas Artes, RJ.
130 X
Aldo Bonadei, Natureza morta, óleo s/ tela, 1951;
0,46 X 0,55, Museu de Arte Contemporânea da USP.
0,46 X 0,55, Museu de Arte Contemporânea da USP.
José Pancetti, Primavera em Campos do Jordão, óleo s/ tela, 1949;
0,46 X 0,38, Palácio Bandeirantes, SP.
0,46 X 0,38, Palácio Bandeirantes, SP.
Emiliano Di Cavalcanti, Pescadores, óleo s/ tela, 1942;
0,81 X 1,00, Palácio Bandeirantes, SP.
0,81 X 1,00, Palácio Bandeirantes, SP.
Flávio Rezende de Carvalho, Retrato de José Lins do Rego, óleo s/ tela, 1948;
0,81 X 0,65, Museu de Arte Contemporânea da USP.
0,81 X 0,65, Museu de Arte Contemporânea da USP.
Waldemar Costa, Estático, semovente, verniz e ouro, 1966;
1,00 X 1,18, Museu de Arte Contemporânea da USP.
1,00 X 1,18, Museu de Arte Contemporânea da USP.
Emeric Marcier, Praça, óleo s/ tela, 1945;
0,65 X 0,82, Museu de Arte Contemporânea da USP.
0,65 X 0,82, Museu de Arte Contemporânea da USP.
Tanto ou mais decisivas para a implantaēćo e posterior consolidaēćo do abstracionismo em nosso paķs seriam a atuaēćo teórica do crķtico de arte Mįrio Pedrosa no Rio de Janeiro, a partir de 1948, e a criaēćo em 1951 da Bienal de Sćo Paulo, de inķcio subordinada ao Museu de Arte Moderna e depois transformada em fundaēćo autōnoma. Foi em grande parte devido ą envolvente pregaēćo escrita e oral de Mįrio e ą gradativa internacionalizaēćo por que passaria a arte brasileira sob a influźncia das Bienais paulistanas que a década de 1950 se tornaria dominada sucessiva ou cumulativamente pelos diversos abstracionismos - orgānico, expressionista, lķrico, geométrico, construtivista, concretista, informal etc. -, todos eles se impondo hegemōnicamente tanto aos que, pertencendo a geraēões mais antigas, continuavam fieis ą vertente nativista figurativa, quanto ąqueles que no figurativismo viam o śnico veķculo capaz de externar sua concepēćo de uma arte comprometida com a vida, a realidade social e as generosas aspiraēões coletivas.
Jį na I Bienal de Sćo Paulo trźs jovens artistas do Rio de Janeiro - Ivan Serpa, Almir Mavignier e Abraham Palatnik -, que haviam abandonado de pouco o rumo naturalista de inķcios de suas carreiras expunham obras sem a menor alusćo ąs formas e cores naturais, fieis ao ponto-de-vista gestaltiano defendido por Pedrosa de que "o conteśdo de uma forma nćo se encontra na sua associaēćo com as formas da natureza, mas no carįter próprio da forma". A pintura exposta por Serpa, ignificativamente entitulada Formas, e um originalķssimo aparelho cinético-cromįtico que constituķa o envio de Palatnik (hoje considerado um dos precursores da arte cinética a nķvel mundial) seriam aliįs premiados no certame, abrindo-se dessa maneira aos novos artistas um campo de criatividade para além dos padrões estéticos até entćo aceitos.
Pouco depois de encerrada a I Bienal em 1951, Mavignier partiu para a Europa, ali se radicando em definitivo: quedavam no Brasil, como elementos aglutinadores das novas tendźncias, Serpa e Palatnik no Rio de Janeiro, e Waldemar Cordeiro e Geraldo de Barros
Também em 1953 realizou-se no Hotel Quitandinha em Petrópolis a I Exposiēćo Nacional de Arte Abstrata (nćo haveria a segunda), com a participaēćo de 23 artistas de diversas tendźncias e linguagens - de Bandeira a Serpa, de Palatnik a Carvćo e de Lķgia Clark a Fayga Ostrower -, predominando o abstracionismo geométrico. Tal coletiva, além de preparar caminho para os próximos desdobramentos da arte nćo-figurativista no paķs, sinalizava para um momento de fastķgio em que mesmo artistas como Portinari e Pancetti, tradicionalmente vinculados ą tradiēćo figurativa, sentiam-se tentados por certas soluēões formais do abstracionismo, visķveis por exemplo nos Espantalhos do primeiro e nas Lagoas do Abaeté do outro, além de levar o jśri internacional a repartir entre o figurativo Di Cavalcanti e o quase abstrato Alfredo Volpi (o Volpi das Fachadas, apartadas jį da mera representaēćo figurativa) o prźmio de Melhor Pintor Nacional da II Bienal de Sćo Paulo, realizada no mesmo ano. Pouco mais ou menos pela mesma época dois pintores até entćo figurativos, trabalhando em estilos e cidades diferentes - Iberź Camargo no Rio de Janeiro, Rubem Valentim em Salvador - aproximavam-se gradativamente da arte abstrata, embora sem abandonar de todo as referźncias ąs formas e cores naturais ou ąs próprias raķzes.
Em dezembro de 1956 ocorria no MAM de Sćo Paulo a I Exposiēćo Nacional de Arte Concreta, com a presenēa de artistas e escritores tanto paulistas quanto cariocas. Levada meses depois ao MAM do Rio de Janeiro, nessa cidade a mostra contou com o decisivo apoio do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, criado pouco antes e dirigido pelo poeta Reinaldo Jardim; foi em grande parte graēas a esse periódico que o Concretismo se impōs rapidamente para além do eixo Rio/Sćo Paulo, conquistando adeptos inclusive em cidades como Fortaleza, onde em 1957 chegou a ser realizada uma Exposiēćo Concreta. A partir de 1960, contudo, como consequźncia de divergźncias surgidas entre os concretos de Sćo Paulo e os do Rio, o movimento jį dava sinais de esgotamento. Jį no ano anterior, com efeito, ocorrera no MAM do Rio de Janeiro a primeira exposiēćo do grupo que se apresentava como neoconcreto, precedida no catįlogo de um manifesto no qual se afirmava:
- O neoconcreto, nascido da necessidade de exprimir a complexa realidade do homem moderno dentro da linguagem estrutural da nova plįstica, nega a validez de atitudes cientificistas e positivistas em arte e repõe o problema da expressćo, incorporando as novas dimensões verbais cradas pela arte nćo-figurativa construtiva.
Apesar de ter tido repercussćo
No mesmo ano de 1959 em que se realizou no Rio de Janeiro a mostra neoconcreta fazia seu aparecimento através da V Bienal de Sćo Paulo o abstracionismo informal, que por alguns anos de entćo por diante iria tornar-se a tendźncia nćo-figurativa dominante na pintura brasileira. Revigorava-se assim uma corrente nćo-figurativista e nćo-gométrica que com oscilaēões vinha acompanhando desde fins da década de
Ą medida em que a década de 1960 avanēava, a posiēćo hegemōnica até entćo ocupada pelos pintores de orientaēćo nćo-figurativista via-se aos poucos tomada por artistas de outras tendźncias, com o retorno inclusive ao figurativismo. Pode-se dizer contudo que o nćo-figurativismo desde sua irrupēćo hį mais de 50 anos nunca deixou de representar uma forēa viva e atuante na pintura moderna e contemporānea, a ele permanecendo fieis inśmeros artistas até os dias de hoje, sem falar em freqüentes revivals observados de tempos em tempos - como no caso dos adeptos da chamada geometria sensķvel, nos anos 70, ou em certas pinturas neoexpressionistas dos anos 80.
Antonio Bandeira, A grande cidade iluminada, óleo s/ tela, 1953;
0,72 X 0,91, Museu Nacional de Belas Artes, RJ.
0,72 X 0,91, Museu Nacional de Belas Artes, RJ.
Lothar Charoux, Sem título, grafite e guache, 1956;
0,49 X 0,37, Museu de Arte Contemporânea da USP.
0,49 X 0,37, Museu de Arte Contemporânea da USP.
Iberê Camargo, Expansão, óleo s/ tela, 1964;
0,80 X 1,39, Museu de Arte Contemporânea da USP.
0,80 X 1,39, Museu de Arte Contemporânea da USP.
Nascida como se vê na Europa, a nova arte encontraria nos Estados Unidos seu habitat ideal, até porque nesse país tinham já trabalhado alguns de seus grandes precursores, como Stuart Davis, Edward Hopper e Marcel Duchamp. A partir de 1962, com a mostra The New Painting of Common Objects no Pasadena Art Museum, a Pop Art iria se tornar uma espécie de estilo nacional norte-americano - a arte oficial da Disneyland, como lhe chamou sarcasticamente o crítico Martin Ries.
É lógico que ecos dessa reviravolta artística cedo chegariam ao Brasil, antes inclusive de sua aparição definitiva e triunfal na IX Bienal de São Paulo, em 1967, quando da sala especial Ambiente USA: 1957/1967 participaram, e com obras remarcáveis, todos os grandes nomes da Pop norte-americana: entre tais mostras pioneiras cumpre citar, como das mais influentes, a que sob o título de Otra Figuración reuniu em 1963, na Galeria Bonino, obras dos quatro artistas argentinos Macció, Noé, Jorge de
A primeira exposição em que se procurou reunir, em levantamento curatorial, os jovens artistas brasileiros marcados pelas novas tendências foi Opinião 65, organizada em 1965 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro por Ceres Franco, a qual, após dizer logo no começo do texto de apresentação no catálogo ser aquela uma exposição de ruptura com a arte do passado, apontava como fontes onde deveriam se dessedentar os artistas emergentes nacionais "o exemplo vitorioso da Pop Art americana e as realizações do novo realismo europeu". Para Ceres, a jovem pintura teria de ser "independente, polêmica, inventiva, denunciadora, crítica, social, moral", inspirada "tanto na natureza urbana imediata como na própria vida com seu culto diário de mitos".
Distinguia-se desde logo essa jovem pintura brasileira da norte-americana por seu conteúdo político e contestatório, em aberta e corajosa oposição ao regime de exceção que se instalara no país com o golpe militar de 1º de abril de 1964. Assim, enquanto os artistas Pop norte-americanos expunham pragmatica, friamente, os aspectos de seu mundo pasteurizado, os brasileiros condenavam, de modo não raro apaixonado, os excessos da massificação, a mecanização da vida, a banalidade de uma época dominada pela publicidade mas também, como se já não bastasse, a estupidez da ditadura militar havia pouco instaurada no país. Daquela primeira mostra aglutinadora dos novos valores da pintura brasileira de meados dos anos 60 participavam alguns nomes hoje clássicos da vanguarda brasileira - como Rubens Gerchman e Hélio Oiticica, Pedro Geraldo Escosteguy e Carlos Vergara, Antonio Dias e Waldemar Cordeiro, lado a lado com alguns precursores e artistas de sensibilidade afim, como respectivamente Ivan Serpa e Ivan Freitas.
Muito importante também, pelo que revelou sobre certos aspectos da arte brasileira da época, foi a exposição inaugural da Galeria G-4 no Rio de Janeiro, em maio de 1966, apresentando o chamado Grupo Neo-Realista carioca, integrado por Antonio Dias, Rubens Gerchman, Roberto Magalhães, Pedro Escosteguy e Carlos Vergara, todos já anteriormente reunidos na coletiva Supermercado 66, realizada pouco antes na Galeria Relevo da mesma cidade. Apesar de seus 22 anos, Antonio Dias funcionava como uma espécie de chefe de escola; fazendo uso de uma temática na qual se mesclavam memórias da infância e símbolos fálicos, vísceras sangrentas e máscaras contra gases, tudo externado em vermelho, preto e branco, ele explicou, em depoimento de 1966 escrito especialmente para o catálogo da mostra Vanguarda Brasileira na Universidade de Belo Horizonte, em 1966, o aspecto militante e subversivo de seu trabalho de então:
- As coisas mudam constantemente e é preciso estar sempre atento, fazer as reformulações no momento exato. Só assim conseguiremos uma ação efetiva mínima, já que é impossível controlar todas as coisas do mundo. Se eu conseguir dizer o que penso no meu trabalho, as pessoas o entenderão. Mas as idéias subvertem dentro de campos paralelos; só posso subverter aqueles que consomem pinturas. Mesmo assim, se dez pessoas entenderem o que faço, se apenas dez se aproximarem do meu trabalho e disserem: "Compreendo o que este cara está dizendo", esta corrente de dez pessoas irá engrossando tremendamente até se diluir no sentido geral da vida.
Em agosto de 1966, de novo no MAM do Rio de Janeiro, realizava-se a coletiva Opinião 66: outra vez com organização de Ceres Franco, era a repetição, ampliada, da mostra do ano anterior, e contava com a participação de diversos pintores europeus, lado a lado com bom número de artistas brasileiros, alguns já conhecidos de mostras anteriores - como Serpa, Lígia Clark e Glauco Rodrigues, os dois primeiros oriundos do Concretismo, o último do chamado Realismo Social -, outros, como Angelo de Aquino, Teresa Simões ou Renato Landim, praticamente iniciando então sua carreira. Num texto especialmente preparado para o catálogo, Hélio Oiticica, então às voltas com suas primeiras apropriações, aborda o tema da antiarte, que a partir daí o absorveria:
- Chegou a hora da antiarte. Com as apropriações descobri a inutilidade da chamada elaboração da obra de arte. Está na capacidade do artista declarar se isto é ou não uma obra, tanto faz que seja uma coisa ou uma pessoa viva.
Entre muitas outras manifestações da vanguarda carioca na década de 1960 podem ser citados Pare!, em 1966 na Galeria G4, a coletiva Objetos na Galeria Celina, em 1969, os Salões de Abril, Esso e da Bússola, efetuados no MAM entre 1966 e 1969, e a mostra anual Resumo-JB, idealizada por Harry Laus, crítico de arte do Jornal do Brasil. A mais abrangente mostra de arte reunindo até então a vanguarda não apenas carioca como brasileira seria contudo Nova Objetividade Brasileira, aberta em abril de 1967 no MAM do Rio de Janeiro. No catálogo, Waldemar Cordeiro pelo grupo paulista e Hélio Oiticica pelo carioca assinam textos significativos. Hélio, por exemplo, após definir a Nova Objetividade como "um estado típico da arte brasileira de vanguarda atual", assim enuncia suas seis premissas básicas: vontade construtiva geral, tendência para o objeto ao ser negado e superado o quadro de cavalete, participação corporal, tátil, visual, semântica etc., do espectador, tomada de posição em relação a problemas políticos, sociais e éticos, tendência a uma arte coletiva e ressurgimento e reformulação do conceito de antiarte. De Nova Objetividade Brasileira participariam, além de nomes já mais conhecidos, artistas como Raimundo Collares, Ana Maria Maiolino, Maria do Carmo Secco, Avatar Morais, Marcelo Nitsche, Gastão Manuel Henrique e Mona Gorovitz.
Até aqui focalizamos aspectos que a rigor se circunscrevem à vanguarda carioca dos anos 60; cumpre agora revelar o que ocorria pela mesma época com a vanguarda paulista, distinta da do Rio de Janeiro por nítidas peculiaridades - impulsiva, espontânea e romântica aquela, comedida e pragmática essa, os cariocas por assim dizer mais "artistas", os paulistas mais designers, publicitários ou arquitetos -, sinalizando diferenças de temperamento e comportamento que são em última análise as mesmas que, como escreveu Walter Zanini, contribuíram para cavar um abismo "entre o meio extrovertido e de agregação nacional da antiga capital e o ambiente circunspecto e de composição humana internacional de São Paulo".
Também sobre a vanguarda paulista atuaram, é claro, os mesmos condimentos que motivaram a carioca, inclusive a repressão militar e o engajamento político; mas circunstâncias especiais fizeram-na mais complexa e dinâmica, a começar pela demorada presença na cidade, em diferentes ocasiões ao longo da década, de importantes representantes da melhor vanguarda europeia, que exerceriam influência sobre um meio no qual introduziram novos modos de ver ou de sentir; sem falar nas consequências que eventos como a exposição do Grupo Phases em 1964 ou a XII Exposição Internacional do Surrealismo em 1967 trariam ao mundo-de-ideias dos jovens artistas locais; ou na continuada chegada a São Paulo, onde se radicaram, de artistas de várias nacionalidades e tendências estilísticas; e pondo enfim em destaque a atuação seminal de artistas como Wesley Duke Lee, autor do primeiro happening brasileiro e principal representante do Realismo Mágico, como o neodadaísta Nelson Leirner ou como Waldemar Cordeiro, que em 1964 abandonou temporariamente a ortodoxia de posições anteriores para lançar o movimento Popcreto, buscando combinar em seus quadros-objetos a Pop Art e o Concretismo.
Fora do eixo Rio-São Paulo, vale citar certa efervescência revitalizadora ocorrida em 1967 na capital da República, com a realização do polêmico IV Salão de Brasília, e em 1968 em Salvador, quando a censura fez gorar a II Bienal da Bahia, assim pondo fim à bela iniciativa criada no ano anterior.
Enquanto em fins dos anos 60 eram ainda bastante numerosos os que viam nos veículos tradicionais da pintura ou do desenho meios expressivos perfeitamente aptos a externar seu mundo-de-idéias, bastando citar os exemplos de João Câmara, Sonia von Brüsky, Evandro Carlos Jardim, Antonio Henrique Amaral, Humberto Espínola ou Gilvan Samico, a década de 1970 seria marcada pelo surgimento de novas linguagens, preponderando as soluções conceituais, o experimentalismo de eventos como os Domingos da Criação realizados em 1971 nos espaços externos do MAM do Rio de Janeiro ou como Brasil, a Festa e a Construção, levado a efeito
A mail-art, o livro de artista, a vídeo-arte, a instalação, a performance, a holografia etc., testemunhos, todos eles, da gradativa desmaterialização da arte que se processava então não só na arte brasileira, também na internacional, dominam como já ficou dito o período, à pintura e outras linguagens afins cabendo papel muito mais discreto, para só se recuperarem em começos dos anos 80.
Tomie Ohtake, Cinza e vermelho, óleo s/ tela, 1977;
1,54 X 1,54, Palácio Bandeirantes, SP.
1,54 X 1,54, Palácio Bandeirantes, SP.
Manabu Mabe, Equador II, óleo s/ tela, 1973;
1,80 X 2,00, Museu de Arte Contemporânea da USP.
1,80 X 2,00, Museu de Arte Contemporânea da USP.
No Rio de Janeiro a Escola de Artes Visuais do Parque Lage e
Como se vê, o ano de 1983 representou o triunfo absoluto da Geração 80, que porém continuava em grande voga em 1985, quando
Sempre mais comedidos e formando um contraponto aos posicionamentos tão mais hedonistas assumidos por seus colegas cariocas, os artistas de São Paulo começam a se orientar, a partir de meados dos anos 80, de preferência para outras direções, como por exemplo a reflexão conceitual sobre a essência e o questionamento dos limites da própria pintura, em obediência a linhas de trabalho e pesquisa de mestres como Nelson Leirner, Regina Silveira e Julio Plaza, mentores da nova geração.