artistas C

C

CALIXTO de Jesus, Benedito (1853-1927). Artista que, ao lado de Almeida Júnior e Pedro Alexandrino, completa a tríade mais representativa das tendências pictóricas em São Paulo nos fins do Séc. XIX e começos do XX, Benedito Calixto nasceu a 14 de outubro de 1853 na Vila de Nossa Senhora da Conceição de Itanhaem, e adolescente transferiu-se para Brotas, onde pintou seus quadros iniciais. Incentivado pelos encômios, realizou em 1881 sua primeira exposição, na sede do Correio Paulistano, em São Paulo. O insucesso da mostra fê-lo abandonar para sempre a capital e buscar refúgio em São Vicente, onde viveria praticamente o resto da existência e construiria boa parte de sua obra.
Dois anos depois da má estréia paulistana, surgiu a Calixto a oportunidade de estudar seriamente em Paris, a convite e a expensas do Visconde de Vergueiro. O pintor, embora casado desde 1877, parte sozinho para a França, freqüenta sem maiores motivações o ateliê de Raffaelli, cuja arte não aprecia, e pouco depois transfere-se à Academia Julian, como aluno de Boulanger, Lefebvre e Tony-Robert Fleury. De Paris segue até Lisboa, onde por muito pouco tempo recebe aulas de Silva Porto, tendo ainda freqüentado o ateliê de Malhoa.
Retornando ao Brasil em 1885, Calixto é rigorosamente o mesmo de quando embarcou: imune a influências, impermeável ao fascínio cultural da capital francesa, permanece até o fim um isolado, praticando um tipo de pintura do qual não se arredaria um milímetro, alheio a qualquer inovação ou renovação.
Quando descansa da pintura, é no passado histórico de São Paulo que se refugia, ou então se volta para as estrelas, em sua paixão de astrônomo amador. Esse amor excessivo à História seria aliás nocivo ao artista, que com escrúpulos de documentarista chegará a povoar de indígenas o quintal de sua casa, a fim de mais fielmente pintar A Fundação de São Vicente, e que fincaria no mesmo local gigantesco mastro, para ter uma idéia mais real de como seriam as naus de Martim Afonso de Sousa, quando aportou em 1532 a São Vicente.
Outro fator negativo a conspirar contra a arte de Calixto foi o elevado número de encomendas a que teve sempre de atender. Já Vítor Meireles, em fins do século passado, referira-se ao "afogadilho com que pensa e à rapidez com que executa o que pensa", acrescentando que, vivesse acaso Calixto no Rio, tentaria corrigi-lo, "obrigando-o a pintar um trabalho grande, durante dois ou três anos". Para os últimos anos de vida, sobretudo, transformara-se Calixto numa autêntica máquina de fazer quadros, como se pode observar desse trecho de uma carta remetida em maio de 1919 a um comerciante que se incumbia de lhe vender a produção:
- Peço-lhe o favor de tomar nota das pessoas que querem outros quadros, a fim de que as mesmas se expliquem sobre o tamanho e o gênero que desejam, bem como o ponto ou lugar que devo reproduzir.
Na mesma carta, desencantado, acrescenta:
- Pouco ou nada me adianta, agora que já estou velho, a opinião e conselho dos críticos sobre meus trabalhos. Desejaria apenas, que os jornais dessem notícias dos quadros vendidos, etc., e mais nada, pois não preciso de reclame.
Foi o isolamento em que viveu Calixto que o impediu de participar com freqüência do Salão Nacional de Belas Artes, em cujos catálogos o seu nome surge apenas duas vezes, em 1898 (medalha de ouro de terceira classe) e em 1900. Também por isso não tomou parte, senão raramente, de certames internacionais, como a Exposição de Saint-Louis de 1904, na qual conquistou também medalha de ouro. Mesmo escondido em São Vicente, nunca deixou de ser prestigiado, como o comprovam os clientes e o avultado número de alunos, a começar por sua própria filha, Pedrina Calixto Henriques, cuja pintura aliás é subsidiária da sua, a ponto de muitas obras de sua autoria terem sido metamorfoseadas inescrupulosamente em originais do pai; tarefa aliás muito simples porque, além do mais, a artista assinava-se apenas P. Calixto, bastando um traço recurvo ao P inicial para que surgisse a assinatura mais prestigiosa.
Calixto foi pintor de marinhas, paisagens, costumes populares, cenas históricas e religiosas. Se durante a sua vida a tendência era considerá-lo acima de tudo como pintor de história e religioso (gêneros esses nos quais deixou abundante produção, inclusive na Catedral e na Bolsa de Santos, no Palácio Cardinalício do Rio de Janeiro, na Igreja de Santa Cecília em São Paulo e na Matriz de São João Batista em Bocaina), hoje costuma-se conceder bem maior importância às cenas portuárias e litorâneas, nas quais extravasa um caráter talvez rude, mas pessoal e profundamente sincero na abordagem dos diversos aspectos da natureza. Os quadros em que fixou o desembarque do café, no primitivo porto de Santos, ao lado do seu aspecto puramente documental, revestem-se de força expressiva, apesar da aparência algo dura das embarcações; por outro lado, convém destacar certas cenas litorâneas ou ribeirinhas, em que a um desenho algo ingênuo e a um colorido preciso aliam-se uma nítida preocupação atmosférica e um grande respeito ao meio ambiente.
O artista faleceu a 31 de maio de 1927, em São Paulo, tendo sido porém enterrado no Cemitério de Paquetá, em São Vicente. Três anos antes, recebera do Papa Pio IX a comenda e a cruz de São Silvestre Papa, em recompensa aos serviços prestados à Igreja com sua arte.

Cais do Mercado em Santos, óleo s/ tela, 1885;
0,30 X 0,50, Museu de Arte, SP.

São Vicente, óleo s/ tela, s/ data;
0,42 X 0,72, Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Baía de São Vicente, óleo s/ tela, s/ data;
Pinacoteca do Estado de São Paulo.

D. Pedro I, detalhe, óleo s/ tela, 1902;
1,40 x 1,00, Museu Paulista da USP.

Paisagem, óleo s/ tela, 1919;
0,40 X 1,04, Palácio Bandeirantes, SP.

CÂMARA FILHO, João (1944). Nascido em João Pessoa (PB). Vivendo em Recife desde muito jovem, cursou como aluno livre a Escola de Belas Artes da Universidade de Pernambuco, tendo sido discípulo, entre 1960 e 1963, de Laerte Baldini e Fernando Barreto, entre outros. Em 1962 passou a enviar obras para salões, tendo sido contemplado já nesse ano com o prêmio de pintura e o 2º de desenho no Salão Universitário de Belo Horizonte, e com o grande prêmio de pintura no Salão de Pernambuco. No ano seguinte efetuou em João Pessoa sua primeira individual, de desenhos, passando também a escrever sobre temas de arte na Última Hora de Recife. Foi um dos fundadores, em 1964, do Ateliê da Ribeira, e em 1966, do Ateliê + Dez, ambos em Olinda. Em 1966 expôs na I Bienal Nacional de Artes Plásticas, de Salvador, e na III Bienal de Cordoba (Argentina), em ambos os certames obtendo premiação.
Até então, todavia, o nome de João Câmara ainda não se tornara conhecido nacionalmente: esse reconhecimento a nível nacional só viria em 1967, quando o artista - então com apenas 23 anos - recebeu com o tríptico Exposição e Motivo de Violência o grande prêmio do IV Salão de Arte Contemporânea de Brasília, outorgado pela unanimidade de um júri integrado por Mário Pedrosa, Clarival Valladares, Frederico Morais, Walter Zanini e Mário Barata. A partir de então, Câmara evoluiu rapidamente no sentido de se tornar um dos pintores mais importantes e originais de sua geração, posição que tem sabido manter por força de sua lúcida inteligência, de sua esmerada técnica pictórica e, acima de tudo, pelo alto nível de elaboração artística em que se vem postando toda a sua produção nas três últimas décadas.
Em 1967 também, Câmara passou a lecionar Pintura na Universidade Federal da Paraíba, em João Pessoa, função na qual permaneceu até 1970. Formando-se em Psicologia pela Universidade Católica de Pernambuco em 1968, nesse mesmo ano teve sala especial na II Bienal Nacional de Artes Plásticas, participando, no seguinte, da X Bienal de São Paulo, do Panorama da Arte Atual Brasileira organizado pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo e do Salão Nacional de Arte Moderna, no qual obtém o certificado de isenção. Aliás, continuaria expondo ainda alguns anos no Salão Nacional de Arte Moderna, sem contudo chegar a conquistar o prêmio de viagem ao estrangeiro, injustamente preterido em mais de um ensejo.
A partir de 1970 João Câmara dedicou-se à litografia, e nesse mesmo ano viu editado, em Recife, um álbum com seus primeiros trabalhos no gênero. A litografia, aliás, iria revelar-se veículo especialmente adequado à expressão de seu universo de formas, e lado a lado com a pintura tem sido técnica da predileção do artista, complementando, freqüentemente, suas grandes séries, iniciadas em 1975. No que respeita ainda à litografia, é de 1974 a instalação do seu ateliê litográfico de Campo Grande, o qual iria transformar-se na Oficina Guaianases de Gravura, funcionando no Mercado de Ribeira, em Olinda.
Em 1976, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e no Museu de Arte de São Paulo, Câmara expôs suas Cenas da Vida Brasileira - 1930-1954, enfocando, em dez grandes painéis e mais uma centena de litografias, a história recente do Brasil, da Revolução de 1930 ao suicídio de Getúlio Vargas em agosto de 1954, numa entusiasmante retomada da pintura histórica, extravasada, obviamente, num espírito que já não tem nada em comum com os transbordamentos românticos que o gênero experimentou no passado. As Cenas, que constituíram o tema de um audiovisual do crítico Frederico Morais, realizado no mesmo ano, foram em seguida levadas para a Itália, participando em Bolonha da Arte Fiera de 1975. Em 1978, as 100 litografias da mencionada série foram expostas na Galeria Juan Martín, do México. Desde o ano anterior, João Câmara dera início a uma nova série, a que intitulou Dez Cenas de Amor e uma Pintura de Câmara, e que estaria concluída somente em 1983, quando viu-se exposta sucessivamente no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, tendo sido também objeto de uma monografia por parte do crítico Federico Morais.
Enquanto se entregava à execução dessa segunda série, João Câmara realizou certo número de pinturas por assim dizer avulsas, geralmente vinculadas ao universo feminino, bem como algumas outras pinturas que seriam, na sua definição, verdadeiros apêndices das Cenas da Vida Brasileira: o Baile da Ilha Fiscal, exposto na Bienal de São Paulo de 1979 e logo adquirido para a Coleção Window South, da Califórnia (Estados Unidos da América), Carisma/Quaresma, sobre o Arcebispo Dom Hélder Câmara (1981) e Retrato de Família, focalizando a família contemporânea e a crise em que se debate (1981). Quanto às Cenas da Vida Brasileira, foram adquiridas em 1980 pela Prefeitura da Cidade do Recife e doadas à Fundação de Cultura da mesma cidade, estando hoje expostas em permanência na Galeria Metropolitana de Arte da capital pernambucana, evitando-se assim sua dispersão. No mesmo ano, o já citado Frederico Morais publicou estudo sobre as Cenas, com introdução de Barbosa Lima Sobrinho, enfatizando a importância excepcional do conjunto, único no panorama da pintura brasileira contemporânea.
João Câmara Filho tem efetuado individuais e integrado coletivas dentro e fora do país, além de ter tomado parte em simpósios e júris, no Brasil e fora dele. Mas não é, de modo algum, um artista entrosado no chamado circuito das artes, deliberadamente evitando-o, e demonstrando inclusive certa ojeriza pela venda de seus trabalhos. Pensando e repensando criticamente sua atividade de pintor, e buscando insistentemente posicionar-se à margem da corrente internacionalista que de alguns anos a essa data vem-se impondo a tantos artistas brasileiros, Câmara é figurativista renitente, e até certo ponto um regionalista, pois é na realidade de sua região nordestina que vem encontrando a matéria-prima para as suas pinturas. Essa forte vinculação com a terra caracteriza toda a sua produção, na qual repercutem nítidos ingredientes arcaicos e ancestrais, com tendências mágicas e surrealisantes. Mas sob Câmara essa antiquíssima carga telúrica adquire contornos inconfundíveis de contemporaneidade, entrosando-se num todo harmônico mito e realidade, com o surgimento de um estilo rigorosamente pessoal, se bem que não isento de influências e de afinidades. Câmara ele mesmo é o primeiro a apontar algumas das influências que, a seu ver, lhe plasmaram o mundo de idéias: "o painel gera da tradição, as vanguardas, as retrovanguardas, a balbúrdia ("o ruído informa"), Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Mário Chamie, Dalton Trevisan, Lispector, Joyce, Godard, Lester, a literatura de cordel, os poetas de processo, os redatores de publicidade, Ionesco, Brecht, Lorca, Eliot, os Beatles, a música aleatória e a programada".
A crítica brasileira tem sabido prestigiar a arte de João Câmara, sobre a qual tem-se manifestado com freqüência e de modo pertinente nos últimos dez anos. Walter Zanini, por exemplo, após sustentar que ela recorda pela ênfase formal a mexicana, dá como suas características básicas a "busca da aura mítica", a "severidade moral" e a "tensão agressiva". É preciso contudo cuidado com as interpretações subjetivas do trabalho de Câmara, tanto mais que esse artista, ainda, tem diante de si toda uma caminhada a percorrer. De fato, ele é imprevisível em suas intenções e parece divertir-se com as perplexidades que impõe aos que lhe acompanham a produção. Com efeito, após os enormes painéis das Cenas da Vida Brasileira poder-se-ia esperar que o pintor prosseguisse ainda por muito tempo na mesma trajetória, em sucessivas interpretações da História do Brasil atual - um filão aparentemente inesgotável. Mas Câmara preferiu efetuar uma guinada de 180º, voltando-se para a pintura erótica - ou melhor dizendo, pseudo-erótica, de vez que nada menos erótico do que esses grandes quadros e essas litografias que integram os Dez Casos de Amor, de uma inquietante presença em seus contornos surreal-naturalistas. O embasamento autobiográfico e crítico do pintor repercute tanto nas Cenas como nos Casos, e Frederico Morais entendeu muito bem tal circunstância, quando escreveu:
- Ao realizar a série sobre Getúlio Vargas, Câmara se colocou dentro da História para resolver uma questão pessoal. Ele revisou os mitos desse período, percorreu o cenário do Estado Novo e até se colocou ao lado de seus atores principais, como personagem, para melhor compreender esse momento crucial de nossa História recente e que ele projeta nos dias atuais. Era uma démarche pessoal, ele queria desvendar seu próprio passado, reinventar sua infância política. Essa intromissão do pessoal na cena histórica retira das Cenas o caráter de documento frio ou de abordagem burocrática de nossa História. Ora, quando todos esperavam de Câmara, diante do sucesso das Cenas, que ele se transformasse num Debret do Estado Novo, fornecendo ao mercado de arte, com a regularidade que o consumo e a moda impõem, novos pacotes pictóricos, Câmara respondeu com uma série erótica, isto é, com o avesso da História. Se teve a coragem de buscar mitos brasileiros como Getúlio ou D. Helder Câmara, quando o comum seria trabalhar com clichês importados do tipo Guevara, Kennedy, Luther King, Marilyn Monroe, agora atravessa o tema erótico com uma visão igualmente pessoal. Ou seja, se antes questionara os clichês da pintura histórica, agora se insurge contra a visão asséptica ou idílica do nu mitológico ou contra o puro escândalo visual, propondo uma pintura carnal.
João Câmara, por sua vez, não deixa de enfatizar o primado que concede ao puramente visual e ao aspecto artesanal da pintura, tal como a concebe, sendo muito importante para entendê-lo em seu mundo de idéias os seguintes conceitos, que confiou numa entrevista:
- Sou um provinciano visual, a realidade continua me cativando. Eu me deslumbro com a pintura bem feita. Em certos aspectos sou primitivo, carrego comigo um caráter popularesco. Uma certa pintura de imitação me encanta. É comum em minha obra, desde quando fazia pintura de resposta instintiva, opor a essa tendência certos elementos que eram intencionalmente realistas. Me agrada mais uma bela maçã bem pintada do que vários cestos de maçãs mal pintados.
Tríptico, óleo s/ madeira, 1967;
1,98 X 1,10, Museu Nacional de Belas Artes, RJ.

Confissão, óleo s/ madeira, 1971;
1,60 X 2,00, Museu de Arte Contemporânea da USP.

Paulo Magalhães, óleo s/ madeira, 1976;
Pinacoteca do Estado de São Paulo.

CAMARGO, Iberê (1914-1994). Nascido em Restinga Seca (RS) e falecido em Porto Alegre. Pintor, desenhista e gravador, um dos mais importantes artistas brasileiros do século. Iniciou seus estudos na Escola de Artes e Ofícios de Santa Maria com Salvador Parlagreco e Frederico Loebe, em seguida freqüentando em Porto Alegre o curso técnico de arquitetura do Instituto de Belas Artes (1936-1939), ao mesmo tempo em que tomava aulas de pintura com João Fahrion. Realizou sua primeira individual em 1942, em Porto Alegre, nesse mesmo ano transferindo-se ao Rio de Janeiro com bolsa de seu Estado natal afim de se aperfeiçoar em pintura. Na capital cursou por muito pouco tempo a Escola Nacional de Belas Artes, mas não se adaptando à orientação acadêmica ali vigente trocou-a pelos ensinamentos de Guignard, ministrados durante apenas dois meses em dependências do prédio da União Nacional dos Estudantes à Praia do Flamengo para um grupo de cerca de 30 alunos.
- Cheguei ao Rio em agosto de 1942. E trazia comigo uma grande vontade de aprender. Através do casal Augusto Meyer conheci Portinari e Lelio Landucci, a quem me liguei fraternalmente. Landucci, sensível e inteligente, sabia ver e ensinar a ver. Após uma rápida passagem pela Escola Nacional de Belas Artes, tornei-me aluno de Guignard. A sua obra teve breve influência sobre o meu trabalho, mas marcou-me para sempre a pureza do seu espírito.
Em 1943 Iberê fundou com Geza Heller e Elisa Byington o Grupo Guignard, um ateliê coletivo que funcionava num prédio da Rua Marquês de Abrantes, em Botafogo, onde antes existira a gafieira Flor do Abacate, o que levou o poeta Manuel Bandeira a batizar o grupo de Nova Flor do Abacate. Guignard se incumbia das aulas de desenho e pintura, e segundo Iberê "impunha o uso do lápis duro, duríssimo, o que deixava sulcos no papel como se tivessem sido feitos por um prego".
Dessa mesma época datam seus primeiros ensaios com a gravura em metal, sob a orientação de Hans Steiner e do próprio Guignard. Recebendo em 1947, pela Divisão Moderna do Salão Nacional de Belas Artes, o Prêmio de Viagem ao Estrangeiro, estuda em 1948 em Roma com De Chirico, Achille, Rosa e Petrucci, e em 1949 em Paris com André Lhote, retornando em 1950 ao Brasil. Em 1953 torna-se professor de gravura no Instituto de Belas Artes do Rio de Janeiro, lecionando mais tarde essa técnica em seu próprio ateliê ou em permanências mais ou menos longas em Porto Alegre e outras cidades, inclusive do Exterior.
Tendo participado das I, V, VI, VII, XI, XV e XVIII Bienais de São Paulo (Prêmio de Melhor Pintor Nacional na VI Bienal, em 1961, salas especiais de pinturas, gravuras e desenhos na VII Bienal, em 1963, e na XI Bienal, em 1971), Iberê tomou parte também em 1961 da Bienal de Tóquio (voltando a fazê-lo em 1968) e em 1962 da Bienal de Veneza, além de ter realizado uma retrospectiva no MAM-RJ. Sempre em 1962 pintou por encomenda da Companhia de Navegação Costeira dois grandes painéis para os navios "Princesa Isabel" e "Princesa Leopoldina", do mesmo modo como em 1966 seria o autor do grande painel oferecido pelo Brasil para figurar na sede da Organização Mundial da Saúde em Genebra, na Suíça. O artista realizou inúmeras individuais, em cidades como Porto Alegre, Santa Maria, Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, Niterói, Montevidéu, Paris, Londres e Washington, destacando-se as retrospectivas de 1979 no Museu de Arte do Rio Grande do Sul (desenhos), repetida em 1980 no Museu Guido Viaro de Curitiba, a exposição comemorativa dos 70 anos do artista, que itinerou em 1984 por Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre, a retrospectiva de 1990 no Espaço Cultural Banco Francês e Brasileiro em Porto Alegre (gravuras), repetida em 1991 no Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro e a grande retrospectiva de 1994 no Centro Cultural Banco do Brasil, também no Rio de Janeiro. Quanto a coletivas nas quais marcou presença, além das já citadas, mencionem-se ainda, por sua importância, a Bienal do México (1958), a Exposição Internacional de Gravura de 1971 na Iugoslávia, a X Quadriennale Nazionale d’Arte di Roma (1977), Entre a Mancha e a Figura no MAM-RJ (1982), Expressionismo no Brasil: Heranças e Afinidades (XVIII Bienal de São Paulo, 1984), Modernidade - Arte Brasileira do Séc. XX (1988, MAM de Paris e MAM-SP), Mário Pedrosa: Arte, Revolução e Reflexão (1991, Centro Cultural Banco do Brasil, RJ), Bienal Brasil Século XX (1994, São Paulo) e Grito (1997, Museu Nacional de Belas Artes).
Estilisticamente Iberê Camargo foi de início figurativista, trabalhando a paisagem, a figura humana e a natureza-morta em obediência a uma concepção naturalista-expressionista que tinha na cor sua principal característica. Por sua obra perpassaram então diversas influências, de Portinari aos mexicanos e de Guignard a Picasso. Típica dessa sua fase inicial é a Vista da Lapa, do Museu Nacional de Belas Artes, com que ganhou o prêmio de viagem ao estrangeiro do Salão de 1947: lírica, mas ao mesmo tempo vigorosa, executada em pinceladas encrespadas e num vívido colorido. Despojando-se gradativamente pelos próximos anos, Iberê permaneceu fiel à representação das formas e cores naturais até 1959, época em que deu início a série dos Carretéis, na qual ainda permanecem as referências ao mundo objetivo, só que diluídas em denso colorido e truculenta matéria. Em princípios da década de 1960 o pintor abraçou conscientemente o não-figurativismo, do qual seria um dos principais senão o principal representante no Brasil, e do qual não se afastaria mesmo depois que a tendência deixou de seduzir nossos artistas. Em anos posteriores deu-se em sua pintura como que uma explosão da cor a partir dos fundos negros em que geralmente se resolvia, embora a opulenta textura permanecesse como característica principal de seus quadros. Como ele próprio explicou, em entrevista a Walmir Ayala, "por uma necessidade quase táctil minha pintura é pastosa. Não se creia, entretanto, que emprego relevos ou texturas preestabelecidas, como fazem alguns pintores. A espessura resulta da superposição de camadas que coloco no afã de encontrar a cor ou o tom exato".

Na década de 1980, após o dramático episódio em que o artista se envolveu num lamentável incidente de rua no Rio de Janeiro, sua arte instintitivamente retomou o figurativismo, assim permanecendo até seus últimos anos. As figuras humanas que a partir de então pinta ou desenha saem-lhe esquálidas, trágicas como a humanidade espectral de Giacometti, banhadas numa atmosfera de infinita solidão e desesperança. Nesses momentos finais o homem corroído pelo sofrimento se purifica, enquanto o artista atinge a plenitude de sua arte para se tornar uma das expressões mais altas da moderna pintura brasileira.

Conjunto de carretéis, água-tinta, 1960;
0,30 X 0,50, Museu de Arte Contemporânea da USP.

Os carretéis, água-forte, 1960;
0,13 X 0,18, Museus Castro Maya, RJ.

Os carretéis, água-forte, 1960;
0,13 X 0,18, Museus Castro Maya, RJ.

Ciclistas, água-forte, 1922;
0,20 X 0,15, Museus Castro Maya, RJ.


CARVALHO, Flávio de Rezende (1899-1973). Nascido em Barra Mansa (RJ) e falecido em Valinhos (SP). Bisneto dos Barões de Cajuru mas anti-conservador e anti-convencional por excelência, Flávio de Carvalho teve esmerada educação em França (1911-14) e na Inglaterra, freqüentando a Universidade de Durham, em New Castle – pela qual se formou em Engenharia Civil em 1922, ao mesmo tempo em que, à noite, cursava a Escola de Belas Artes da mesma Universidade. Em 1923 estava em São Paulo, tornando-se calculista, em 1924, da firma de Ramos de Azevedo. Muito embora tivesse contatado alguns modernistas de 1922, não chegou a se integrar no grupo, até porque, nesses primeiros anos de fixação em São Paulo, seu interesse maior era a arquitetura. Mesmo assim, fazia desenhos e caricaturas, a maioria relacionados com a dança e o balé, além de escrever artigos sobre esses mesmos temas, que então o empolgavam. A partir de 1927 começam a surgir de sua prancheta riscos arquitetônicos que se revelariam marcos da moderna arquitetura brasileira: os projetos do Palácio do Governo do Estado de São Paulo, do Palácio do Congresso, da Embaixada Argentina no Rio de Janeiro e da Universidade Federal de Minas Gerais, nenhum construído. Formalmente, mesclavam-se nesses projetos elementos futuristas e expressionistas, além da marca inconfundível de Le Corbusier.
Aderindo, logo depois, aos postulados antropofágicos de Oswald de Andrade, representaria esse movimento no Congresso Panamericano de Arquitetos, em 1930, no qual pronunciou palestras sobre "A Cidade do Homem Nu" e "A Antropofagia do Século XX". Em 1931, ainda sob a influência da Antropofagia, atravessou na contramão e de chapéu na cabeça uma procissão de Corpus Christi, negando-se a se descobrir a despeito dos protestos dos fiéis, que quase o linchavam. Refugiando-se numa leiteria, Flávio foi preso mas logo posto em liberdade, escrevendo a respeito o livro Experiência nº 2, no qual expõe suas teorias sobre a essência dos ritos religiosos e sobre o comportamento das multidões, com ilustrações expressionistas de sua autoria (seja dito de passagem que não se sabe o que terá sido a Experiência n.º 1).
Em 1932 Flávio de Carvalho ganhou o concurso para o Monumento ao Soldado Constitucionalista e se tornou um dos fundadores do CAM - Clube dos Artistas Modernos, ao lado de Di Cavalcanti, Carlos Prado e Antonio Gomide. Junto ao Clube funcionava o Teatro da Experiência, que se propunha ser um laboratório de experiências cênicas e performáticas. A estranha peça expressionista Bailado do Deus Morto, de sua autoria, foi levada à cena em 15 de novembro de 1933, na inauguração do teatro, o qual no dia seguinte ao da estréia foi fechado por determinação da polícia, a despeito dos protestos dos intelectuais. A primeira mostra individual de Flávio, aberta em São Paulo pouco tempo depois, seria também fechada pela polícia, sendo mais tarde reaberta por determinação da Justiça, com cinco obras expurgadas, sob a alegação de que atentavam contra a moral.
Em 1934-35 Flávio retornou por alguns meses à Europa, tendo participado, a convite, do Congresso de Filosofia e Psicotécnica de Praga (República Tcheca), percorrendo em seguida diversos países. Suas impressões de viagem, publicadas inicialmente na imprensa de São Paulo, foram mais tarde reunidas no livro Os Ossos do Mundo, editado em 1936.
Durante toda a segunda metade da década de 1930, Flávio continuaria sendo uma das molas propulsoras do Modernismo em São Paulo, tornando-se um dos principais animadores dos Salões de Maio de 1937, 1938 e 1939. Particularmente notável foi sua atuação no II e no III Salões, tendo organizado no âmbito do segundo uma exposição de pintores surrealistas e abstracionistas ingleses, e preparado para o terceiro um álbum-catálogo-revista, RASM, com capa metálica e farta colaboração crítica. Paralelamente, continuava sua atividade de arquiteto - agora, também construtor (grupo de casas da Alameda Lorena, na capital de São Paulo); e, no meio tempo, patenteava um novo tipo de persiana vertical de alumínio.
Na década de 1940 a atividade de Flávio de Carvalho diminuiu de intensidade. Além da participação em alguns dos salões anuais do Sindicato dos Artistas Plásticos e da realização de uma segunda exposição individual, no Museu de Arte de São Paulo, em 1948 (encerrada também de forma abrupta, após uma conferência sobre a pintura do expositor), o que se destaca de modo extraordinário nesse longo período é a célebre Série Trágica - Minha Mãe Morrendo, de 1947 - 32 desenhos a lápis nos quais o artista captou a agonia materna, documento pungente que bem demonstra como, para Flávio, a arte não era passatempo ou diversão de ocioso, mas aquele autêntico Real Absoluto a que se referiu Novalis. Sobre tais desenhos, que seriam publicados em álbum em 1967, assim se externou Almeida Sales:
- Não sabendo expressar-se mais profundamente do que por intermédio da sua gagueira de traços acumulados sobre a folha alva, ousou transformar o quarto da mãe morrendo em ateliê de registro do estranho fato. Saiu da alcova trágica como um deus que tivesse detido o processo inexorável da morte. Debaixo do braço, folhas riscadas com carvão guardavam, indelevelmente, a mais extraordinária fotografia de todos os tempos: os últimos estertores da vida de uma anciã entrando na morte, fixados pelo homem nascido de suas entranhas.
Em 1950 Flávio de Carvalho integrou a representação brasileira na Bienal de Veneza, efetuando no ano seguinte sua terceira individual, na Galeria Domus, de São Paulo (pinturas, aquarelas, desenhos, cerâmicas e projetos arquitetônicos). Também em 1951 tomou parte na I Bienal de São Paulo e realizou os cenários luminosos para uma sinfonia coreografada de Camargo Guarnieri. Para o bailado A Cangaceira, do mesmo compositor, executou em 1954 cenografia e figurinos. Intensificando seu trabalho no campo da cenografia, efetuou também decorações para os bailes carnavalescos do Instituto dos Arquitetos do Brasil - Seção São Paulo (1953) e do Circo Piolim (1954), entre outros. Não se descuidava, porém, de sua atividade maior de arquiteto, participando de diversos concursos, se bem que pouco antes de falecer tivesse desabafado com o jornalista Luís Ernesto Machado Kawall:
- Pode escrever, tenho sido sistematicamente recusado em concursos de arquitetura e outros, oficiais. Essa gente que julga concorrências não gosta de mim, muitas vezes nem devolve meus projetos.
Em 1956, tendo tido sua curiosidade atraída para o problema da moda, escreveu uma série de artigos sob o título geral "A Moda e o Novo Homem", publicados em sua coluna "Casa, Homem e Paisagem", do Diário de São Paulo. Passando da teoria à prática, mandou executar um novo traje, por ele idealizado e que, no seu entender, mais se coadunava com um país com as características do Brasil, desfilando de saiote e blusa de mangas curtas e folgadas pelas ruas e avenidas de São Paulo, indiferente às reações de espanto ou de indignação dos transeuntes. Essa sua Experiência nº 3, comentada pela imprensa de todo o país, constituiu autêntico happening, "um choque emocional na nação".
Em 1957 o júri da Bienal de São Paulo cometeu o erro histórico de cortar o envio do artista; mas a partir de começos da década de 1960 sua importância como pintor e como desenhista, e seu papel de precursor da moderna arquitetura nacional começam a ser reconhecidos unanimemente - inclusive pela própria Bienal, que em 1963 lhe consagra sala especial e o premia. Por outro lado, alguns jovens artistas apontam-no como um pioneiro, e é assim que é convidado em 1966 pelos integrantes do Grupo Rex a fazer uma palestra sobre moda na Rex Gallery. No ano seguinte cresce ainda mais seu prestígio, outorgando-lhe então o júri da IX Bienal de São Paulo prêmio de aquisição, enquanto o Museu de Arte Brasileira da Fundação Armando Álvares Penteado organiza a primeira retrospectiva de sua obra.
Os últimos anos de sua carreira viram-no entregue a uma incessante atividade, com a realização de diversas exposições individuais e a participação em importantes coletivas, como a XI Bienal de São Paulo (Sala Especial), ou as mostras Semana de 22, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, e 50 Anos de Arquitetura Moderna, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Datam também dessa fase final numerosos projetos, como o Monumento a Garcia Lorca, executado em 1968 e seriamente danificado por vândalos armados de metralhadoras em julho de 1969, o Monumento à Força Expedicionária Brasileira (1971), a Batalha de Guararapes (1971), etc.
Flávio de Carvalho morreu a 4 de junho de 1973, pouco depois de ter efetuado em Campinas, ao lado do pintor J. Toledo, aquela que seria a sua derradeira exposição. Deixou, além das já mencionadas, mais as seguintes obras publicadas: L'Aspect Psychologique et morbide de l'Art Moderne (Paris, 1937), Dialética da Moda (Diário de São Paulo, 1956), Notas para a Reconstrução de um Mundo Perdido (Diário de São Paulo, 1957-1958), e ainda vários outros artigos publicados na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro. A Bienal de São Paulo de 1983 consagrou-lhe importante retrospectiva, por ocasião do décimo aniversário do seu desaparecimento.
Em arte, como de resto em tudo o mais, há os que procuram a vida inteira e a qualquer preço pela originalidade, sem a encontrarem nunca, e inversamente os que a trazem já do berço, originalidade inata e não buscada, de que impregnam tudo aquilo em que tocam. Flávio de Rezende Carvalho foi um desses espíritos inovadores e revolucionários, acostumados desde a mocidade a nunca seguirem caminhos já desbravados, inimigo das soluções fáceis e dos modelos herdados. E se é fato que existem dois tipos de artistas, os grandes, os que mudam o rumo dos acontecimentos, e os outros, os que se adaptam comodamente a eles, força é reconhecer ter sido Flávio artista maior, dos mais notáveis, em verdade, que no Brasil trabalharam.
Arquiteto, cenógrafo, desenhista, pintor, escritor, Flávio de Carvalho destacou-se em cada uma dessas atividades, embora a tendência atual, consubstanciada na sala especial a ele consagrada na Bienal de São Paulo de 1983, seja encará-lo sobretudo como desenhista e como pintor; e é justamente sua obra gráfica e pictórica que hoje lhe garante a sobrevida, bem mais do que o vanguardeiro Bailado do Deus Morto, ou a vã tentativa de dotar os brasileiros de um traje mais condizente com as peculiaridades climáticas do país, ou até mesmo sua pioneira arquitetura, ou ainda sua admirável atuação como animador cultural, à frente do Clube dos Artistas Modernos que ajudou a fundar em 1932.
Flávio de Carvalho é um expressionista, isto é, alguém que procura externar uma visão do mundo observado de dentro, e para tanto capaz de deformar ou reformar a realidade, reinventar cores e desmontar esquemas tradicionais, levado antes pela emoção do que pelo raciocínio. Como pintor - basicamente de figuras, com especial predileção pelo retrato -, usou de absoluta liberdade formal e cromática, indiferente à fidelidade anatômica, à textura das carnes, ao colorido atmosférico: na busca da expressão, fragmentou freqüentemente o corpo humano em dezenas de segmentos cromáticos, que se confundem aos segundos planos de suas pinturas numa ambigüidade deliberada que possui, mais que função decorativa, papel eminentemente expressivo. A cor torna-se livre - cor pictórica, para além da mera referência às cores naturais; e toda a superfície de seus quadros vibra de um ritmo diferente, tornando-se a figura mero pretexto pictórico. Meditando aliás muitas vezes sobre a essência do seu ofício de desenhista e pintor, Flávio escreveu a respeito páginas de extrema lucidez, dizendo de certa feita sobre o problema da cor e do assunto:
- O problema do conjunto de cores nada tem a ver com o assunto em pintura. Um conjunto de cores sem assunto pode ser tão sugestivo, ou mesmo mais, que um conjunto de cores com assunto. Geralmente, o assunto interfere com o problema das cores. A maior parte dos pintores quando lida com cores, se esquece da pintura em si para fazer assunto, e é por isso que a grande maioria da pintura não presta.
Retratista dos maiores que tivemos, num depoimento de 1966 à revista Veja assim se referiu a esse difícil gênero pictórico, hoje tão desprezado:
- Quando pinto um retrato, me afasto totalmente do mundo em redor e só me preocupo com o que estou fazendo. O que me interessa no retrato é a expressão fundamental do modelo. A expressão de uma pessoa muda conforme a hora e o dia: portanto, trata-se de encontrar a expressão fundamental. É esse algo que a pessoa tem, mas que é percebido por poucos. A imagem fotográfica nada revela desse algo. É por isso que freqüentemente ao retratado atributos fisionômicos são acrescentados, que ele mesmo desconhece, mas que existem como afirmação da personalidade.
E mais adiante, na mesma entrevista:
- O artista de hoje abandonou o retrato porque foi subjugado pela desumanização do mundo e pelo desprezo que tem por seu semelhante. Assim, não percebe mais que no retrato há um mundo a descobrir e a aperfeiçoar, não só no que se refere à dialética pura da pintura como no que toca à importância humana do personagem. O retrato contém tantas possibilidades pictóricas quanto quaisquer dos ismos atuais. Porém, essas possibilidades não são percebidas pelos artistas de agora e eles se deixam cegar pela falsa dialética dos modismos em voga.

Sem título, nanquim, s/ data;
0,70 X 0,50, Museu Nacional de Belas Artes, RJ.

Retrato de José Lins do Rego, óleo s/ tela, 1948;
0,81 X 0,65, Museu de Arte Contemporânea da USP.

Figura, óleo s/ tela, 1951;
0,70 X 0,65, Palácio Bandeirantes, SP.

CARVÃO, Aluísio (1920). Nascido em Belém (PA). Após ter tentado sucessivamente a escultura e a cenografia, realizou em 1946 suas primeiras pinturas, dentro de um estilo a que se poderia chamar de impressionismo tardio. Nesse mesmo ano ganhou menção honrosa no Salão Paraense de Belas Artes. Radicando-se logo depois no Rio de Janeiro, tornou-se aluno de Ivan Serpa no Museu de Arte Moderna, instituição da qual viria a ser anos mais tarde professor. Integrante do Grupo Frente, tomou parte de suas manifestações no Rio de Janeiro, em Resende e Volta Redonda, ligando-se em meados da década de 1950 ao Concretismo, de cujas mostras de 1956 em São Paulo e 1957 no Rio também participaria. Em 1958 realiza em São Paulo, na Galeria de Arte das Folhas, uma individual em que apresenta trabalhos de tipos a que denomina de núcleo-tensivo e ritmo-centrípeto-centrifugal, nos quais se evidencia o aspecto ótico de suas pesquisas de então. Mas tais obras serão, também, o canto-de-cisne de sua pintura de conotação concretista, pois já no ano seguinte Carvão abandona a estruturação geométrica que vinha até então imprimindo a seus trabalhos e passa a construí-los diretamente com a cor. As pinturas desse momento possuem títulos significativos: Vermelho-Vermelho, Amarelo-Amarelo, Rosa-Amarelo-Amarelo e assim por diante, querendo o artista deixar bem claro que doravante a cor, e somente ela, nortearia o seu trabalho pictórico. Ligando-se ao Neoconcretismo, Carvão expõe nas mostras de arte neoconcreta realizadas de 1959 a 1961 no Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador, além de ter estado representado em 1960 nas Exposições de Arte Concreta de Munique e de Zurique. Nesse mesmo ano de 1960 recebe, no Salão Nacional de Arte Moderna, o prêmio de viagem ao estrangeiro, demorando-se dois anos em vários países da Europa, entre 1962 e 1963.
Em 1966, na mostra Nova Objetividade Brasileira (Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro), dois trabalhos de Carvão foram incluídos como exemplos de pesquisas que iriam frutificar em tendências mais recentes. Dez anos mais tarde, o artista passa a utilizar em seus trabalhos materiais insólitos, como barbantes e chapinhas de garrafas ("superfícies farfalhantes"). Abandonando todo dogmatismo, parte logo em seguida, durante uma permanência em Saquarema, para a retomada da pintura figurativa, no caso marinhas, a que mais recentemente alterna, quando tem vontade, a prática de uma pintura mais construída e despojada, evocativa de sua fase concretista, embora externada com absoluta liberdade cromática.
Além das mostras coletivas já mencionadas, Carvão esteve presente na I Exposição Nacional de Arte Abstrata (Petrópolis 1953), em várias Bienais de São Paulo (a partir de 1953), na IV Bienal de Tóquio (1957) e na I Bienal Interamericana do México (1958), tendo realizado também diversas individuais, notadamente em 1961 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e em 1967 na Galeria Guignard de Belo Horizonte. Importantes retrospectivas foram-lhe dedicadas entre 1996 e 1997 nos Mams do Rio de Janeiro e Salvador e no Museu de Arte de Curitiba.

Construção nº 5, guache, 1955;
0,15 X 0,24, coleção particular.

CARYBÉ (1911-1997). Nascido em Lanus (Argentina) e falecido em Salvador (BA). Brasileiro naturalizado desde 1957, "Carybé" é o apelido de infância de Hector Júlio Paride Bernabó, apelido que o artista ele próprio assim explica:
- Quando tinha dez anos era escoteiro no Rio e meus companheiros de tropa tinham todos nomes de peixe. Escolhi Carybé, piranha. E fiquei Carybé para sempre, nem atendo quando me chamam de Hector.
Após os primeiros tempos da infância, transcorridos em Roma e Gênova, Carybé veio com a família para o Rio de Janeiro aos oito anos, passando a residir no subúrbio de Bonsucesso. E tinha 14 quando começou a pintar, freqüentando o ateliê de cerâmica do irmão. Adolescente, acompanhou como pandeirista Carmen Miranda, numa excursão ao Prata. Mais tarde cursou, por apenas dois anos, a Escola Nacional de Belas Artes.
Visitando pela primeira vez a Bahia em 1938, ficou encantado com a velha cidade, e em 1940 chegou a apresentar, no Museu de Belas Artes de Buenos Aires, algumas aquarelas de temática baiana, entre várias obras de assunto brasileiro. Passando a participar da vida artística da capital argentina, realizou individuais de seus trabalhos em 1943, 1945, 1947 e 1949, além deter conquistado, em 1943, o 1º prêmio do Salão dos Aquarelistas local. Também efetuou viagens de estudo, na década de 1940, por diversos países da América do Sul.
Desde 1950 radicado em Salvador, nesse ano uniu-se Carybé aos que, como Mário Cravo, Jenner Augusto e Genaro de Carvalho, lutavam pela atualização do ambiente artístico e cultural da capital baiana. De então por diante toda a sua obra esteve vinculada à Bahia, aos seus habitantes e costumes, às suas velhas casas, ruas e igrejas. Melhor Desenhista Nacional na III Bienal de São Paulo, em 1955, homenageado com salas especiais na Bienal de São Paulo de 1961 e na Bienal da Bahia de 1966, Carybé efetuou numerosas exposições individuais, não apenas em Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo, como também em Londres, Liverpool, Tóquio, Osaka, Lisboa, Nova York, Washington, México etc. Por outro lado, sua atividade como muralista foi imensa, havendo painéis de sua autoria no Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Buenos Aires, Montreal (destruído), Nova Iorque (Aeroporto Internacional), Londres, etc. De todos esses painéis, dois mereceriam destaque especial: o do Aeroporto Kennedy de Nova Iorque, no qual misturou óleo, prata, ouro, miçangas, cacos de vidro, botões, etc., de vez que - como explicou Rubem Braga, "adora as cores vivas e as coisas brilhantes, como os pretos e os índios"-, e o que realizou em 1970 para o Banco da Bahia, 27 talhas em cedro representando os orixás do candomblé - ele que, ministro de Xangô, usava no culto afro-brasileiro o nome ritual de Obá Otum Onà Shocum.
Carybé realizou ilustrações para dezenas de livros (como as de Macunaíma, de Mário de Andrade, na edição dos Cem Bibliófilos), e publicou também álbuns com seus próprios desenhos, como As Sete Portas da Bahia.
No que concerne à sua arte, trata-se, antes de mais nada, de um excepcional desenhista, senhor de uma extrema agilidade de execução, e sabendo captar com graça e elegância o essencial de uma forma em movimento. Sua contribuição como pintor é talvez menos importante, mas de modo algum desprezível, destacando-se em sua obra pictórica as representações de negras e mulatas que impressionam pela solidez da forma e pela vitalidade e sensibilidade. Se é fato que por vezes sacrificou seu grande talento ao pitoresco e ao fácil, não menos verdadeiro é que, em seus melhores momentos, alçou-se a elevado nível de produção estética e artesanal, sendo também de realçar a circunstância de ser, Carybé, o documentarista de uma realidade que, não fora por seus esforços, talvez estivesse condenada a desaparecer sem vestígios. Afinal, como ele mesmo disse referindo-se ao candomblé, "daqui a uns 50 anos ele desaparece e a religião brasileira vai ser uma misturança infernal, vai ter até austríaco pai-de-santo... "
Desenho a bico de pena, 1950;
0,27 X 0,21, Museu de Arte da Bahia.

Desenho a bico de pena, 1950;
0,27 X 0,21, Museu de Arte da Bahia.

Feira de Água de Meninos, técnica mista, 1950;
0,27 X 0,21, Museu de Arte da Bahia.

CASTAGNETO, Giovanni Battista Felice (1851-1900). Nascido em Gênova (Itália) e falecido no Rio de Janeiro, cidade onde chegaria em 1874, acompanhando o pai. Este, em requerimento de 18 de março de 1877, solicitava admissão do filho na Academia Imperial de Belas Artes; como a idade máxima de admissão era 17 anos, Lorenzo Castagneto falseou a realidade, afirmando residir no Brasil desde 1862 e que o filho tinha, em 1877, 16 anos. Nasceu assim a versão, até há bem pouco aceita, de que Castagneto nascera em 1862 e falecera, por conseguinte, com 38 anos, e não com quase 50.
Castagneto chegou pois ao Brasil homem feito e era, em sua terra natal, marinheiro; apesar de nada constar quanto a ter cursado academias ou ateliês de arte, deveria possuir inclinações artísticas pronunciadas, ou não teria procurado ingressar na Academia do Rio de Janeiro aos 23 anos. Suas provas para a admissão revelam a precariedade de sua instrução: era, na verdade, pouco mais que analfabeto. Ainda assim, foi admitido como ouvinte, e em 1878 estava matriculado regularmente no curso de desenho figurado, desenho geométrico e matemática, conquistando menção honrosa na primeira e medalha de Prata na segunda dessas disciplinas. Até 1884 freqüentou a Academia, tendo por mestres principais Zeferino da Costa (a quem ajudaria, em 1883, nas decorações da Candelária) e Vítor Meireles. De 1882 a 1884 recebeu orientação de Georg Grimm, a quem acompanhou quando o paisagista alemão rompeu com a Academia e instalou seu ateliê ao ar livre na Praia da Boa Viagem em Niterói.
Junto a Grimm, Castagneto cedo revelou grandes progressos. Na Exposição Geral de 1884 recebeu distinção idêntica à do mestre, medalha de ouro. Não é impossível, aliás, que a premiação de Castagneto tivesse por objetivo atingir Grimm, já então às turras com a Academia.
Em 1886, na Casa Vieitas, Castagneto realiza sua primeira individual. Tinha 35 anos, já conquistara posição de certo relevo como marinhista e começara a afastar-se da orientação de Grimm, mesmo porque a marinha, e não a paisagem, era seu gênero de predileção. Alternando entre a pintura e o ensino (de 1882 a 1886 foi professor de Desenho no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, e em 1894 lecionou a mesma matéria no Liceu de Niterói) realizou novas exposições em 1887 e 1889 no Rio de Janeiro, e em 1890 em Juiz de Fora, na sede do jornal O Farol. Também participou da Exposição Geral de 1890 da Escola Nacional, ex-Academia Imperial de Belas Artes, e em novembro do mesmo ano decidiu embarcar para a França, com a ajuda financeira de amigos. Dirigiu-se inicialmente a Paris - onde conheceu o marinhista Frédéric Montenard (1849-1926) que o aproximou de outro marinhista, François Nardi (1861-1936). Com Nardi embarca em 1891 para Toulon, tornando-se seu aluno nos anos seguintes. Não deixa de ser curiosa essa insegurança de Castagneto, pintor superior a Nardi, sorvendo-lhe os conselhos com a submissão de mero aprendiz... Junto a esses dois pintores franceses, Castagneto experimentou talvez certo progresso técnico, perdendo porém alguma coisa de sua espontaneidade.
A 22 de setembro de 1893 achava-se de novo no Rio de Janeiro, participando no ano seguinte do primeiro Salão Nacional de Belas Artes, no qual saiu vencedor Batista da Costa. Em junho e outubro de 1895 realizou mais duas individuais, ambas em São Paulo, sendo essas as duas derradeiras vezes em que mostraria ao público sua produção.
Nos últimos anos sua saúde declinara e, com ela, também sua arte. O artista mergulhara em total pobreza, e na mais desenfreada boemia. Não deixaria de produzir, só que o fazia desleixadamente, tendo um dia confiado a Gonzaga Duque:
- Uma caixa de charutos me dá para os cigarros e o bife; as botas, essas eu as faço para mandar dinheiro à velhinha...
(Caixas de charutos eram os quadros de pequena dimensão, executados sobre improvisados suportes de tampas ou fundos de caixas de charutos, fornecidos pelo dono da Tabacaria Havanesa, seu amigo; botas seriam os quadros maiores, sobre tela, supostamente mais caprichados).
O declínio da arte de Castagneto não escapou a muitos comentadores de sua pintura, como França Júnior (seu antigo companheiro no ateliê da Boa Viagem) o qual, em 1889, aconselhava-o a olhar "um pouco mais para os primeiros planos dos seus quadros". Laudelino Freire narra como "trabalhava a correr, e por isso nem sempre o que lhe saía do pincel poderia ser tido como obra conscienciosa", enquanto Virgílio Maurício de certo modo explica o porquê dos seus altos e baixos:
- As suas telas eram pedaços de flandres, caixas de charutos, tábuas, que encontrava em casas de madeira e que solicitava, tudo enfim que lhe chegava às mãos. Tinha grande amor à arte. Sua obra tem altos e baixos, explicáveis pela situação financeira do artista, pelos minguados recursos de que dispunha, pelas condições do meio e da roda em que vivia.
Nos anos finais, sobretudo, era penoso vê-lo, já muito doente e com imensa irritabilidade, vendendo a qualquer preço desenhos a bico-de-pena e mesmo pequeninas marinhas que, como afirmou Artur Azevedo, "por vergonha não assinava". Em fins de 1897 e começos de 1898 recupera um pouco da primitiva visão, quando reside por vários meses em Paquetá. Mas a 29 de dezembro de 1900 falece, num leito da Casa de Saúde Ferreira Leal, no Rio de Janeiro, vítima de mesenterite e arteriosclerose.
Admirado sobretudo como marinhista, Castagneto fez também paisagens e interiores. Seu material favorito era o óleo, mas também deixou aquarelas e muitos desenhos, especialmente em seu último ano. Suas pinturas datadas vão de 1882 a 1900, abrangendo portanto um espaço de pouco menos de 20 anos. O artista assinou-se J. B. Castagneto, B. Castagneto ou simplesmente Castagneto, e existem numerosíssimas falsificações, já denunciadas por Olavo Bilac no livro Crítica e Fantasia, de 1904. Quanto à sua produção, não foi grande: Carlos Roberto Maciel Levy logrou elencar menos de 400 obras, que se salvaram do que qualificou como "espantoso número de falsificações".
Do ponto de vista do estilo, Castagneto era um intuitivo, que fez uma espécie de impressionismo ainda ao tempo em que o Impressionismo era uma força viva, em França. Coloristicamente, o pintor reduzia suas tonalidades a umas poucas notas mais vívidas, com as quais compunha de maneira magistral, valorizando suas marinhas, aqui e ali, com uma ou outra mancha de cor. Sensibilidade, emoção, espontaneidade são as qualidades maiores desse grande artista, que podia dizer, como Boudin (com quem de resto possui afinidades):
- Sou um isolado, um sonhador que se sentiu feliz em ficar no seu canto, a contemplar o céu...

Porto do Rio de Janeiro, óleo s/ tela, 1884;
0,56 X 1,00, Museu Nacional de Belas Artes, RJ.

Marinha, óleo s/ tela, 1885;
0,14 X 0,22, Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Salva de grande gala na baía do Rio de Janeiro, óleo s/ tela, 1887;
0,74 X 1,50, Museu de Arte de São Paulo.

Tarde em Toulon, óleo s/ tela, 1893;
0,40 X 0,65, Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Marinha, óleo s/ madeira, 1896;
0,50 X 0,30, Museus Castro Maya, RJ.

CATUNDA, Leda (1961). Nascida em São Paulo. Fez o curso de artes plásticas da Fundação Armando Álvares Penteado, formando-se em 1985. Era ainda estudante quando, além de integrar a Banda Performática de José Roberto Aguilar (1981), participou das coletivas Pintura como
Meio e Arte na Rua (ambas promovidas em 1983 pelo Museu de Arte Contemporânea da USP), 17ª Bienal de São Paulo (1983 - segmento Arte e Vídeotexto), Como Vai Você, Geração 80? (1984, Parque Lage do Rio de Janeiro) e ARCO - Feira Internacional de Arte (1984, Madrid). Em 1985 casou-se com o pintor Sérgio Romagnolo e fez sua primeira individual na Thomas Cohn Arte Contemporânea do Rio de Janeiro - na qual tornaria a expor em 1988 e 1993; outras individuais teriam lugar em 1986 (Museu de Arte do Rio Grande do Sul, Porto Alegre), 1987 (Galeria Luisa Strina, São Paulo), 1990 (Museu de Arte Contemporânea de Americana, SP; Galeria São Paulo e Galeria Pasárgada de Recife), 1992 (Centro Cultural São Paulo), 1993 (Módulo Centro Difusor de Arte, Lisboa; Pulitzer Art Gallery, Amsterdam), 1995 e 1996 (Galeria Camargo Vilaça, São Paulo) e 1997 (Paço Imperial do Rio de Janeiro). Entre as principais coletivas em que tomou parte figuram, além das já referidas, o Salão Nacional de Artes Plásticas de 1984 e 1985 (MAM do Rio de Janeiro), Nueva Pintura Brasileña, CAYC (1985), 18ª e 22ª Bienal de São Paulo (1985 e 1994), Today’s Art of Brazil (1985, Tóquio), El Escrete Volador (1986, Guadalajara), Modernidade (1987, Musée d’Art Moderne de la Ville de Paris), U-ABC (1989, Amsterdam), Viva Brasil Viva (1991, Estocolmo), BR-80 Pintura Brasil Década 80 (1991, São Paulo), Latin American Artists of the XXth Century (1992-1993, Sevilha, Paris, Colônia e Nova York), Ultra-Modern (1993, Washington), Bienal Brasil Século XX (1994, São Paulo), Latin American Women Artists (1995, Milwaukee), 15 Artistas Brasileiros (1996, MAM-SP e MAM-RJ) e Objeto nos Anos 90 (São Paulo, 1999), entre inúmeras outras. A partir de 1990 reencetou em museus, oficinas culturais e em seu próprio ateliê atividade docente iniciada cinco anos antes na própria FAAP.

Formas e coisas comumente associadas ao universo doméstico feminino - lençóis, estofados, cortinas, colchas, tolhas, perucas, rendas e bordados, almofadas, retalhos, estampados, meias velhas, colchões, tapetes e capachos, desenhos de casas singelas, até uma homenagem ao gato Jonas, sem falar nas mais recentes moscas e outros insetos inquietantes, tudo isso aplicado ou conjugado de modo só aparentemente displicente a fórmica, plástico, pelúcia, acrílico, tela, madeira, luzes, couro etc. -, padrões geométricos, círculos e linhas, visões arquetípicas e releituras irônicas ou bem-humoradas da arte e dos artistas brasileiros constituem o repertório visual de Leda Catunda, artista cuja característica principal talvez seja o impacto desconcertante que costumam causar no espectador desavisado seus trabalhos ao mesmo tempo lógicos mas absurdos, conceituais e objetivos, ingênuos porém eruditos.
Onça pintada, acrílica s/ cobertor, 1984;
1,92 X 1,57, Museu de Arte Contemporânea da USP.

CAVALLEIRO, Henrique Campos (1892-1975). Carioca, Henrique Cavalleiro assim sintetizou os seus começos, pouco antes de morrer, num texto do catálogo de sua retrospectiva de 1975, no Museu Nacional de Belas Artes:
- Quando estudante da Escola Nacional de Belas Artes, de meados de 1910 a 1918, período que corresponde exatamente ao meu aprendizado de pintura, pois antes cursei apenas desenho, já empregava a técnica impressionista. Tentava, mesmo, em alguns trabalhos extra-escolares, seguir um modernismo à maneira de Seurat. Assim, foi executado nessa técnica o quadro Balões Venezianos, de 1912, exposto no Salão Nacional de Belas Artes de 1914. Desde então, como por instinto, sempre mantive esse espírito de pesquisa, embora não encontrasse repercussão ou interesse nos trabalhos que então empreendia, pois, no ambiente artístico da época, nada existia além de receitas acadêmicas.
Cavalleiro estudou na Escola desde 1907, tendo sido aluno de desenho de Daniel Bérard; passando à classe de Zeferino da Costa, nela recebeu medalha de ouro em desenho, distinção que até então só Marques Júnior merecera. Obtendo, em concurso, o prêmio de viagem à Europa, partiria, tão logo terminado o conflito de 1914-18, com destino a Paris, matriculando-se na Academia Julian:
- Embarcando para Paris, fiz o sacrifício, imposto pelas minhas condições de pensionato, de matricular-me na Academia Julian, onde apenas estudei seis meses. Não tive mais paciência para suportar aquela severa disciplina, a que nove anos de Escola me acostumaram, passivamente. Revoltei-me com o ambiente, com os processos, com os artistas e tratei de fundar em Paris o meu ateliê, onde trabalhei durante os cinco anos que lá permaneci. Os meus envios obtiveram sempre reclamações da Congregação e os pareceres dados sobre eles observavam o meu afastamento dos moldes consagrados pela orientação da Escola.
Deixando os velhos ensinamentos de seu mestre na Academia Julian, Adolphe Déchenaud, Cavalleiro abandonou pouco a pouco a sua maneira inicial impressionista por uma arte mais construída e pensada: não mais as sutilezas cromáticas ou atmosféricas, porém a procura de uma solidez estrutural baseada em Cézanne, um artista que exerceu sobre o jovem brasileiro extraordinário fascínio, em começos da década de 1920.
Do período que vai de 1923 ao fim do seu estágio em França datam obras importantes, como Vestido Rosa, ainda impressionista, Nu diante do Espelho e Mimi o Modelo, telas essas que, no dizer do próprio Cavalleiro, "já revelam tendências no sentido de volumes e valores tonais, segundo o princípio de Cézanne".
Expondo em 1924 na Société Nationale des Beaux Arts, Cavalleiro tem seu trabalho aproximado de Kees Van Dongen pelo crítico do Le Journal - aproximação pertinente, porquanto certos elementos fauves e expressionistas revelavam-se na pintura do brasileiro.
Retomando em 1925, o pintor realizou duas individuais, no Rio e em São Paulo, encontrando nessa última "uma elite artística mais avançada nas teorias modernas, que soube dar melhor aceitação à minha maneira de sentir e pintar". Menotti del Picchia gabou-lhe, por exemplo, "a construção sólida, a plasmação de volumes realizados por linhas mais precisas e massas de cor mais sintéticas", enquanto no Rio, Virgílio Maurício disse de sua obra ser "original e pessoal demais em um meio onde só se admiram as cópias fotográficas da natureza".
É de 1926 uma bela têmpera, Juventude, representando uma ruptura no caminho do artista. Trata-se de duas figuras femininas, uma desnuda, a outra amparando na mão uma pomba de asas abertas. Toda a composição, muito estilizada, obedece aos postulados do Art Déco, então em voga na Europa e, através de John Graz e sobretudo Brecheret, também no Brasil.
Em 1927 era-lhe concedida no Salão a medalha de ouro; logo depois, em 1930, por curto tempo retornaria à Europa, para estudar arte decorativa. Cabe aqui um parêntese sobre sua intensa atividade como ilustrador e caricaturista, iniciada em 1906 em O Malho, com colaborações posteriores em Fon-Fon, A Manhã, O Teatro, O Jornal, Ilustração Brasileira e, após 1929, O Cruzeiro.
Por volta de 1940 a arte de Henrique Cavalleiro exibe revitalização, caracterizada por acentuada busca de textura pictórica e um sentimento passional da cor. É o momento das paisagens de Teresópolis, dos nus e figuras construídos mediante uma matéria ricamente expressiva, com larga utilização de cores truculentas, entre as quais se destacam os violetas e os azuis, os amarelos e os laranjas, os verdes, os vermelhos.
Professor da Escola Nacional de Belas Artes desde 1938 até jubilar-se em 1962, coube a Cavalleiro orientar grande número de alunos, entre eles Martinho de Haro, Roberto Burle-Marx e Ubi Bava, bem como, mais recentemente, Júlio Vieira e Píndaro Castelo Branco, demonstrando, a amplidão desse espectro, a largueza de sua orientação.
Cavalleiro, que era casado com a pintora Yvonne Visconti Cavalleiro, faleceu a 26 de agosto de 1975, poucos dias após a abertura de sua grande retrospectiva no Museu Nacional de Belas Artes. No curto depoimento que escreveu para essa mostra, o velho artista deixou aliás grafadas essas frases, que se revelariam tristemente proféticas:
- Finalmente, farei aqui uma referência toda especial ao meu querido Marques Júnior, que nunca me saiu nem me sairá da memória. Figura excelsa de artista, professor emérito, esse inesquecível amigo foi para mim um guia, um animador que me ajudava a vencer dificuldades, tão freqüentes na vida do artista. Recordando-o com emoção, encerro este trabalho, citando reverentemente o seu nome. Até breve, Marques Júnior!

Jardim do Luxemburgo, Paris, óleo s/ tela, cerca 1930;
0,45 X 0,54, Museu Nacional de Belas Artes.

CHAROUX, Lothar (1912-1987). Nascido em Viena (Áustria) e falecido em São Paulo. Teve seu primeiro contacto com a arte ainda na terra natal, com o tio, o célebre escultor Siegfried Charoux, autor do Monumento a Lessing na capital austríaca. Emigrando para o Brasil em 1928, radicou-se em São Paulo, onde sobreviveu à custa de trabalhos humildes, como o de garçom. Matriculando-se mais tarde no Liceu de Artes e Ofícios, ali conheceu Waldemar da Costa, com quem após 1940 passou a estudar pintura. A partir de 1942, e enquanto duraram, expôs nos Salões patrocinados pelo Sindicato dos Artistas Plásticos de São Paulo; do mesmo ano em diante mostrou também seus trabalhos na Divisão Moderna do Salão Nacional de Belas Artes.
Em 1947 foi um dos 19 Pintores reunidos numa coletiva realizada nas salas da União Cultural Brasil-Estados Unidos, por iniciativa de Maria Eugênia Franco e com organização de Rosa Rosenthal Zuccolotto; também nesse ano fez sua primeira individual, na Galeria Itapetininga. Desde então, participou assiduamente de certames como a Bienal de São Paulo, o Salão Nacional de Arte Moderna, o Salão Paulista de Arte Moderna, a Exposição Ruptura, as Exposições Nacionais de Arte Concreta e os Panoramas de Arte Atual Brasileira organizados pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo, sendo várias vezes premiado; além disso, expôs individualmente com freqüência, em cidades brasileiras e no exterior.
Quando expôs com o Grupo dos 19, Charoux achava-se já com 35 anos e possuía uma considerável experiência como artista. Praticava, então, uma pintura figurativa indisfarçavelmente expressionista, na qual as paisagens, as figuras e as naturezas-mortas eram traduzidas em tonalidades cavas, num desenho sofrido e deformado. Despojando-se aos poucos, em meados da década de 1950 adotou a linguagem abstracionista geométrica, de conotação concreta e ótica, que desde então praticou. Sua arte de extremo refinamento caracteriza-se por sensibilidade cromática e linear, e se traduz em delicados jogos visuais, que imprimem à superfície de suas telas uma sugestão de constante movimento. Urna pintura típica de Charoux apresenta normalmente um fundo chapado, de cor geralmente negra e em todo caso escura, sobre o qual estreitas estrias coloridas acham-se dispostas de maneira rigorosamente matemática, criando na retina do espectador uma inevitável sensação pulsátil, como se toda a superfície pictórica subitamente se animasse e começasse a vibrar.

Sem título, grafite e guache, 1956;
0,49 X 0,37, Museu de Arte Contemporânea da USP.

CLARK, Lígia (1920-1988). Nascida em Belo Horizonte (MG) e falecida no Rio de Janeiro. Em 1947 começou sua aprendizagem artística com Roberto Burle-Marx, no Rio de Janeiro; logo continuou-a em Paris com Fernand Léger, Arpad Szenes e Isaac Dobrinsky. E foi em Paris, no Institut Endoplastique, que em 1952 realizou sua primeira individual, suscitando o interesse de pintores como Hans Arp e Agam e do crítico Michel Seuphor. Regressando nesse mesmo ano ao Brasil e de novo radicada no Rio de Janeiro, em 1954 ingressava no Grupo Frente, de cujas mostras participou com destaque, e em 1956 tomou parte na Exposição Nacional de Arte Concreta realizada em São Paulo. Desde que regressara, aliás, vinha praticando uma pintura construtivista afim ao Concretismo, se não já concretista, na qual, utilizando apenas o preto e o branco, buscava fundir os planos da pintura aos da arquitetura, ao invés de os manter isolados do espaço real e dele protegidos pela moldura. Lutava, assim, pela abolição da moldura, com a conseqüente invasão do espaço tridimensional pelo espaço bidimensional do quadro. Essa integração entre espaço real e espaço "fingido" foi levada a efeito em sucessivas séries, como as superfícies moduladas de 1956-1958 - placas em preto e branco pintadas a pistola - ou os contra-relevos - placas de madeira superpostas e interdependentes - iniciados em 1959. Sobre a importância desse momento da carreira da artista assim escreveu Ferreira Gullar
- A importância da série de obras realizadas por Lígia Clark, entre 1954 e 1958, reside no fato de ter ela, através dessas obras, libertado o quadro de suas conotações tradicionais, rompendo com o espaço de representação que se mantinha ao longo da evolução pictórica não-figurativa, de Mondrian aos concretistas.
Em 1959, ao mesmo tempo em que assinava o Manifesto Neoconcreto - movimento de cujas mostras no Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo participou entre 1959 e 1961 -, Lígia chega ao limite extremo entre o bidimensional e a terceira dimensão: o próximo passo seria o abandono do plano pictórico e a incursão pela tridimensionalidade, iniciado por seus Casulos e Trepantes de 1959 e confirmado no ano seguinte pelo aparecimento de seus primeiros bichos - construções em alumínio, geométricas, compostas por dois ou mais planos e se articulando por meio de dobradiças, podendo ser manipuladas a bel prazer pelo espectador. No catálogo da exposição de 1960 na Galeria Bonino do Rio de Janeiro, a artista assim definia suas criaturas:
- Foi dado o nome de bichos aos meus últimos trabalhos pelo caráter essencialmente orgânico que eles possuem. Além disso a maneira que achei para unir os planos, uma dobradiça, lembrou-me uma espinha dorsal. A própria organização das placas de metal determina as posições do bicho, que à primeira vista parecem ilimitadas. Quando me perguntam quais são essas possibilidades de movimento, costumo responder: "Eu não sei, você não sabe, mas êle sabe". Os bichos não têm avesso. Cada bicho é uma entidade orgânica que se revela em sua totalidade dentro de seu tempo interior de expressão. Tem afinidade com o caramujo e a concha. É um organismo vivo, uma obra essencialmente atuante. Entre você e ele se estabelece uma interação total, existencial. Na relação que se estabelece entre você e o bicho não há passividade, nem sua nem dele. Acontece uma espécie de corpo a corpo entre duas entidades vivas.
Em 1963 Lígia cria uma obra emblemática em sua produção: Caminhando, na qual utilizou a fita de Moebius. A partir de meados da década ela se entrega à poética do corpo, dedicando-se a experimentos sensoriais marcados pelo efêmero. Nascem-lhe então as séries Abrigos Arquitetônicos (1963), Nostalgia do Corpo (1966), A Casa é o Corpo (1968), Respire Comigo, Roupa-Corpo, Roupa, Cesariana, Capacetes Sensoriais, Baba Antropofágica etc.: Lígia volta-se para as experiências táteis, visando materializar no espectador o que faz parte de sua própria humanidade. Entre 1972 e 1976, mais uma vez em Paris, deu aulas de desbloqueio pisocológico na Sorbonne a uma série de jovens. Não chamava aliás de aulas, mas de scéances, a tais sessões, que assim explicou numa entrevista:
- Peço para que se toquem, e não têm coragem nem de tocar no cabelo um do outro. Todo o trabalho é feito no chão, em cima de um tapete, sem sapatos. Disciplina, não existe. Tudo é válido. A única hora em que faço uma exigência é que quando alguém dá sua vivência, todo o grupo deve ficar na posição de escuta. É o corpo coletivo. Isso não deixo passar. Falo a eles que os olhos vêem, o ouvido vê, o corpo inteiro vê, sentindo. Na verdade, falo muito pouco, discuto muito. O meu não é um curso no sentido clássico. Nele os jovens obrigatoriamente têm de se expressar. E tudo o que expressam é válido. Então, não existe o medo de errar. Não existe razão. Todo mundo tem razão.
Lígia Clark - que após seu retorno ao Brasil em 1976 deu por encerrada sua fase de criatividade estética, considerando-se de então até morrer uma "não-artista" - percorreu todos os caminhos, da pintura à escultura e à arquitetura, à arte sensorial e à pesquisa do corpo. Nos últimos anos, valendo-se da arte como método de trabalho psicoterapêutico, manteve no Rio de Janeiro um consultório onde aplicava a seus pacientes o que logrou descobrir por si mesma, depois de longa análise desenvolvida em Paris com o psicanalista Pierre Fedida. Sua carreira como artista, entre 1952 e 1976, inclui individuais realizadas em Paris, Rio de Janeiro, Nova York, Stuttgart, Londres, Belo Horizonte etc., bem como participações em importantes coletivas, como a Exposição-Piloto de Arte Cinética (1964, Londres), a Mostra Antológica de Escultura Móvel (1965, Londres), a I Bienal Nacional de Artes Plásticas (1966, Salvador - Sala Especial), a Bienal de Veneza em 1962 e 1968 (Sala Especial), o IX Salão Nacional de Artes Plásticas (1986, Rio de Janeiro - Sala Especial), a VI (1961 - Melhor Escultor Nacional), a VII (1963 - Sala Especial) e a XXII Bienal de São Paulo (1994, Sala Especial), a Bienal de Medellin (1970), a Documenta de Kassel (1997) etc. Em anos recentes sua fama tem-se expandido de modo extraordinário, sobretudo depois da grande retrospectiva itinerante que, organizada por Manolo Borja-Villel, da Fundação Tapies, desde 1997 percorreu com sucesso estrondoso Barcelona, Marselha, Porto, Bruxelas, Rio de Janeiro e São Paulo. A seu respeito assim se expressou em 1992 Maria Alice Milliet:
- A importância de Lígia Clark no panorama cultural brasileiro não se prende exclusivamente ao estético mas sobretudo à determinação de atravessar os territórios minados da arte terapia. Seu legado é a ousadia de querer mudar a linguagem e mudar o outro. Sua obra é o trajeto. Seu pensamento-obra marca o território da contemporaneidade, deixando um rastro identificável no emaranhado mal decifrado dos desígnios sublimatórios do meio cultural. O lugar de Clark neste contexto era sempre tangente, sob certos aspectos, marginal, é um ponto que se desloca para fora da ordem estabelecida, movido pela necessidade de abrir espaços, criar situações para o exercício da liberdade. Arte para Lígia Clark é estratégia existencial.

Cartão de Natal do Museu de Arte Moderna, RJ, colagem, 1955;
0,19 X 0,13, Museus Castro Maya, RJ.

Plano em superfícies moduladas 2, tinta s/ madeira, 1956;
0,90 X 0,75, Museu de Arte Contemporânea da USP.

A casa é o corpo, plásticos, elásticos, lona, montada em 1968
Museu de Arte Moderna , RJ

CORDEIRO, Waldemar (1925-1973). Nascido em Roma (Itália) e falecido em São Paulo. Fez seus estudos na Academia de Belas Artes de Roma, fixando-se no imediato após-guerra em São Paulo, onde de 1946 até sua morte prematura, aos 48 anos, desenvolveu intensa atividade como pintor, escultor, urbanista, paisagista, crítico e teórico de arte, tendo sido um dos precursores, no Brasil, da arte concreta e da chamada arteônica (arte realizada por meios eletrônicos).
Espírito irrequieto, buscando sempre uma atualização de códigos que lhe permitissem externar em termos de arte a complexa realidade do mundo contemporâneo, Cordeiro não hesitou em adotar sucessivas linguagens, só aparentemente desconectadas entre si; e se sua atividade de teórico lhe furtou um tempo precioso ao fazer artístico, é fora de dúvida que só sua teorização já lhe garantiria lugar de destaque entre nossos mais lúcidos e criativos artistas do Séc. XX.
Cordeiro fundou em São Paulo, em 1949, o Art Club, participando, nesse mesmo ano, da mostra Do Figurativismo ao Abstracionismo, com que se abriu ao público o Museu de Arte Moderna de São Paulo; no ano seguinte assumia a coluna de crítica de arte na Folha de São Paulo. Na década de 1950 sua participação nos movimentos de vanguarda torna-se intensa. Já em 1952 é o organizador e teórico do Grupo Ruptura, e nos meados dos anos 50 é a figura de proa da arte concreta em São Paulo, tendo exposto nas mostras nacionais de 1956 em São Paulo e de 1957 no Rio de Janeiro, bem como, em 1960, na Mostra Internacional de Arte Concreta de Zurique. Por volta de 1964 procura dar corpo a um novo movimento estético a que deu o nome de Popcreto, e que não é, como pensam muitos, simples mistura de elementos da Pop Art e de ingredientes do concretismo, mas sim, como escreveu Max Bense, "o encontro de coisas de consumo prático e coisas de consumo teórico". Logo após toma parte nas mostras Propostas 65 (São Paulo) e Opinião 65 (Rio de Janeiro), bem como, em 1967, na Nova Objetividade Brasileira, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Interessando-se, a partir de 1968, pelas aplicações do computador ao campo da atividade estética, passou a trabalhar, na Unicamp, com uma equipe de matemáticos, físicos, engenheiros e artistas, e em 1971 realizou, na Fundação Armando Álvares Penteado, a primeira exposição internacional de arte por computação realizada no Brasil - a Arteônica.
Se em Waldemar Cordeiro a atividade de teórico da arte e de agitador cultural dominou todas as demais, é inegável que sua obra, quantitativamente pequena, posta-se em elevado nível qualitativo. Eqüivalendo a todo um périplo evolutivo da arte brasileira pós-moderna - desde os primeiros esquemas construtivistas, em começos da década de 1950, ao concretismo de seus meados, às formulações do Popcreto, à incursão pela Nova Figuração e finalmente à adoção de uma linguagem calcada na cibernética e na computação, que articulava quando faleceu. Muito embora se considerasse, e o fosse efetivamente, um marginal do circuito tradicional das artes, expôs em numerosas coletivas, como o Salão Paulista de Arte Moderna (aquisição e medalha de prata em 1954, medalha de ouro em 1960), a Bienal de São Paulo e a Bienal Nacional de Artes Plásticas da Bahia (Salvador, 1966 - sala especial). Realizou também algumas individuais (a primeira em 1959, na Galeria de Arte da Folha), foi presidente, em 1957, da União dos Artistas Plásticos de São Paulo, e único membro brasileiro da Computers Art Society, de Londres.
Movimento, têmpera s/ tela, 1951;
0,90 X 0,95, Museu de Arte Contemporânea da USP.

Movimento, têmpera s/ tela, 1951;
0,90 X 0,95, Museu de Arte Contemporânea da USP.

COSTA, Waldemar da (1904-1982). Nascido em Belém (PA) e falecido em Macaé (RJ). Seguindo aos seis anos de idade com a família para Portugal, fixou-se em Lisboa, onde em 1923 principiou seus estudos de desenho e aquarela com Martinho da Fonseca e João Alves de Sá. No ano seguinte matriculou-se na Academia Nacional de Belas Artes, ali recebendo aulas de Ernesto Condeixa, Luciano Freire e Carlos Reis. Não chegaria contudo a concluir o curso da Academia, abandonando-o em 1928 para já no ano seguinte fixar-se em Paris.
Em Paris freqüenta academias livres, torna-se aluno de Eduardo Viana e conhece uma série de grandes pintores, como De Chirico, Pascin e Foujita, relacionando-se ainda com os brasileiros Gastão Worms, Portinari, Hugo Adami, Manoel Santiago, Quirino Campofiorito, Joaquim do Rego Monteiro e outros. É em seu ateliê parisiense que irá trabalhar Portinari, recém-chegado à França com o prêmio obtido no Salão Nacional de Belas Artes de 1928. Depois de mostrar seus quadros com sucesso em 1930 e 1931 na 41ª e na 42ª Exposição da Societé des Artistes Indépendants, de Paris, e no I e II Salões dos Independentes, em Lisboa, torna ao Brasil, expondo em 1931 no chamado Salão Revolucionário organizado por Lúcio Costa, merecendo, do crítico Quirino da Silva, a seguinte referência:
- Waldemar da Costa, aqui recém-chegado, é sobretudo um pintor: sua vigorosidade técnica não o impede de impregnar nas suas telas a alegria colorista.
Em 1933, depois de no ano anterior ter realizado no Rio de Janeiro sua primeira individual, retira-se para Correias, na Granja Santa Rita, afastando-se por três anos de toda atividade artística, em busca da saúde abalada. Recuperando-se, torna ao Rio de Janeiro, onde em 1935 realiza uma segunda individual. Fixando-se no ano seguinte em São Paulo, logo começa a lecionar, numa sala que lhe fora cedida no Teatro Municipal, tendo sido seu primeiro aluno o futuro grande pintor Clóvis Graciano. Em agosto de 1936 efetua sua primeira individual paulistana, terceira de sua carreira.
Em 1937, por iniciativa sua, é organizado o I Salão Paulista de Arte, que é levado ao Pará e ao Ceará. Nesse mesmo ano, depois de participar do I Salão de Maio em São Paulo, tem, em conversa com Gobbis e Rossi Osir, a idéia de criar um salão de arte que congregasse artistas modernos, embora não extremadamente modernos. São convidados a participar, além dos componentes do Grupo do Santa Helena, alguns artistas independentes, como Malfatti, Hugo Adami e poucos mais, abrindo-se a mostra logo depois, sob o titulo de I Exposição da Família Artística Paulista. A despeito dessa participação de relevo na gênese da Família, nem sempre o nome de Waldemar da Costa é citado por aqueles que se dedicaram ao levantamento histórico-crítico daquele movimento pictórico, o que levou Geraldo Ferraz a escrever em 1972:
- Foi dos que mais se responsabilizaram pela Família Artística Paulista, movimento que tem aparecido ultimamente na publicidade, sem incluir o nome de Waldemar da Costa, o que é erro histórico e diminuidor da verdade que houve em tal movimento.
A partir de 1938 Waldemar torna-se professor de Geometria Descritiva e Desenho do Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, funções que desempenhará nos próximos 16 anos, tendo sido ali seus alunos Lothar Charoux e Hermelindo Fiaminghi, entre outros. Participa, em 1939 e 1940, do II e III Salão da Família Artística Paulista, do de 1939 na qualidade de diretor responsável. Nos próximos anos participará com freqüência de numerosas coletivas, como o Salão Nacional de Belas Artes (Divisão Moderna), os salões do Sindicato dos Artistas Plásticos, a Exposição de Arte Moderna organizada, em 1944, pela Prefeitura de Belo Horizonte, a Bienal de São Paulo de 1951, o Salão Paulista de Arte Moderna e o Salão Baiano de Belas Artes, obtendo diversos prêmios, como a medalha de bronze e prêmio de aquisição, no Salão de 1941 e a medalha de prata no de 1944, bem como a pequena medalha de ouro no IV Salão Paulista, em 1955.
Em janeiro de 1956 Waldemar Costa fixou residência em Lisboa, permanecendo em Portugal até julho de 1966. Nesses dez anos, desenvolve intensa atividade, participando de diversas coletivas, realizando individuais em Lisboa (1956, 1964, 1966), Coimbra (1959, 1966), Madrid (1961) e Belém do Pará (1963) e após 1960 à frente do Setor Cultural da Embaixada Brasileira em Portugal. De 1960 a 1966 foi professor de pintura em Coimbra, e em 1962, com bolsa de estudos da Fundação Gulbenkian, visitou a Itália. Sua atuação no cenário artístico português é objeto de comentários favoráveis, de parte de críticos como Adriano de Gusmão, José Augusto França e Fernando Pernes, dizendo por exemplo França, ao analisar o I Salão Nacional de Arte Moderna da Sociedade Nacional de Belas Artes, em 1958:
- Waldemar da Costa é um pintor altamente cultivado que subordina os problemas da superfície ao desdobramento concreto das cores e nesse movimento segundo coordenadas rigorosas, constrói, por transparências, finas arquiteturas sensíveis.
Os últimos 15 anos de sua carreira decorrerão no Brasil, e presenciarão ainda algumas individuais - como a retrospectiva de 1967 na Galeria Astréia, de São Paulo -, e a grande Retrospectiva e Exposição - Homenagem ao Mestre, efetuada em 1972 no Museu de Arte Moderna de São Paulo, reunindo 124 obras realizadas entre 1928 e 1972, e ainda pinturas de dez de seus mais destacados ex-alunos, como Clóvis Graciano, Arcangelo Ianelli, Hermelindo Fiaminghi, Lothar Charoux, Maria Leontina, Amélia Toledo, Ubirajara, Miriam Chiaverini, Izar e Rachel.
No que respeita à evolução de sua arte, ninguém melhor do que o próprio Waldemar da Costa para esboçá-la, como se lê no depoimento prestado em 1972 a Luiz Ernesto Machado Kawall:
- Ao chegar a Paris vindo da Escola de Belas Artes de Lisboa, onde o ensino era francamente acadêmico, encontrei o movimento que se chamou mais tarde de Escola de Paris, em pleno sucesso. Aderi imediatamente a ele por estar de acordo com o que ele representava: uma volta à realidade tranqüila. Tinha passado a época dos grandes movimentos - fovismo, expressionismo, cubismo, futurismo, e quase todos os pintores que tinham pertencido a qualquer uma dessas manifestações retrocederam na sua visão fantástica para uma pintura de representação objetiva. Naturezas-mortas, paisagens, figuras nuas ou vestidas, ou ainda semivestidas, em posturas calmas e tranqüilas, eram os assuntos preferidos. Foi com essa arte que participei nos vários salões e exposições que fiz durante os três anos de minha estada em Paris. Foi ainda com essa mesma visão que participei dos Salões dos Independentes, em Lisboa, e no I Salão de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1931. Passaram-se alguns anos antes de que eu evoluísse para o expressionismo, o que sucedeu no período de 1944 a 1948. Buscas de uma construção purista vieram a seguir, passando depois para uma geometrização ainda figurativa, onde se sentia já o desmembramento das figuras e objetos, caminhando para uma solução francamente abstrata. Foi na Itália, como bolsista da Fundação Calouste Gulbenkian, que me inspirei para aplicar metais nos quadros. Então, numa abstração lírica, comecei a empregar o ouro e a prata como elementos plásticos. Mais tarde volto a uma construção geométrica, tirando partido de efeitos luminosos dos referidos metais. No momento atual a arte que faço situa-se nos temas Estático-Semovente e Movimento. São formas metálicas que fazem lembrar peças de máquinas imaginárias, tornando a crueza da tecnologia mecânica em objetos oníricos e poéticos. Participando de uma época em que tudo é tão material e prático, procuro criar um mundo técnico em que o homem não abandone o sonho, através de formas e movimentos dados por efeitos luminosos.
Convencionou-se ver, em Waldemar da Costa, principalmente o mestre, o professor de tantos pintores cujo talento ajudou a desabrochar; no entanto, força é nele reconhecer antes de mais nada um grande pintor, cuja longa trajetória, do figurativismo à abstração geométrica, de certo modo recria um amplo périplo evolutivo da moderna pintura brasileira, com a qual se confunde.

Estático, semovente, verniz e ouro, 1966;
1,00 X 1,18, Museu de Arte Contemporânea da USP.