artistas A-B

A

AGOSTINI, Angelo (1843-1910). Nascido em Vercelli (Itália) e falecido no Rio de Janeiro. Chegou ao Brasil em 1859, fixando-se em São Paulo, onde em 1864 deu início à sua carreira de caricaturista, publicando seus primeiros trabalhos em O Diabo Coxo. Transferindo-se para o Rio de Janeiro, nessa cidade desenvolveria intensa atividade em prol da Abolição, colaborando em periódicos como Vida Fluminense, O Mosquíto e Revista Ilustrada com caricaturas e artigos. Foi na Revista Ilustrada que em 1884 começou a publicar, em capítulos, As Aventuras de Zé Caipora, consideradas, por Herman Lima, a primeira estória-em-quadrinhos brasileira. As Aventuras de Zé Caipora tiveram continuidade nas páginas de D. Quixote (1901) e de O Malho (1904).
Como pintor, Angelo Agostini teve atuação mais discreta. Cultivou a paisagem e o retrato, chegando a merecer encômios de Gonzaga Duque; mas não era a pintura o seu meio expressivo. Esse, ele o teve na caricatura, e certamente também na crítica de artes plásticas, que exerceu com conhecimento, fazendo uso de uma linguagem extremamente ferina e bem-humorada.

Caricaturas, litografia, 1872;
0,14 X 0,18, publicada no jornal Vida Fluminense.

ALBUQUERQUE, Georgina de (1885-1962). Nascida em Taubaté (SP), chamava-se em solteira Georgina de Moura Andrade, adotando o sobrenome Albuquerque ao casar, em 1906, com o grande pintor Lucílio de Albuquerque.
Em menina, teve algumas aulas de pintura com Rosalbino Santoro, artista italiano que na ocasião percorria o interior de São Paulo, como inúmeros outros paisagistas da época. Mais tarde, visitando em São Paulo uma exposição de Antônio Parreiras, resolveu embarcar para o Rio de Janeiro, a fim de se matricular na Escola Nacional de Belas Artes e estudar seriamente.
Em 1904 era aluna de Henrique Bernardelli na Escola; ainda no primeiro ano conheceu Lucílio de Albuquerque, que concluía um brilhante curso, coroado em 1906 com a viagem à Europa:
- Casamo-nos. Partimos pobremente, apenas com a bagagem de dois estudantes, para a Europa, onde vivi cinco anos. Em Paris, meus principais mestres foram Gervaix, na École des Beaux-Arts, e Royer, no Curso Julian. Depois, trabalhei por conta própria.
Expondo desde 1905 no Salão, nele receberia menção de 1° grau (1909), pequena (1912) e grande medalha de prata (1916) e medalha de ouro (1919); também participou de exposições coletivas em Nova Iorque (1924), Los Angeles (1925), Buenos Aires (1927, primeiro prêmio de pintura) e Rosário (1929), e do Salão Paulista de Belas Artes (medalha de prata em 1941, prêmio Prefeitura de São Paulo em 1942, prêmio Governador do Estado em 1949).
Desde 1927 desenvolveu intensa atividade didática, na Escola Nacional de Belas Artes (livre-docente, catedrática-interina e afinal catedrática de Desenho), na Universidade do Distrito Federal e no Museu Lucílio de Albuquerque, que funcionava em sua própria casa, e no qual instituiu um curso de desenho e pintura para crianças, talvez o primeiro no Brasil. Entre 1952 e 1954, quando se aposentou, foi diretora da Escola Nacional de Belas Artes.
Georgina de Albuquerque praticou todos os gêneros, da pintura histórica à natureza-morta, do nu à marinha e do retrato às cenas de gênero, Foi, porém, em figuras ao ar livre, entre folhagens, batidas pelo sol, que encontrou seu tema predileto. Ela mesma dizia-se em 1927 impressionista, explicando, meio singelamente, a Angione Costa o que entendia por Impressionismo:
- É uma feição moderna, alguma coisa de novo em pintura. Foge inteiramente aos moldes preestabelecidos. É tudo quanto há de mais movimentado, mais ensolado, menos calculado e medido. Eu pinto a natureza, pelas sugestões que ela me causa, pelos arroubamentos que me provoca, e como tal não posso ficar, hierática e solene, ante os imperativos que ela em mim produz. Depois amo a figura humana. Vou pela praia, encantada pela paisagem; deparo-me com uma criança, enterneço e me desinteresso pelo ambiente em redor. A minha sensibilidade é presa da graça, do movimento, da vibração infantil. O irnpressionismo, como eu o pinto, é novo aqui e não deixou de encontrar resistências, logo que comecei a fazê-lo.
Na verdade, Georgina começara a fazer o seu impressionismo por volta de 1907, quando a pintura brasileira achava-se ainda por demais enredada em fórmulas de um gasto academicismo; até morrer iria conservar-se uma impressionista à sua moda, praticando uma pintura de intensas vibrações cromáticas, toda luz e espontaneidade, traduzida num desenho fácil e em técnica segura; pintura jovial, sadia, de um frescor peculiar, correspondendo maravilhosamente à personalidade generosa da artista, falecida aos 77 anos, ainda em atividade, no Rio de Janeiro.
Busto, óleo s/ tela, 1907;
0,61 X 0,50, Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Sessão do Conselho de Estado, óleo s/ tela, 1922;
1,92 X 2,60, Museu Histórico Nacional, RJ.

Dia de Verão, óleo s/ tela, cerca de 1926;
1,30 X 0,89, Museu Nacional de Belas Artes, RJ.

ALBUQUERQUE, Lucilio de (1877-1939). Nascido em Barras (PI), filho de um magistrado e descendendo de tradicional família pernambucana, Lucílio de AIbuquerque destinava-se também à carreira jurídica, chegando a cursar a Faculdade de Direito de São Paulo, que abandonou logo no 1° ano. Em 1896 era aluno da Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, tendo freqüentado as classes de Zeferino da Costa, Daniel Bérard, Rodolfo Amoedo e Henrique Bernardelli. Numa entrevista, muitos anos depois, o pintor confessaria:
- A maior emoção de minha carreira recebi-a quando, pela primeira vez, me vi, na minha primeira aula de Desenho Figurado, de fusain em punho, diante de uma folha moldada em gesso, para copiar! Passei os olhos por tudo quanto me rodeava. Os veteranos, com uma semana de trabalho, já haviam marcado as suas tarefas, bustos, estátuas, torsos. Tive a impressão de que aquilo tudo era uma maravilha e senti-me incapaz de fazer o mesmo. Quando a aula terminou, corri como um louco para o meu quarto, o meu pobre quartinho de pensão! E completamente só, desanimado, eu que até aquela data tinha vivido dentro da casa ampla e feliz de meus pais, não pude conformar-me com a minha situação, que me parecia horrível, e chorei como uma criança inconsolável... Felizmente o dia seguinte trouxe-me o alento, enxugou-me as lágrimas e deu-me ânimo para continuar nessa luta, que nunca mais cessou, e para a qual também nunca mais me faltou a coragem precisa.
Expôs pela primeira vez no Salão de 1902, no qual obteve menção de 2º grau; no mesmo certame receberia sucessivamente menção de 1º grau (1904) , medalha de prata (1907), pequena medalha de ouro (1912, com Despertar de Ícaro) grande medalha de ouro (1916) e medalha de honra (1920, com Retrato de Georgina).
Em 1906 foi-lhe atribuído o prêmio de viagem à Europa da Escola, pela tela Anchieta escrevendo o Poema da Virgem. A 31 de março do mesmo ano casara-se com uma colega primeiranista, Georgina de Moura Andrade - a futura grande artista Georgina de Albuquerque -, juntos seguindo para a França, para uma permanência de cinco anos. Em Paris freqüentou a Académie Julian, aperfeiçoando-se com Marcel Baschet, Henry Royer e Jean-Paul Laurens, e também o ateliê de Grasset, tal como Visconti alguns anos antes. Ao lado daquela orientação conservadora, e do breve interlúdio decorativista, sob a égide de um dos corifeus do Art Nouveau, Lucílio não deixaria igualmente de observar as tendências estéticas mais em voga, deixando-se mesmo seduzir por procedimentos impressionistas e simbolistas, visíveis em suas pinturas realizadas entre 1906 e 1911 (Etang de Triveau, Paisagem de Lemesnil, Primavera em França, Paraíso Restituído, Freira e Enfermo, Sono, Despertar de Ícaro, Prometeu, Visão de Floresta, Dante, etc.). Por quatro vezes, de 1908 a 1911, expôs no Salon des Artistes Français, sendo que nesse último ano exibiu sua pintura talvez mais conhecida, Despertar de Ícaro, um tema que lhe nascera ao presenciar, em 1906, o vôo pioneiro de Santos Dumont em Paris, intermesclado, porém, a toda uma gama de elementos esotéricos, rosacrucianos.
Retornando ao Brasil em 1911, e após realizar, ao lado de Georgina, uma grande exposição, agrupando 107 trabalhos, na Escola Nacional de Belas Artes, Lucílio tornou-se professor de Desenho da instituição, assumindo a cátedra respectiva em 1916. Bom mestre, que respeitava a personalidade dos jovens discípulos, coube-lhe iniciar a, entre tantos outros, Cândido Portinari. Por pouco mais de ano, entre janeiro de 1937 e março de 1938, dirigiu inclusive a Escola, da qual se afastou por motivo de saúde, para falecer meses mais tarde, a 19 de abril de 1939.
Lucílio de Albuquerque praticou todos os gêneros, tendo-se destacado sobremodo como paisagista e pintor de figuras. Ele mesmo diria, de certa feita:
- Não tenho propriamente um gênero predileto. Pinto com o mesmo entusiasmo a marinha e a paisagem. Todavia confesso-lhe que fico mais satisfeito toda vez que realizo um quadro de idéia, que faça pensar.
A quadros de idéias referira-se também, anos antes, o grande Oliveira Lima, ao escrever sobre Despertar de Ícaro em 1912:
- Não se quis o artista limitar a reproduzir a natureza, quero dizer, a interpretá-la. Aspira a dar nas telas as idéias que são expressão legítima da sua inteligência e a correlação necessária da sensibilidade, fundamento da arte.
Mas, ao lado da pintura de cavalete, executou o artista vitrais para o Pavilhão Brasileiro na Exposição de Turim de 1911, e murais para o antigo Conselho Municipal, depois Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro. Trabalhando infatigavelmente, realizou inúmeras exposições, não só no Rio de Janeiro, como ainda em São Paulo (inclusive sua última, em 1936, ao lado da mulher), Salvador, Recife, Porto Alegre e Campos. De uma viagem a Salvador, em 1924, trouxe um punhado de óleos marcados pela luminosidade característica da cidade, refletida não já em pinceladas, porém em golpes de espátula, recurso do qual nunca mais se afastaria.
Estilisticamente, pode-se dizer que Lucílio partiu das sombras para a luz, tornando-se sua paleta mais e mais clara, à medida que sua arte amadurecia. Afastando-se gradativamente de uma concepção realista da forma, obtida com o emprego de sólido desenho, o artista chegaria, no final da carreira, a efeitos cromáticos quase expressionistas: pela modernidade e originalidade que ostentam, são muito apreciadas suas paisagens de tonalidades violáceas inconfundíveis, extravasadas numa textura opulenta, obtida à espátula. Conquistado pela pintura de plein-air, Lucilio tornara-se, em começos do Séc. XX, um dos representantes tardios do Impressionismo no Brasil; espírito curioso, ainda em 1920, com o Retrato de Georgina, procurava renovar-se, buscando então uma estilização e um despojamento de planos que, de certa maneira, o aproximam do Art Déco.
Após sua morte, Georgina de Albuquerque organizou, na residência do casal em Laranjeiras (RJ), o Museu Lucílio de Albuquerque, cujo acervo de 127 obras hoje pertence ao Estado. Uma exposição póstuma, levada a efeito em 1940 pelo Ministério da Educação e Saúde, evocou o artista recém-desaparecido. E em 1977, para celebrar o centenário de seu nascimento, o Museu Nacional de Belas Artes reuniu pinturas, aquarelas e desenhos tanto de Lucílio como de Georgina de Albuquerque.


Retrato de Georgina de Albuquerque, óleo s/ tela, 1907;
0,61 X 0,50, Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Jangada, óleo s/ tela, 1920;
0,90 X 1,09, Palácio Bandeirantes, SP.

Gávea Golf, Rio de Janeiro, óleo s/ tela, cerca 1928;
0,76 X 1,20, Museu Nacional de Belas Artes, RJ.

ALDEMIR Martins (1922). Nascido em Ingazeiras (CE). Transferindo-se na adolescência para Fortaleza, ali deu começo, em princípios da década de 1940, à sua carreira artística, participando do movimento de renovação cultural desencadeado pela Sociedade Cearense de Artes Plásticas, que ajudou a fundar. Mudando-se em 1945 para o Rio de Janeiro, pouco se demorou nessa cidade, pois em 1946 já se achava radicado em São Paulo, onde desde então tem transcorrido toda a sua carreira. Foi em São Paulo, em 1947, que obteve seu primeiro prêmio de significação: o terceiro lugar na mostra 19 Pintores, realizada na União Cultural Brasil-Estados Unidos e julgada por Segall, Malfatti e Di Cavalcanti (Grupo dos 19).
Oriundo de uma das regiões mais dramaticamente carentes do país, era compreensível que Aldemir evocasse, nos primeiros testemunhos de sua produção pictórica, temas e motivos pungentes, reveladores das condições subumanas em que viviam - e ainda vivem - tantos nordestinos. E embora muito jovem e inexperiente, sem dispor sequer dos recursos técnicos de que mais tarde se apossaria, é de se realçar a força dramática dos seus quadros da época, nos quais a miséria, a seca, a fome e a doença desempenham o papel principal; força dramática, de resto, que a partir da década de 1950 cederia gradativamente vez a uma crescente estilização e a uma acentuada pesquisa formal, que os tornariam mais bem realizados, sem dúvida, mas menos expressivos.
Com o passar dos anos, também, Aldemir foi-se definindo cada vez mais como artista gráfico, em detrimento da pintura. E como gravador e desenhista foi que se impôs no panorama de nossas artes plásticas, ganhando prêmios da importância do da Bienal de São Paulo em 1955 (Melhor Desenhista), ou do da Bienal de Veneza em 1956 (Desenho), ou ainda do de viagem ao estrangeiro do Salão Nacional de Arte Moderna de 1959, graças ao qual passou dois anos na Itália.
A temática sofrida dos seus primeiros tempos em Fortaleza e São Paulo foi pouco a pouco substituída por assuntos menos agressivos, de bichos (e em especial gatos), aves (sobretudo galos), flores, frutos, cangaceiros e mulheres rendeiras, tratados não mais expressionisticamente, mas de modo mais adocicado. E foram esses assuntos, divulgados por todo o país até como padrões decorativos de louças e tecidos, que terminaram por transformar Aldemir num dos artistas plásticos mais populares do Brasil.
Recentemente, Aldemir vem praticando com assiduidade crescente a pintura, sem contudo abandonar o desenho, em que melhor se realiza. A temática de sua pintura é a mesma dos desenhos e das gravuras, apenas acrescida de certas paisagens e marinhas produzidas nos últimos anos em longas temporadas passadas no Ceará. Mas era natural que um artista todo voltado para a linearidade não encontrasse na pintura seu meio expressivo favorito, e assim, o que realiza nesse gênero pouco acrescenta ao que logrou externar enquanto gravador, e principalmente enquanto desenhista.
Lavando marmita, nanquim, 1945;
0,35 X 0,50, coleção particular.

Cangaceiro, nanquim, 1956;
0,98 X 0,46, Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Ilustração para o livro Passárgada, água-forte, cerca 1959;
0,16 X 0,21, Museus Castro Maya, RJ.

AMARAL, Antonio Henrique (1935). Nascido em Sćo Paulo (SP). De uma famķlia de artistas - o pai era primo-irmćo de Tarsila, e das trźs irmćs, uma é cineasta, a outra poeta e a terceira, a conhecida crķtica de arte Aracy Amaral -, seu primeiro interesse foi a Literatura, tanto que aos 15 anos deu comeēo ą redaēćo de um Diįrio, o que continua até hoje. Matriculando-se mais tarde na Faculdade de Direito, sentiu em 1955 o impacto das artes visuais, após uma visita ą Bienal de Sćo Paulo: no ano seguinte estava cursando as aulas de Gravura de Livio Abramo no Museu de Arte Moderna. Em 1958 realizou sua primeira individual e, em vista do sucesso obtido, trancou a matrķcula no quarto ano de Direito e embarcou para o Chile, onde passaria seis meses, chegando a expor em Santiago. Do Chile ganhou os Estados Unidos da América, expondo na Unićo Panamericana em Washington D. C. e vivendo seis meses em Nova Iorque, com bolsa do Pratt Institute, e em outras cidades norte-americanas.
De volta ao Brasil em fins de 1959, tornou-se empregado da Galeria Bonino, no Rio de Janeiro, exercendo posteriormente, de novo em Sćo Paulo, funēões de gerente, relaēões pśblicas, publicitįrio, vendedor free-lancer de pinturas, contato da Grant Advertising e editor de house-organs - sem contudo abandonar de vez a gravura. A despeito de ganhar bem, nćo se sentia nada feliz:
- Durante sete anos em propaganda me senti prostituto. Me alugava, meu self-respect era baixo, me sentia sempre mal, era um niilismo total. Fazia os contatos, enchia a cara com os clientes e refletia: como é fįcil ganhar dinheiro fazendo bobagem, e tćo difķcil fazer dinheiro com coisas consistentes comigo. Nćo conseguia resolver isso, de modo algum.
Após uma separaēćo em 1964 e de grave acidente automobilķstico em 1965, Antonio Henrique decidiu finalmente trocar o emprego burguźs e rendoso pela incerteza de uma carreira nas artes. Jį em 1967 publicava um įlbum de xilogravuras coloridas, O Meu e o Seu, que expōs na Galeria Mirante das Artes de Sćo Paulo e na Galeria Santa Rosa do Rio de Janeiro, e de cuja venda viveu magramente durante algum tempo. Mudando-se em 1968 para um sķtio em Atibaia, ali permaneceria cerca de trźs anos, criando galinhas e pintando, uma vez que gradativamente a pintura substituķra a gravura como seu meio expressivo favorito. Foi nessa permanźncia em Atibaia que surgiu em sua pintura a temįtica da banana, cuja gźnese ele próprio nćo chega a precisar muito bem:
- Nćo posso explicar, sei que de repente eu estava pintando bananas. Quem sabe foi o falo do Rei da Vela, aquele canhćo, lembra-se? Ou entćo todo o clima de deboche que comecei a ver, o golpe militar, o AI-5, feira paulista de opinićo criticando tudo - entrei no palco empunhando uma banana gigante -, a agitaēćo polķtica. Tudo se confundia com meu estilo de vida delirante, Lķgia e eu éramos como Scott Fitzgerald e Zelda, dois desvairados. Disso nasceu a banana. Estįvamos todos muito por baixo no Brasil, marginalizados. Nada era sério. A questćo era levar a sério o nćo ser sério. A banana nasceu do medo. De uma coisa tenho consciźncia: com a banana e através dela fui aprendendo a linguagem da pintura. Esse aprendizado continua hoje.
De 1968 em diante Amaral comeēou também a ter suas pinturas premiadas em salões (como o de Campinas ou o Paranaense), e a partir de 1969 passou a viver exclusivamente de sua venda. Concorrendo em 1971 ao XX Salćo Nacional de Arte Moderna, nele obteve o prźmio de viagem ao estrangeiro, embarcando logo depois para os Estados Unidos da América. Sua intenēćo era passar um ano em Nova Iorque e o segundo e śltimo ano do prźmio na Europa, mas foi-se deixando ficar em Nova Iorque, como explicaria mais tarde numa entrevista a Harry Laus:
- Europa é bom para o cara conhecer o passado, a evoluēćo da coisa toda, e Nova Iorque para uma maior compreensćo de nosso século, do nosso hoje. Ver as coisas brasileiras de um outro āngulo também é da maior importāncia. Ajuda a dimensionar melhor o problema da arte e de nossa vida. Hį duas formas de se aproveitar esse prźmio: viajando bastante ou ficando num só lugar, trabalhando. Eu fiz a segunda. Parei e trabalhei muito. É claro que pude me instalar bem porque depois de seis meses comecei a vender. Os 500 dólares mensais do prźmio só dćo para o aluguel. Mas, apesar disso, o prźmio é uma boa chance para o artista viajar e ampliar seus horizontes. Ele conclui que em arte é necessįrio muito mais trabalho do que se vź por aqui, nesta "curtiēćo". Aqui, com uma exposiēćo ou duas, com trajetórias ąs vezes curtķssimas, logo o pintor vira gźnio e o sucesso é fįcil demais. As dificuldades lį fora sćo bem maiores, e os padrões bem mais exigentes. A informaēćo é tanta e as referźncias tćo diferentes das de cį que o cara corre o risco natural de fundir a cuca, desorientar-se, perder-se completamente. Ou de se achar.
A fase brasiliana, ou das bananas, iniciada como se viu por volta de 1968, prosseguiria ainda alguns anos, tendo suscitado a certos crķticos a comparaēćo com Tarsila do Amaral ou a filiaēćo aos procedimentos do Tropicalismo entćo em voga. Frederico de Morais, por exemplo, escreveu em comeēos de 1969:
- Isoladamente ou formando cachos, as bananas sćo monumentalizadas, agigantadas como que a lembrar aquelas figuras antropofįgicas de Tarsila do Amaral - plantadas no solo, como cactos ou bananeiras, sob um sol luminoso e numa paisagem vazia.
Roberto Pontual, por sua vez, aludiu a um "registro tropicalista, com a fusćo do humor e da ironia na localizaēćo de bananas e bananeiras infladas na forma e acentuadas na cor". O artista, contudo, pouco se importa com tais classificaēões, e explica:
- As minhas bananas sćo meus personagens. Trato-as com dignidade temįtica e pictórica. Nunca me preocupei se elas tźm uma ligaēćo, próxima ou remota, com o antropofagismo de Tarsila, ou com "Tropicįlia" de Gil e Veloso, como afirmam. Cheguei a elas por via racional, por uma necessidade de refutar os movimentos de vanguarda europeu e norte-americano, importados e copiados aqui. Essa arte cinética, por exemplo, essa arte de computadores, que nada tem a ver com a nossa realidade cultural. As bananas sćo, pois, uma saķda brasileira para a nossa arte melhor, e nćo aquela arte elitista, "uma linguagem cifrada para um grupo muito secreto de pessoas", como jį denunciou, com propriedade, o escritor americano Henry Miller.
Antonio Henrique Amaral também nćo vź em suas bananas a influźncia da Pop norte-americana:
- De "pop" as minhas bananas só tźm, mesmo, o monumental. De fato, minhas musįceas sćo sempre gigantes, como é no Brasil a própria Natureza...
Em 1975 o artista retornava ao Brasil após quatro anos de ausźncia, durante os quais efetuou individuais em Washington, México e Londres (1971), Genebra (1972), Bogotį (1973) e Nova Iorque (1974). Coincidiu, o retorno, com o esvaziamento da fase das bananas (que durara cerca de sete anos) e conseqüente inķcio de uma nova etapa em sua carreira: a partir de antigos desenhos de vįrias épocas, Amaral revitaliza sua pintura, dį-lhe uma nova dimensćo:
- Havia muita forma, muita explosćo, completamente diferentes dos quadros realistas e detalhados que eu fazia. Quando conscientizei isso, fiquei perturbado. Porque essa dicotomia? Decidi usar os desenhos, explodi-los nas telas, pintį-los. Consolidar uma linguagem.
Quando Antonio Henrique deu inķcio ą fase brasiliana, lembra Ferreira Gullar, "a pintura brasileira estava em outra. Pintar figuras sobre uma tela, naquela ocasićo, era quase como propor a volta do carro-de-boi": pois de 1975 em diante, a partir de Transformaēões, o pintor chega gradativa e "anacronicamente" ą pintura abstrata. Só que, como elucida Gullar, sua pintura abstrata "nćo tem o mesmo carįter da abstraēćo metafķsica ou racionalista ou surrealista do passado. Guarda estranhamente um carįter brasileiro, latino-americano, selvagem e dramįtico, como os componentes de nossa realidade". Daķ por diante, Antonio Henrique nćo mais se deteria na exploraēćo de um śnico tema, preferindo dar vazas ao seu próprio impulso criador:
- As etapas tźm me mostrado que estou evoluindo como artista e pessoa, com todos os trancos e barrancos da nossa profissćo. Senti que estou dentro de um processo de nćo me reter em nenhuma etapa, por sucesso comercial ou nćo. Nćo sou prisioneiro do sucesso de etapas, consagraēćo. Nćo tenho mais medo que nćo me aceitem com novas cores, formas. A pessoa nćo pode se deter. Sei que estou em perigo, estou sempre a perigo. Certas passagens sćo penosas, mas é preciso enfrentar. Sempre fico surpreso quando termino um novo quadro, mas faz parte do meu crescimento como artista e ser humano, a seguranēa da inseguranēa, o convķvio com minhas fragilidades e medos.
Antonio Henrique Amaral tem realizado individuais dentro e fora do Brasil em cidades como Sćo Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre, e ainda Birmingham e Nashville nos Estados Unidos (1975), El Salvador e México (1976), Nova Iorque (1978, 1979), novamente México (1979), Miami (1980) e Ottawa (1984); também participou de coletivas da importāncia da Bienal de Sćo Paulo (de 1959 a 1967), do Salćo Nacional de Arte Moderna (entre 1960 e 1971 - certificado de isenēćo de jśri em 1968, viagem ao exterior em 1971), do Salćo de Outono (Paris, 1971), da mostra Visćo da Terra, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (1977), da Bienal Latino-americana de Sćo Paulo (1978), e das panorāmicas Pinturas Latino-americana no Queen Cultural Center, de Nova Iorque (1973), Arte Atual Ibero-americana (Madri, 1977), Artes Visuais e Identidade na América Latina (México, 1981), III Salćo Brasileiro de Arte da Fundaēćo Mokiti Okada (Sćo Paulo, 1982 - prźmio de viagem ao Japćo), Tradiēćo e Ruptura (Sćo Paulo, 1984), etc. É de sua autoria o grande painel instalado, em 1989, no Salćo de Atos do Palįcio dos Bandeirantes em Sćo Paulo.
Reconhecido dentro e fora do Brasil como um dos mais importantes pintores contemporāneos da América Latina, Antonio Henrique Amaral atingiu o amadurecimento total, como dį a entender o seguinte trecho de um seu depoimento:
- Antigamente, só comeēava um quadro quando ele estava totalmente realizado em minha cabeēa. Deixava pouco ao acaso, executava-o de modo imperativo, debaixo de um plano tradicionalmente estabelecido. Aos poucos, fui mudando, ą medida que eu próprio me transformava, me liberava. Hoje em dia, confiro ao quadro possibilidades de se autodeterminar. Claro que devemos intervir e tentar mudar os rumos nćo só do nosso trabalho, como da realidade que nos cerca. Agora, penetro com menos angśstia dentro do espaēo dominado pela tela em branco. Tanto posso chegar com um dos meus desenhozinhos como ponto de partida, corno entrar virgem nesse espaēo e entćo acionar o processo.
Significativamente, partiu da irmć do artista - a jį mencionada crķtica de arte Aracy Amaral -, em 1980, uma das anįlises mais pertinentes da arte de Antonio Henrique Amaral durante a década de 1970, anįlise da qual extraķmos esse elucidativo trecho:
- Pode-se registrar a permanente presenēa, em suas telas dos dez śltimos anos, de elementos de duas procedźncias bem claras: os de ordem tecnológica e os de natureza orgānica. Entre os primeiros colocarķamos aqueles de fabricaēćo industrial, projetados portanto, como diseńo, como garfos, pratos, cordas, barras de ferro, elementos de ateliź (como escadas, cadeiras, etc.). Os outros seriam os elementos tirados diretamente da natureza, como formas vegetais, as bananas, as vķsceras, assim como as formas pontiagudas ou explodidas dos desenhos "mentais", as referźncias ao corpo humano que insistentemente ele tem tentado introduzir ou incorporar ąs suas telas. Mas a monumentalidade, na abordagem através da imagem, dos mecanismos mentais, impōs-se em sua pintura, buscando afiar a contundźncia dessa imagem ą forēa de sua expressćo pictórica. Do ponto de vista cromįtico, um calor novo parece articular com maior eloqüźncia os elementos de suas composiēões, que depois de perķodo de afinidades visķveis - mesmo que nćo previstos pelo artista - com um Léger da segunda década, com um Roberto Matta admirado, parecem agora assumir um carįter próprio, singular, em manipulaēćo / justaposiēćo que conseguem, nestes seus śltimos trabalhos, uma fusćo de diversos elementos " inventados" e/ou re-elaborados pelo artista: fragmentos de polpa esmagada de bananas que trazem implķcita uma conotaēćo com detalhes da epiderme feminina, pelo tratamento e colorido sensual, assim como de elementos de "explosões" da fase reflexivo-mķstica de hį dois anos atrįs em Nova Iorque, de barras de ferro a nos remeter ą série dos "ginįsios", que expressaram com violźncia toda a destruiēćo fķsica do homem através de mįquinas por ele mesmo geradas para seu aprimoramento estético, coexistindo poderosamente com "closes" de telas de bambuzais, em soma-sķntese de diversos momentos de sua produēćo.

Brasiliana 9, óleo s/ madeira, 1969;
1,04 X 1,22, Museu de Arte Contemporânea da USP.

BR-1, óleo s/ tela, 1970;
1,70 X 1,28, Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Criação, expansão, desenvolvimento, óleo e acrílica, 1989;
4,50 X 16,00, Palácio Bandeirantes, SP.

AMOEDO, Rodolfo (1857-1941). Nascido em Salvador (BA) e falecido no Rio de Janeiro, para onde veio em 1868 em companhia dos pais. Aos 16 anos, após ter sido ajudante do pintor-letrista Albino Gonçalves, rnatriculou-se no Liceu de Artes e Ofícios, onde foi aluno de Costa Miranda, Sousa Lobo e Vitor Meireles. Em 1874 passou a estudar na Academia Imperial de Belas Artes, como aluno de Meireles, e ainda de Agostinho José da Mota, Zeferino da Costa e Chaves Pinheiro, tendo sido fortemente influenciado por Zeferino e sobretudo por Agostinho José da Mota, a quem até o fim da vida continuou tratando respeitosamente de "Seu Mota".
Aluno apenas discreto, venceu sem embargo o concurso de premiação de 1878, impondo-se a Firmino Monteiro e ao favorito Henrique Bernardelli pelo voto de Minerva do diretor da Academia, Antonio Nicolau Tolentino. A pintura que lhe valeu a viagem à Europa foi O Sacrifício de Abel. Em maio de 1879 seguiu para a França, fixando-se em Paris. Não logrando admissão na primeira tentativa de ingresso na École des Beaux Arts, freqüentou a Academia Julian, a conselho de Almeida Júnior. Em 1880 sua segunda tentativa viu-se coroada de sucesso:
- Após submeter-me a dois concursos de admissão, por isso que eu fora do Brasil sem ter completado o curso, ainda longe de terminá-lo, logrei matricular-me na Academia de Belas Artes de Paris. Aí fiz todo o curso artístico, repetindo o que já tinha feito no Brasil, tendo tido como principais mestres Alexandre Cabanel e Puvis de Chavannes.
Esses dois mestres marcaram-no estilisticamente: Cabanel, "mão habituada à prestidigitação das formas, alma de Prix de Rome, olho de fotógrafo" (Octave Mirbeau), era de uma total intolerância para com a arte moderna; já Pierre Puvis de Chavannes foi artista de muito maior fôlego e chegou a influenciar Gauguin e Seurat. Amoedo intermesclou o estilo de ambos para plasmar o seu próprio, embora Puvis o marcasse mais fundamente, como se pode verificar por Jesus em Cafarnaum ou A Narração de Filetas, sobre a qual o próprio Puvis assim se teria expressado:
- C'est merveilleuse, cette peinture!
Tanto Cabanel quanto Puvis eram porém coloristas discretos, e isso explica, ao menos em parte, o papel secundário que desempenha a cor na pintura de Amoedo.
Curiosamente, entre 1880 e 1887, ainda estudante em Paris, Amoedo executou a parte mais conhecida e apreciada de toda a sua produção, a qual inclui ainda, além das obras acima mencionadas, O Último Tamoio, Marabá e A Partida de Jacó.
Em dezembro de 1887 Amoedo regressou ao Brasil, e em fevereiro do ano seguinte foi nomeado professor honorário de Pintura da Academia Imperial. Mostrando os óleos executados em Paris, pouco depois, mereceu grandes elogios da crítica e dos colegas, embora Zeferino da Costa neles reparasse " falta de individualidade".
Após a Narração de Filetas, infelizmente, a obra de Amoedo tornou-se mais e mais convencional e menos emotiva, para o que pode ter contribuído, em grande parte, a preocupação que sempre devotou aos problemas da cozinha pictórica. Assim, João Ribeiro, comentando-lhe em 1897 os trabalhos, afirmou:
- O Sr. Rodolfo Amoedo possui firmeza e correção de desenho e não poucas vezes grande felicidade de colorido. Mas todas essas boas qualidades são nele às vezes sufocadas por uma excessiva minuciosidade, quer nos desenhos das linhas, quer na sua tendência analítica, de fazer ensaios e experimentações de colorido. Deixa muitas vezes de ser sincero, para ser teorista, muito preocupado de químicas e alquímicas.
Essa preocupação com a parte física da pintura, raríssima entre os artistas nacionais, Amoedo levava a extremos. Assim, a seus alunos aconselhava a adoção de uma palheta de 15 cores, dispostas organizadamente: na extremidade esquerda, o preto; o branco ao centro, o verde esmeralda na extremidade direita... A tela tinha de ser preparada à base de cola e branco de zinco; o verniz de Vibert, puro ou diluído em essência de petróleo, seria utilizado como diluente na pintura a óleo; só excepcionalmente admitia o uso de branco em aquarelas. Mesmo assim, era suficientemente inteligente para rir de si mesmo, quando o processo tentado desandava. A Agripino Grieco, relatando o fracasso de um novo método de pintura à base de ovo, comentou:
- A coisa acabou em ruim fritada.
Como professor, primeiro na Academia, depois na Escola Nacional de Belas Artes (1888-90; 1891-1906 e 1918-34) e ainda na Escola Politécnica (1 889), formou numerosos alunos, entre eles Batista da Costa, Visconti, Rafael Frederico, os dois Chambellands e os dois Timóteos, Lucílio de Albuquerque, Latour e mesmo Portinari. Em fevereiro de 1893 tornou-se vice-diretor da Escola, que dirigiu interinamente em várias ocasiões. Esteve quatro vezes na Europa, excluído o tempo do pensionato: em 1890-91 (quando em Lisboa se casou com Adelaide Moraes), 1906-08, 1911-12 e 1913, sempre "muito ocupado, entre uma encomenda e outra, nenhuma a passeio. Não conheço, assim, a parte divertida das coisas". Conquistou, ao longo da carreira, importantes medalhas e prêmios, inclusive em Chicago, em 1893, e no Rio de Janeiro em 1908 e 1917.
Das pinturas decorativas que fez, vale destacar os painéis que pintou a convite de Rio Branco no Palácio Itamaraty, por ocasião da visita do Presidente Roosevelt; três painéis, Justiça, Paz e Lei para o teto do salão nobre do Supremo Tribunal Federal do Rio de Janeiro; A Fundação do Rio de Janeiro, na sala de sessões do antigo Conselho Municipal da mesma cidade, em colaboração com Roberto Rowley Mendes, em 1925; e mais os dois pequeninos painéis Reflexão e Memória da Biblioteca Nacional. Trabalhou ainda para o Museu do Ipiranga, em São Paulo, e fez os panos de cena dos teatros José de Alencar, em Fortaleza, e Carlos Gomes, em Natal:
- Nunca me balancei a viajar para vender, assim como nunca pedi ou solicitei, através de amigos, encomendas para fazer. Se algum já tomou essa iniciativa, fê-lo por conta própria, sem o conhecimento meu, asseguro-lhe. Ninguém poderá dizer que eu lhe fosse pedir trabalho...
Amoedo criou fama de homem ferino, de temperamento irônico e mesmo mau. Sua inimizade com Parreiras tornou-se notória. E não guardava as conveniências, quando se tratava de atacar colegas. Assim, criticou abertamente Parreiras ("Não sei se ele sabe pintar. Dizem que pinta. Na Escola esteve um ano, apenas, vindo de profissão radicalmente oposta, o comércio"), Georgina de Albuquerque ("Não sabe planos. Tudo na sua pintura é chato, sem relevo"), Pedro Bruno ("Não sabe prumo. Não conhece a lei de Newton") e muitos mais. Detestava naturezas-mortas ("Quando quero comprar frutas, vou à quitanda da esquina, ou, para maiores compras, à Praça do Mercado"). Era natural que fosse antipatizado, tanto mais que levava vida reclusa, defendendo sua privacidade de tudo e de todos. Seu ressentimento era ainda maior quando lhe comparavam a produção contemporânea à dos tempos parisienses, com evidente desvantagem para os trabalhos recentes. Pouco emotivo, chegou a declarar a Angione Costa, que lhe perguntara sobre quais suas maiores emoções na carreira:
- Não as tenho. Indo cedo para a Europa, passei nove anos em Paris. Trabalhei, estudei, completei o curso. Pintadas algumas telas, voltei. Aqui tenho lutado, resistido ...
Amoedo faleceu no Hospital Gaffré-Guinie, do Rio de Janeiro, a 31 de maio de 1941, deixando viúva, mas sem descendentes. Quando de sua morte, numerosas obras de sua autoria, em sua maior parte estudos, manchas e desenhos, algumas de altíssima qualidade, foram doadas ao Museu Nacional de Belas Artes, em troca de uma pensão vitalícia concedida pelo governo à viúva. Esse Museu, que em 1957 consagrou ao artista importante retrospectiva, conserva boa parte de sua produção - nada menos de 433 obras, de todas as épocas, técnicas e gêneros.
Romântico em Marabá ou em Desdêmona, realista ou naturalista em Último Tamoio, herdeiro do academicismo francês à la Cabanel em A Partida de Jacó ou em Jesus em Cafarnaum, aproximando-se do Simbolismo em A Narração de Filetas, Amoedo era muito mais sensível e pessoal nas aquarelas, por exemplo, quando se despejava de sua crosta acadêmica e se voltava para uma expressão mais direta e sincera. Quase toda a sua obra versa sobre a figura humana, sendo de realçar a importância que nela assumem os nus femininos. Também executou retratos, cenas de gênero, paisagens, interiores e decorações.

Jesus Cristo em Carnafaum, pastel e carvão, s/ data;
0,66 X 0,50, Museu Nacional de Belas Artes, RJ.

Moça de vermelho, aquarela,
0,32 X 0,24, Museu Nacional de Belas Artes, RJ.

Homem lendo jornal, guache,
0,32 X 0,75, Museu Nacional de Belas Artes, RJ.

Moça, aquarela,
0,37 X 0,25, Museu Nacional de Belas Artes, RJ

ANDERSEN, Alfred (1860-1935). Nascido em Christianssand, Noruega, e falecido em Curitiba. Pertencia à mesma geração do escritor Knut Hamsun (1859-1952), cujo retrato executou, e do pintor Edvard Munch (1863-1944). Aos 17 anos matricula-se na Academia de Belas Artes de Cristiânia (a Oslo atual), como aluno de Krohg, vencendo as resistências do pai que queria vê-lo engenheiro naval. Entre 1879 e 1883, com bolsa de estudos, freqüenta a Real Academia de Belas Artes de Copenhague, da qual seria mais tarde professor de Desenho.
Retornando da Dinamarca em 1883, no ano seguinte realiza sua primeira individual, em Cristiânia. De então até 1890 continua expondo regularmente, realizando também pequenas viagens ao estrangeiro, sobretudo à França. Mas em começos da década de 1890, obedecendo, quem sabe, à mesma espécie de obsessão que exatamente na mesma época levaria Paul Gauguin ao Taiti, decide empreender longa viagem aos Trópicos, a bordo de um veleiro. Vai ao México, toca em Barbados e chega à costa setentrional brasileira, executando inclusive, em 1892, uma bonita Vista de Cabedelo. Em 1893, de novo na Europa, a caminho de casa, sabe que sua cidadezinha fora praticamente destruída por um incêndio. Decide então voltar ao Novo Mundo: embarcando com destino a Buenos Aires num veleiro que transportava ferro e carvão da Inglaterra, atinge Paranaguá, para reparos no barco. Simpatizando com a terra, vai-se deixando ficar no Brasil, primeiro em Paranaguá, e após 1902, em Curitiba. Como diria muitos anos mais tarde numa entrevista, "tive a agradável surpresa de ser logo procurado (1902) por particulares, para os aceitar como alunos. Fundei então a minha escola de desenho e pintura, que ainda funciona. Mais tarde fui instituído professor de Desenho da Escola Alemã e do Colégio Paranaense do Dr. Marins Camargo, sendo em 1909 convidado pela diretoria da Escola de Artes e Indústrias, então de D. Maria Aguiar de Lima, para assumir a direção das aulas noturnas que a mesma escola criara. A criação de um curso noturno de Desenho foi excelentemente recebida pelo público e em breve se tornou preciso reduzir a matrícula aos profissionais de ofício e indústria, excluindo-se os diletantes. Assim se conservou um total de 60 alunos, todos operários, entre 14 e 30 anos".
Esse aspecto da atuação de Andersen como incentivador de vocações de operários e como pioneiro da boa forma industrial ainda não foi suficientemente enfatizado. Na verdade, já em 1917 o pintor escandinavo dizia, na mesma entrevista:
- Pois é isto: o ensino do Desenho, desenvolvendo o sentimento estético e, por conseguinte, o bom gosto, ensina a ver. Sabemos que a Alemanha era há 40 anos um Estado agricultor e pelo Desenho se fez um Estado industrial. Sabe-se também que o seu début na Exposição Industrial de Chicago foi um fiasco. Barato e ruim, assim definiram a Alemanha industrial naquele certame. Ainda nesse tempo pouco remoto a Inglaterra e a França a sobrepujaram, porque ao ensino do Desenho, nestes dois países, se tinha ligado um interesse especial. A Alemanha compreendeu: estudou os métodos do ensino do Desenho na Inglaterra, onde cada escola empregava um método de conformidade com o entendimento dos seus ilustres professores. Reconheceu até que grau se tinha elevado nas escolas inglesas o ensino do Desenho e fez também as suas pesquisas na França, no Japão e na América do Norte, apercebendo-se então da grandeza sem par desse problema que a sua ânsia de progresso não tinha ainda resolvido e orientado no sentido das artes aplicadas. Preparou pois a Alemanha o seu grandioso plano do ensino do Desenho, tendo por objetivo uma educação em harmonia com o indivíduo. Daí nasceram a sua arte e as suas indústrias modernas - quer dizer - o seu imenso progresso nesses dois ramos da conquista humana.
Andersen chega a antever "um curso de Desenho para operários", que "traria a felicidade ao Paraná, porque faria a grandeza das suas indústrias", e conclui:
- Quando chegarmos a ter pelo menos uma simples Escola de Desenho para Operários, sem falar numa Escola de Artes Aplicadas, naturalmente mais dispendiosa, teremos atingido a primeira etapa verdadeiramente real do nosso progresso.
Pouco após se radicar em Curitiba, Andersen ali realizou uma primeira individual de 18 óleos, sendo quatro retratos, e os restantes, paisagens e figuras. O crítico do Diário da Tarde, em artigo de 20 de março de 1907, observou com acuidade:
- Na observação da nossa natureza, o ilustre artista norueguês mostra um desenvolvimento notável, mais acentuada energia de colorido, em contraposição dos saudosos tons nevoentos que lhe eram costumados e freqüentes, auros decerto da sua visão escandinava; da mesma forma, a quente coloração de carnes, sistematicamente rubra, que, parece, trouxera da arte flamenga se lhe tem modificado, o que naturalmente se havia de dar em um artista de tão séria e meticulosa faculdade de observação,
Na mesma exposição mostravam quadros quatro alunos de Andersen, Lange de Morretes entre eles. A atividade didática de Andersen, aliás, seria tão fecunda, que o crítico Carlos Rubens na monografia que lhe consagrou, chega a chamá-lo de Pai da Pintura Paranaense, reconhecendo seu papel de elemento aglutinador de tendências e características que, se já antes se tinham manifestado esporadicamente, só agora achavam quem as concatenasse, inclusive do ponto de vista técnico. Várias outras exposições realizaria o pintor norueguês, não só em Curitiba (1914, 1920, 1923 e 1930) como no Rio de Janeiro (1918) e em São Paulo (1921), todas com grande sucesso. Também participou do Salão de Belas Artes, conquistando menção honrosa no de 1916 e medalha de bronze no de 1933.
Apesar de tais vitórias, Andersen continuou levando existência difícil no Brasil, dado o provincianismo cultural então vigente. Tendo adotado a cidadania brasileira e no Brasil constituído família, jamais pensou em retornar à pátria, nem mesmo quando, em 1927, o governo da Noruega ofereceu-lhe a direção de uma Escola de Belas Artes. Após um ano de permanência na Escandinávia, da qual assim se despedia, Andersen regressou ao Paraná, trazendo na bagagem um punhado de telas da mocidade, inclusive o já mencionado Retrato de Knut Hamsum.
Cidadão de Curitiba em 1931, Andersen faleceu a 9 de agosto de 1935, em sua residência-ateliê curitibana, mais tarde transformada na Casa de Alfredo Andersen.
O artista praticou todos os gêneros, destacando-se como paisagista, intérprete sensível e pessoal da natureza paranaense, e como pintor de figuras. Em sua mocidade, tocado pelo Simbolismo, que lhe motivaria algumas de suas melhores composições, Andersen pouco a pouco deixou sua orientação original, trocando-a por agudo senso de observação e por acentuado amor à realidade. Espontâneo e vigoroso no pincelar, colorista sensível, sua obra é um caso único de aclimatação cultural de um artista escandinavo em terra brasileira.

ATAÍDE, Manuel da Costa (1762-1830). Nascido e falecido em Mariana (MG). Filho do Alferes Luís da Costa Ataíde, português de Trás-os-Montes que chegaria a Capitão, e da mulher deste, Maria Barbosa de Abreu, natural do Rio de Janeiro, dão-no alguns estudiosos como pardo; no entanto, o próprio Ataíde, respondendo ao recenseamento de 1804, diz-se "branco, solteiro, vivendo da Arte da Pintura", repetindo essa afirmativa em 1822, como testamenteiro do misterioso Irmão Lourenço, fundador da Capela do Caraça, quando se declara "branco, solteiro, morador da cidade de Mariana".
Como praticamente todos os artistas brasileiros da fase colonial, Ataíde possui biografia ainda obscura, e, a despeito da existência de bom número de documentos de arquivo referentes às suas atividades, é impossível reconstituir-lhe, através deles, a vida. Ignora-se inclusive quais foram seus mestres, aventando Ivo Porto de Menezes uma série de hipóteses:
- Teria assistido aos trabalhos de Antônio Coelho Lamas na citada Capela do Menino Deus? Teria visto os trabalhos de João de Carvalhaes em Ouro Preto, em São Francisco de Assis, no Oratório do Palácio, na Intendência, na Matriz do Pilar, na Matriz de Cachoeira do Campo ou no Palácio de veraneio dos governadores? Por certo esteve em Santa Rita Durão, onde se deixaria influenciar pela pintura do teto da Igreja do Rosário daquela vila.
Também não se sabe qual o parentesco existente entre Ataíde e outros artistas de igual sobrenome ativos em Minas Gerais pela mesma época que ele, como o Tenente Domingos da Costa Ataíde ou como Eusébio da Costa Ataíde. Ponto igualmente obscuro na biografia do artista é seu relacionamento com Francisco Xavier Carneiro, com quem trabalhou amiúde, e mesmo sua amizade com o Aleijadinho, Antônio Francisco Lisboa, de vez que trabalharam juntos em São Francisco de Assis e no Carmo, em Ouro Preto, no Santuário de Congonhas do Campo e ainda em outras ocasiões. Conhece-se, pelo que restou nos arquivos, uma série de outros dados concretos. Assim, é fato comprovado ter seguido a mesma carreira das armas paterna, ingressando na Milícia como cabo de esquadra e chegando aos 35 anos a sargento de ordenança do Distrito de Bacalhau, Freguesia de Piranga (Mariana), para apenas dois anos mais tarde receber a patente de alferes de ordenança do Distrito de Mombaça, também em Mariana, "sem vencer soldo algum mas gozando de todas as honras, graças e privilégios que em razão dela" lhe tocavam. Em 1809 aparece como alferes da Companhia de Ordenanças do Distrito de Soledade, em Vila Rica.
Outro documento revela-nos que a 29 de abril de 1818 Ataíde recebeu do Senado da Câmara de Mariana atestado de ser "Professor das Artes de Arquitetura e Pintura, tendo dado bastantes provas de que não só é capaz de pôr em praxe o risco das cartas geográficas, dos animais, plantas, aves, e outros produtos da Natureza, como o explicar e instruir aos que se quiserem aproveitar". A 18 de maio do mesmo ano, o artista, então com 56 anos, requeria ao Rei a criação de uma aula de desenho, arquitetura civil e militar e pintura em Mariana, requerimento esse que, embora devidamente encaminhado, não obteve deferimento, talvez porque, apenas dois anos antes, Dom João VI instituíra o ensino artístico oficial no Rio de Janeiro, enfatizando as Belas Artes, mais que as tradicionais Artes do Desenho herdadas dos séculos anteriores.
Conhecido é também o teor do Testamento firmado por Ataide a 8 de janeiro de 1826, pelo qual ficamos sabendo que o artista, apesar de ter sempre vivido no "Estado de solteiro", teve, " por fragilidade humana", quatro filhos naturais – Francisco de Assis, Maria do Carmo, Francisca Rosa e Ana Umbelina. Escreve a respeito Lélia Coelho Frota:
- Seriam estes os modelos que, na infância, teriam posado, como deixa entrever o exame da sua pintura naturalista, para os anjos dos seus forros e painéis. Para Maria do Carmo Raimunda da Silva, provavelmente a madona mulata do forro de São Francisco de Assis de Ouro Preto e mãe de seus quatro filhos, ele lega o " remanescente da sua parte". Deixa forros e libertos quatro escravos, Mateus e Lucas, ainda moleques, e dois de avançada idade, Pedro e Maria, pedindo a seu testamenteiro que os trate com bondade.
Ataíde, que pertenceu a numerosas Irmandades, deve também ter-se interessado de modo especial pela música, como o comprova uma relação dos seus bens, constante da ação que em 1832 uma das herdeiras, Francisca Rosa de Jesus, moveu contra o herdeiro-inventariante Francisco de Assis Ataíde: nela aparecem, com efeito, além de um pianoforte, duas rabecas (uma do tipo violeta), uma "Mucitinha de Música" e uma "folha de fagote". Esse interesse do pintor pela música não deve aliás causar muita surpresa, sabido como em Minas Gerais, em fins do Setecentos, foi a música tão cultivada e apreciada.

São Simão Stock com Nossa Senhora do Carmo,
Museu da Inconfidência, Ouro Preto, MG.

Flagelação de Cristo, óleo s/ tela, s/ data;
1,75 X 1,05, Palácio Bandeirantes, SP.

Pintura na Igreja de Santo Antonio, detalhe, Santa Bárbara, MG.

A Ceia (detalhe) Seminário da Caraça, MG

Teto na Igreja de Nossa Senhora do Carmo, detalhe, Ouro Preto, MG.

B

BANDEIRA, Antônio (1922-67). Nascido em Fortaleza (CE) e falecido em Paris. Toda a sua carreira iria desenvolver-se em pouco mais de 20 anos, e em três cidades: Fortaleza, em que nasceu, Rio de Janeiro, onde por muitos anos morou e produziu, e Paris, onde estudou e amadureceu, e onde veio a precocemente falecer, vítima de uma choque pós-operatório. O próprio artista assim explicou o que lhe significavam cada uma de tais cidades:
- Da Rua Santa Isabel, em Fortaleza, guardei o vigor do meu país, gosto e cheiro das frutas da infância e ciranda no areal. De Copacabana, sinto um mundo de praias, de cores e de liberdade. Saint-Germain-des-Près é aquela aldeia que você conhece bem e que é também uma grande cidade. Sabe, o melhor do Quartier é que todo mundo se diz bom-dia. Acho que na vida devia ser assim - todo mundo se cumprimentando.
Sua vocação surgiu cedo, ainda no colégio marista de Fortaleza e com as aulas de Dona Mundica, sua primeira mestra de desenho. Adolescente, foi um dos fundadores, em 1940, do Centro Cultural, logo depois Sociedade Cearense de Belas Artes, ao lado de Inimá, Aldemir Martins e outros artistas, com os quais expôs, em 1945, no Instituto dos Arquitetos no Rio de Janeiro. Contemplado, nessa coletiva, com bolsa de estudos em França, em 1946 achava-se em Paris, matriculado na Escola Superior de Belas Artes e na Academia da Grande Chaumière. Pouco adaptável ao estudo acadêmico, em breve rompia com ambas as instituições, para trabalhar livremente. Conheceu, então, artistas como Bryen, e o célebre Wols, hoje considerado um dos corifeus da chamada pintura informal. Com Bryen e Wols teria chegado a formar um grupo de vida efêmera, a que foi dado o nome de Banbryols, composto por uma sílaba de cada sobrenome dos três integrantes. O grupo após uma única exposição, em 1949, dissolveu-se, pelo retorno de Bandeira ao Brasil em 1950 e pela morte de Wols, um ano depois.
A partir da primeira temporada em Paris, Bandeira alternará toda a sua existência entre o Brasil e a França. De 1950 a 1954 permanece no Brasil, retornando a Paris nesse último ano, com o prêmio Fiat, recebido na II Bienal de São Paulo, em 1953; novamente vive no Brasil de 1959 a 1964, com permanência no Rio de Janeiro e breves escapadas à Bahia (mostra inaugural do Museu de Arte Moderna de Salvador, em 1960), e a Fortaleza (mostra inaugural do Museu de Arte da Universidade do Ceará, 1961). Mais uma vez regressaria ao Brasil, para uma exposição que teria lugar no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, quando em conseqüência de um choque, após uma simples extração das amídalas, foi surpreendido pela morte. A exposição no MAM carioca teve lugar, então sem a presença do artista com as numerosas obras que guarneciam seu ateliê parisiense.
A produção de Bandeira estendeu-se por quase 25 anos, entre começos da década de 1940 e o ano do falecimento - 1967. Pode ser distribuída por dois grandes grupos, de importância e extensão desiguais: fase figurativista, que vai dos primórdios aos dois primeiros anos da permanência em Paris - cerca de 1940 a 1947 -, e fase não-figurativista, de então até o fim da vida. Em 1947-48 é lícito falar-se numa fase transicional, durante a qual o artista afasta-se gradativamente da referência ao mundo objetivo, adotando uma linguagem mais e mais abstrata.
Os trabalhos da fase figurativista são realizados em Fortaleza, no Rio de Janeiro e em Paris sob o influxo do Expressionismo e, com menor intensidade, do Surrealismo. São figuras, paisagens e naturezas-mortas que apenas preludiam realizações futuras. A técnica é ainda insegura, o desenho cru; repercutem, aqui e ali, influências meramente livrescas, portanto epidérmicas. Seria em contato com Wols que a arte de Antônio Bandeira tomaria seu rumo definitivo e amadureceria, cumprindo então o artista papel de pioneiro entre os introdutores do não-figurativismo no Brasil.
Na análise da obra não-figurativa de Bandeira, é possível distinguir diversas etapas. De inicio, há uma fase de influência do Informalismo de Wols, que se estende de fins da década de 1940 a começos da década seguinte: Bandeira descobre as possibilidades da pintura abstrata, à qual se entrega com entusiasmo. Segue-se o período das cidades e das favelas observadas à noite, de longe, iluminadas, algo reminiscentes de certas obras de Vieira da Silva, e resolvidas em horizontais entremeadas de manchas de cor e pequeninos pontos fosforescentes, que impregnam o espaço pictórico de um ritmo frenético, ao mesmo tempo em que lhe emprestam uma aparência feérica. Nesse momento, que vai de meados da década de 1950 a cerca de 1959, dá-se o pleno amadurecimento do artista, que aprofunda a sua maneira e atinge uma tipicidade. Entre fins da década de 1950 e 1964, surgem, na pintura de Bandeira, formas de aspecto vegetal, resolvidas em vibrantes tonalidades de verde, azul, vermelho; ocorrem ainda experimentações - nem sempre bem sucedidas -, que chegam até à adição, na lisa superfície da tela, de contas ou sementes coladas. Em 1964 ocorre o que poderia perfeitamente corresponder a uma nova transição: prevalecem os cinzas e os terras, em cavas evocações minerais. A fase final, interrompida pela morte, é de novo marcada pelo otimismo e pela alegria, com a retomada de temas brasileiros - favelas, frutas, o mar.
A pintura de Antônio Bandeira será sempre caracterizada pela sensibilidade, que se revela acima de tudo na cor. A expressão, tão marcante nos quadros da fase inicial, figurativa, atenua-se gradativamente, cedendo vez à sensibilidade. Filho de um ferreiro, ele mesmo um grandalhão de aspecto rude, Bandeira assim comparou, de certa feita, seu ofício ao paterno:
- Da fundição do meu pai aprendi misturas que nem suspeitava: vendo derreter ferro ou bronze, aprendi muito. Hoje misturo emoções em cadinhos iguais aos dele, de ferro, de bronze, de corpo, de alma, de vento, de paisagem, de objeto, e dessa maneira fabrico peças para o meu trabalho.
Carlos Drummond de Andrade, com a intuição dos grandes poetas, chamou-o, num poema, de "moderador de névoas, formas raras, espumas, unindo a fantasia a uma restrita beleza", sendo essa, possivelmente, a melhor definição de sua pintura.
A grande cidade iluminada, óleo s/ tela, 1953;
0,72 X 0,91, Museu Nacional de Belas Artes, RJ.

A cidade, detalhe, óleo s/ tela, 1957;
1,26 X 2,44, Museus Castro Maya.

Flora noturna, óleo s/ tela, 1959;
1,62 X 0,97, Museu de Arte Contemporânea da USP.

La grande ville, óleo s/ tela, s/ data;
1,60 X 2,92, Pinacoteca do Estado de São Paulo.

BARROS, Geraldo de (1923-1998). Nascido em Xavantes (SP) e falecido em São Paulo. Realizou seus estudos de 1945 a 1947 com Clóvis Graciano, Colette Pujol e Takaoka, obtendo já nesse último ano menção honrosa na Divisão Moderna do Salão Nacional de Belas Artes. Também em 1947 funda, juntamente com Ataíde de Barros, Antonio Carelli, Takaoka e outros o Grupo dos 15. Passando a se dedicar logo em seguida à gravura e à fotografia, organiza em 1949 o Laboratório de Fotografia do Museu de Arte de São Paulo, onde no ano seguinte exporia suas fotoformas, fotografias experimentais abstratas. Com bolsa do Governo Francês viaja em 1951 para Paris, estudando litografia na École des Beaux Arts e gravura em metal no ateliê de Hayter. Espichando a viagem até Ulm, na Hochschule für Gestaltung estuda artes gráficas com Otl Aicher e trava conhecimento com Max Bill. No regresso ao Brasil, em 1952, torna-se um dos fundadores do Grupo Ruptura, cujo manifesto assina e de cuja exposição participa. No ano seguinte obtém primeiro prêmio no concurso de cartazes do IV Centenário de São Paulo e, ao lado de Alexandre Wollner, os primeiros prêmios nos concursos de cartazes do Festival Internacional de Cinema e da Revoada Internacional. Na Bienal de Veneza de 1956 recebe prêmio de aquisição. No mesmo ano participa no MAM-SP da I Exposição Nacional de Arte Concreta, e em 1960 estaria presente na mostra Arte Concreta - 50 Anos de Desenvolvimento realizada em Zurique, na Suíça. Foi também um dos fundadores, em 1966, do Grupo Rex, que iniciou em São Paulo as exposições de rua.
Criador em 1954 da cooperativa Unilabor, destinada à produção de móveis, em 1959 da Forminform (de criação de marcas e logotipos) e em 1964 da Hobjeto Móveis, suas atividades de bem-sucedido empresário e designer desviaram-no por longos anos das puramente artísticas, às quais contudo retornou em 1965, produzindo então trabalhos figurativos dentro de uma linguagem Pop. Em 1977 o Museu de Arte de São Paulo realizou exposição de suas pinturas realizadas entre 1964 e 1976, ocasião em que Radha Abramo enfatizou como preocupação básica do artista a massa anônima, acrescentando: "Todo o seu trabalho é multiplicável e encerra evidentemente uma filosofia e um comprometimento social. A criação do cartaz, da foto e do design envolve o objetivo da seriação, distribuição e consumo em larga escala".
O artista realizou a primeira individual em 1952, no MAM-SP; tornaria a expor outras vezes em São Paulo, bem como no Rio de Janeiro e em Zurique, Campinas e Lausanne, destacando-se a exposição de 1990 no MAM-RJ (Jogo de Dados) e a retrospectiva de 1993 na Casa das Rosas, em São Paulo; também participou de importantes coletivas, como - fora as já mencionadas - as I, II, III, IX, XIV, XV e XXI Bienais de São Paulo, o Salão Paulista de Arte Moderna (1956), Arte Moderno en Brasil ( Buenos Aires, Santiago e Lima, 1957), Do Modernismo à Bienal (MAM-SP, 1982), Tradição e Ruptura (MASP, 1984), Bienal Brasil Século XX (São Paulo, 1994) e Arte Construtiva no Brasil - Coleção Adolpho Leirner (MAM-SP, 1998). Talvez a melhor análise de sua posição no panorama da arte construtiva brasileira e internacional deva-se ao poeta e teórico alemão Eugen Gomriger em texto de apresentação no catálogo da exposição de 1987 na Galeria Tschudi Glarus, de Zurique:
- Geraldo de Barros pertence desde 1952 ao movimento da arte concreta brasileiro, fazendo parte do núcleo sul-americano desse movimento. Em ligação com poetas e com a revista Noigandres - com papel semelhante à revista Spirale em Berna - surgiu o movimento de vanguarda dos anos cinqüenta: a nova geração da arte concreta e da poesia concreta. Na Alemanha encontrou o movimento brasileiro recepção entusiástica. Max Bense, em Stuttgart, fundador da nova estética baseada na Teoria da Informação, celebrou de forma entusiástica a intelectualidade brasileira. Dessa forma está situada a orígem intelectual de Geraldo de Barros: estamos frente a uma pessoa com parentesco artístico, que certamente encontrará na Suíça antigos amigos e fará novos. Geraldo de Barros é na verdade um concreto especial, na medida em que - como Max Bill - não limitou sua criatividade apenas à pintura, vinculando-a ao desenho industrial, à comunicação visual e à fotografia. Sua preocupação é, de forma conseqüente, não a de pintar uma tela à maneira construtivista, mas antes de alcançar uma comunicação geral. Trata-se de prouzir uma linguagem objetiva, que possa ser reproduzida em distintos campos. Cerne espritual, agente central ou idéia central dessa produção é o conceito de Gestalt, que não pode ser traduzido, tornando-se por isso uma mercadoria de exportação, cuja orígem encontra-se ligada à lingua alemã. Os dois conceitos, de Gestalt por um lado e de linguagem objetiva do design por outro, formam a base que orienta os trabalhos de Geraldo de Barros desde o princípio e através da qual estes devem ser compreendidos.

Objeto-forma, esmalte, 1979;
0,80 X 0,80, coleção particular.

BARSOTTI, Hércules (1914). Nascido em São Paulo. Iniciou seus estudos de desenho com Enrico Vio, em 1926, e em 1937 formou-se em química industrial, exercendo a profissão por poucos anos, até que em 1940 descobriu a pintura. Seriam contudo necessários mais dez anos, para que enveredasse pela vertente da arte não-figurativista de conotação geométrica. Em meados da década de 1950 realiza suas primeiras pinturas concretas, ao mesmo tempo em que, a partir de 1954, dedica-se a atividades de desenhista têxtil e funda, com Willys de Castro, o Estúdio de Projetos Gráficos. Em 1958 efetua viagem de estudos à Europa, e nesse mesmo ano é premiado no Salão Paulista de Arte Moderna, o mesmo ocorrendo em 1959 (grande medalha de ouro). Em 1960 conquista o certificado de isenção de júri no Salão Nacional de Arte Moderna, expõe em Zurique, na Konkrete Kunst, - fato remarcável, em se tratando de alguém imune a movimentos e tendências - integra-se ao grupo neoconcretista do Rio de Janeiro, participando das mostras nacionais de arte neoconcreta de 1960 no Rio de Janeiro e de 1961 em São Paulo. Em meados dos anos de 1960 observa-se em sua pintura o predomínio das pesquisas óticas, um pouco sob a influência da Op Art. Em 1967 - ao lado de Willys de Castro - retomou, numa série de padrões para tecidos, certos elementos típicos do Art Nouveau.
Barsotti, que já expôs em coletivas como a Bienal de São Paulo (de 1957 a 1965) e a Bienal Interamericana do México (1960), além de tomar parte em manifestações levadas a efeito em Israel, Espanha, Estados Unidos da América e diversos outros países, realizou também algumas individuais, a primeira das quais em 1962. Tendo sido um dos fundadores, em 1965, da Associação Novas Tendências, o artista pertence igualmente à Associação Brasileira de Desenhistas Industriais.
Branco-preto, óleo s/ tela, 1961;
1,00 X 0,50, Museu de Arte Contemporânea da USP.

BELMIRO Barbosa de Almeida (1858-1935). Nascido em Serro (MG) e falecido em Paris. Após breve passagem pelo Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, matriculou-se em 1877 na academia Imperial de Belas Artes, tendo sido aluno de Souza Lobo, Agostinho José da Mota e Zeferino da Costa. Começou a trabalhar na imprensa, como caricaturista, naquele mesmo ano de 1877, fazendo publicar, na Comédia Popular, sua primeira charge. Trabalharia mais tarde para O Binóculo, O Diabo da Meia Noite, O Diabo a Quatro, A Bruxa e outros órgãos, de duração mais ou menos efêmera, que se editavam no Rio de Janeiro.
Conservador da pinacoteca da Academia em 1883, foi contemplado com medalha de prata na Exposição Geral de 1884. Em 1888, concorrendo ao prêmio de viagem, é derrotado por Oscar Pereira da Silva. Amoedo, que o julgou injustiçado, promoveu campanha para angariar fundos que lhe possibilitassem a viagem à Europa, graças à qual ele partiu, no mesmo ano, para Paris, ali freqüentando as aulas de Jules Lefebvre, que exerceria grande influência sobre o seu estilo, sendo lícito ver, nos corpos de adolescentes pintados pelo brasileiro, algo da linearidade sensual e elegante do autor de La Verité.
A partir dessa primeira viagem a Paris, Belmiro irá alternar sua carreira entre o Brasil e a França, "aqui cavaqueando sempre, trabalhando às vezes, e obtendo encomendas; lá, realizando obras mais sérias, aprimorando a técnica, aguçando o espírito" (Celso Kelly). Em 1890, no Rio, num barracão do Largo de São Francisco transformado em Ateliê Livre, realiza sua primeira exposição. No ano seguinte pinta para a Intendência Municipal uma fraca Apoteose ao 15 de Novembro, deixando perceber claramente não ser a pintura histórica o seu gênero de predileção. Escolhido por Rodolfo Bernardelli para substituir Pedro Weingärtner como professor de desenho, leciona na Escola Nacional de Belas Artes entre 1893 e 1896, e de novo em 1916, agora como professor de modelo vivo. Mas, perdendo para Fiuza Guimarães o concurso para o provimento da cátedra, abandona de vez o professorado, para o qual, aliás, nunca teve maior inclinação, e de novo embarca para a França, tão logo findo o conflito de 1914-18. Naquele mesmo ano de 1916 fundara, com outros, o Salão dos Humoristas, aberto no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro com a participação de, entre outros, Raul, Calixto, J. Carlos, Helios Seelinger e Di Cavalcanti, com apenas 19 anos.
No Salão de 1906, Belmiro expôs uma de suas melhores obras - Dame à la Rose, que causa emoção; no mesmo ano expõe Amuada, um óleo executado com brilho e vigor. Paralelamente, participa do Salon parisiense e vê certa feita recusado, como imoral, um nu, hoje no Museu Nacional de Belas Artes. O governo francês chegou a lhe encomendar um quadro sobre a Revolução de 1789, no qual retratou, entre os revolucionários, alguns brasileiros de passagem por Paris, como o poeta José Albano, o caricaturista Luís Peixoto e o pintor e diplomata Navarro da Costa.
Durante sua última permanência no Brasil, é um dos fundadores, em 1930, do Sindicato dos Artistas, do qual foi o primeiro presidente. Afasta-se do cargo pouco depois, para retornar a Paris, onde falece a 12 de junho de 1935, legando boa parte de seus bens à Escola Nacional de Belas Artes, para serem aplicados em obras de amparo a artistas desprovidos de recursos.
Desenhista excepcional, ótimo colorista, Belmiro possuía sensibilidade e inteligência abertas a todas as tendências. Em certas paisagens executadas em Dampierre, pouco antes da Guerra de 1914, praticou o Pontilhismo à maneira de Seurat; e chegou mesmo a flertar, embora por pura blague, com o Futurismo, no famoso Mulher em Círculos, de 1921. Amava o carnaval e, como tantos de nossos melhores artistas da época - Bernardelli, os dois Timóteos, ambos os Chambellands, Fiuza Guimarães, Seelinger -, executou estandartes para clubes e cordões carnavalescos, e "tinha garbo em dizer que os pintava", como escreveu Luís Edmundo. Escultor, é de sua autoria uma das mais belas esculturas existentes em logradouros públicos do Rio de Janeiro - o Manequinho, interpretação livre do célebre Maneken-pis de Bruxelas. Caricaturista, chegou a colaborar com brilho no Assiette au Beurre de Paris, e preencheu com seu talento décadas de brilhante colaboração em dezenas de periódicos brasileiros, de A Semana ao Fon-Fon e de O Malho ao João Minhoca. Foi contudo como pintor que mais se destacou, tendo se revelado excelente figurista, embora praticasse praticamente todos os gêneros.
Consta ter representado Gonzaga Duque nos traços do marido que, em Arrufos - um de seus quadros mais célebres, pintado em 1887 - discute com a mulher, em meio a luxuoso ambiente. O crítico, por sua vez, retratá-lo-ia no personagem Agrário, do seu romance Mocidade morta, de 1899. Sempre preocupado com as algibeiras, tinha no negociante e grande amigo Antônio Ribeiro Seabra um mecenas e administrador atento de todas as suas economias, que fez grandemente prosperar. Como escreveu João Luso, "tirante a sua arte - quando a ela se entregava -, a única coisa que tomava a sério era aquela vigilância, aquela tutela, aquele cuidado permanente de o não deixarem empobrecer. Tudo o mais lhe parecia pouco respeitável e bastante cômico, a principiar pela sua pessoa. Como artista, achava a própria fisionomia - em que tudo parecia desenhar-se para dentro, menos o nariz, enristado como um aríete numa carranca de navio - extremamente mal-amanhada e grotesca. Ninguém lhe fez tão implacavelmente a caricatura como ele mesmo". Já Gonzaga Duque, que o conheceu na mocidade, dele traçou um perfil famoso, em Arte brasileira, ao comentar justamente sua obra-prima, Arrufos:
- É um mineiro que possui a verve, a sagacidade de um parisiense bulevardeiro. Na rua, de pé sobre a soleira de uma porta, no Café Inglês ou na Casa Havanesa, o seu tipo pequeno, forte, buliçoso, destaca-se da multidão. Quando solteiro foi um boêmio desregrado, um perfeito tipo à Murger. Entre camaradas, na Rua do Ouvidor, com o narizinho arrebitado e atrevido farejando pacatos burgueses para lhes agarrar o ridículo, tinha na cabeça um cento de assuntos para pintar e em casa um cento de quadros para concluir. A sua predileta musa era a que inspirou e imortalizou Daumier e Gavarni e, a bem da verdade, deve-se dizer que depois de Borgomainerio e Bordalo Pinheiro ninguém tem feito, no Brasil, melhores caricaturas. Só depois de casado e depois de viajado; depois de ter visto de perto quanto trabalho e quanta dedicação são precisos para o artista conquistar um nome foi que ele abandonou a boêmia, de uma vez para sempre. A única coisa que ele jamais abandonará é a toilette. O vestuário é para Belmiro o que foi para Honoré de Balzac e para Alphonse Karr, o que é para Daudet e para Carolus-Duran, o que é para Leon Bonnat e Rochegrosse: uma feição artística, um sintoma de bom gosto e de asseio, ou como lhe chama o mestre, Sr. Ramalho Ortigão, a expressão gráfica, pessoal, de uma filosofia.

Namoro do guarda, óleo s/ madeira, 1904;
0,35 X 0,27, Museus Castro Maya, RJ.

Rua da Itália, óleo s/ tela, s/ data;
0,32 X 0,27, Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Dois meninos, óleo s/ tela;
0,30 X 0,40, Museu de Arte de São Paulo.

BERNARDELLI, Henrique (1858-1936). Nascido em Valparaíso (Chile) e falecido no Rio de Janeiro, era filho de um violinista russo e de uma bailarina francesa que se radicaram no Rio Grande do Sul no começo da década de 1860, após terem viajado longamente pelo México e pelo Chile. Quando em 1865 Pedro II esteve em Porto Alegre, ali conheceu os Bernardelli, convidando-os a virem para o Rio de Janeiro, onde efetivamente já se encontravam em 1867 como preceptores das princesas imperiais.
Matriculando-se na Academia Imperial de Belas Artes, que cursou até 1878, foi aluno de Zeferino da Costa, Vítor Meireles e Agostinho da Mota, entre outros, tendo conquistado impressionante número de prêmios e distinções: menção em Desenho de ornatos (1871), pequena e grande medalha de ouro em Desenho Figurado (1872 e 1874), medalha de prata em Pintura Histórica (1876), pequenas medalhas de ouro em Pintura Histórica e Modelo Vivo (1878). Ao concorrer, porém, à viagem à Europa, no mesmo ano de 1878, foi derrotado por Amoedo. Magoado com a preterição, que parece ter sido injusta, até porque Amoedo nem mesmo havia concluído o curso, decidiu partir por conta própria para a Itália, radicando-se em Roma, como discípulo de Domenico Morelli.
Regressando ao Brasil em 1886, Henrique realizou no Rio de Janeiro uma exposição em que apresentou, entre outras muitas obras, Tarantela, Maternidade, Messalina, Modelo em Repouso e Ao Meio Dia. A mostra foi mal recebida, menos por Gonzaga Duque, que assim a ela se referiu em Arte Brasileira:
- Os defeitos de Bernardelli foram qualidades. Um revolucionário, um inovador, não pode ser um frio desenhador da linha, nem um colorista preciso. É necessário que ele seja diferente, que seja resoluto, que pinte o que sente sem artifícios antigos mas por artifícios modernos, porque, afinal de contas, o estilo não é mais do que um artifício empregado para exprimir as nossas emoções.
A incompreensão de crítica e público em face da mostra de 1886 parece ter arrefecido o ímpeto do jovem artista que, a partir de então, e apesar de poucas obras notáveis, tornou-se mais cauteloso e conservador. Perderia algo daquela "maneira sólida, segura e franca" dos quadros realizados na Itália, adotando um estilo mais convencional, que por volta de 1908 chegara ao esgotamento e à conseqüente repetição: já no Salão de 1904, os retratos de Machado de Assis e Ubaldino do Amaral que expõe, merecem de Gonzaga Duque o reparo de que foram "pintados por mão de mestre, mas, não sei porque, temperados com chocolate".
Na verdade, como tantos de nossos melhores pintores de seu tempo, Henrique Bernardelli teve de seguir as duas únicas opções que se abriam a um artista brasileiro: lecionar, ou executar retratos e encomendas oficiais. Foi o que fez, dobrando-se, assim, ao gosto tradicional. De 1891 a 1905, lecionou na Escola Nacional de Belas Artes. Homem de probidade e de idéias arejadas, não aceitou que seu contrato fosse renovado naquele último ano, alegando que aos alunos devem ser oferecidos, de tempos em tempos, novos professores, para que o ensino não se torne esclerosado! Passou a ensinar pintura em sua propria residência em Copacabana, por onde passaram, entre inúmeros outros, Lucílio e Georgina de Albuquerque, Eugênio Latour, Helios Seelinger e Artur Timóteo da Costa. Prova concreta de quanto eram prezados pelos jovens artistas os dois Bernardelli, Rodolfo e Henrique, deu-se em 1931, quando um grupo de alunos da Escola Nacional de Belas Artes criou um ateliê livre de pintura, nos porões da instituição, batizando-o com o nome de Núcleo Bernardelli.
Pintor decorativista, Bernardelli fez painéis para o Teatro Municipal, para a Biblioteca Nacional, para o Cinema Pathé-Palácio; trabalhou ainda para o Museu Paulista. Mas suas obras mais importantes, no gênero, são os 22 medalhões em afresco que ornam a fachada do atual prédio do Museu Nacional de Belas Artes, na Avenida Rio Branco, expostos em 1916 no Salão e que lhe valeram a medalha de honra.
Bernardelli teve defensores entusiásticos, mesmo no ocaso da sua carreira. Assim, Angione Costa dele fala, em A inquietação das abelhas, de 1927:
- Henrique Bernardelli é um pintor que, na segunda metade da vida, sem marcar uma evolução acentuada, consegue entretanto, pintar belos quadros, nos quais o colorido é uma maravilha, e o seu pincelar seguro, um prodígio de concisão.
Exagero sem dúvida, porquanto, após os 50 anos, Bernardelli aquietara-se, perdera os ferrões da mocidade, academizara-se em suma. O que doravante iria perpassar em sua produção seriam ecos do que anteriormente fizera, produtos concebidos e executados mecanicamente e sem emoção; nem mais aqueles "temas helênicos, influência da dança antiga, raras ressonâncias simbolistas", ou os modismos estilísticos Belle Époque que lhe surpreendeu Mário Barata; mas as composições do tipo A Saúde da Bela!, de um rococó anacrônico e anêmico, chupado em Fragonard e em outros artistas franceses do séc. XVIII e mesmo do séc. XIX. A que distância está-se, já agora, de Messalina, ou dos Bandeirantes!
Henrique Bernardelli foi pintor de história e de gênero, retratista e paisagista. Praticou diversas técnicas - o óleo, a têmpera, o fresco, o pastel, a aquarela, a água-forte. Sua produção encontra-se distribuída principalmente entre o Museu Nacional de Belas Artes (120 obras de diferentes épocas e técnicas) e a Pinacoteca do Estado de São Paulo (344 desenhos, 41 aquarelas e ainda óleos). Maternidade, Tarantela, Bandeirantes, Proclamação da República são seus quadros mais conhecidos, mas não forçosamente os melhores, pois o verdadeiro Bernardelli revela-se em detalhes, aqui na vibração de uma nota de cor, ali na elegância de um arabesco ou num trecho de fatura surpreendentemente moderna, feito mediante um pincelar ágil e seguro.

Retrato de senhora, óleo s/ tela, 1895;
1,50 X 0,73, Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Auto-retrato, óleo s/ madeira, s/ data;
0,25 X 0,20, Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Duas partes de um tríptico para o Ministério da Aviação, óleo s/ tela, s/ data;
0,55 X 0,73, Pinacoteca do Estado de São Paulo.

BIANCO, Enrico (1918). Nascido em Roma (Itália). Estudou na adolescência com Maud Datour, obscuro mestre a quem se refere ainda hoje com respeito, e em 1936, na capital italiana, realizou sua primeira individual. Mudando-se no ano seguinte para o Brasil, radicou-se no Rio de Janeiro, onde conheceu Portinari, de quem se tornaria aluno e, por quase 20 anos, ajudante em importantes comissões de murais e painéis decorativos de que o grande pintor se desincumbiu. Em 1940 expôs pela primeira vez no Salão Nacional de Belas Artes, merecendo seu envio medalha de prata; no mesmo ano levou a efeito sua primeira individual brasileira, no Copacabana Palace Hotel. Realizaria no futuro diversas outras individuais, inclusive na Itália e em Israel, em 1967, e tomaria parte em importantes coletivas, como a Bienal de São Paulo, em 1951, e a II Bienal Interamericana, em 1960, no México - na qual foi-lhe consagrada sala especial.
Em 1941, expondo em São Paulo cerca de 100 pinturas e outros tantos desenhos, que mais do que prova de sua aplicação e operosidade representavam, na opinião de Mário Andrade, "uma festa encantadora de arte verdadeira, de honestidade disciplinada e de felicidade luminosa", Bianco apresentou figuras e naturezas-mortas, paisagens e animais, tratados em obediência ao que se poderia chamar de expressionismo atenuado. Na mostra, mereciam destaque especial os numerosos nus femininos - uma temática ainda hoje do especial agrado do artista. Já naquela oportunidade, certos críticos observaram na pintura do jovem expositor a marca profunda de Portinari, a influência tanto da técnica e do estilo, quanto do próprio mundo de idéias do famoso pintor; influência, aliás, que o próprio Bianco reconhece, chegando a declarar explicitamente:
- Mesmo considerando a personalidade de Portinari, tão poderosa a ponto de envolver praticamente quem trabalha com ele, seus ensinamentos e seu alto nível plástico compensam amplamente essa natural e lógica conseqüência.
Bianco, por conseguinte, abrindo mão de maior independência estilística, parece ter optado conscientemente pelos ensinamentos e pela estética do portinarismo, tornando-se assim uma espécie de continuador de Portinari, do qual não possui porém nem a dramaticidade, nem o lirismo. Buscando harmonizar essa pesada herança com sua própria personalidade, tem produzido uma obra figurativa cuja temática resvalou não raro para o pitoresco e o epidérmico, em detrimento do pictórico e do expressivo. São jangadas e carros de boi, trigais e colheitas, madonas e nus de mulher, cavaleiros e pescadores, meninos com carneiros e bumbas-meu-boi, nos quais é incontestável a mestria do pintor, aprimorada ao longo de muitas décadas de trabalho a nível profissional, mas nem sempre se acham presentes a emoção e a criatividade do artista.

Homem e carneiro, óleo s/ tela, 1949;
0,55 X 0,45, Museus Castro Maya, RJ.

BISPO DO ROSÁRIO, Artur (1909-1989). Nascido em Japaratuba (Sergipe) e falecido no Rio de Janeiro. De ascendência africana, seu pai alistou-o em 1925 na Escola de Aprendizes Marinheiros de Aracaju, de onde foi transferido em 1926 para o Rio de Janeiro. Após oito anos de serviços na Marinha de Guerra do Brasil deu baixa em julho de 1933, deixando-se ficar na capital onde ganharia a vida como biscateiro até ser admitido meses depois como lavador de bondes da Light. Demitido em 1937, passou a trabalhar como empregado doméstico até manifestar-se o primeiro delírio em 22 de dezembro de 1938, quando viu Jesus Cristo descer à terra acompanhado por sete anjos azuis, enquanto vozes lhe ordenavam que reconstruísse o mundo. Internado no Hospital dos Alienados da Praia Vermelha na véspera do Natal desse mesmo ano, transferido em janeiro de 1939 para a Colônia Juliano Moreira em Jacarepaguá, a essa primeira internação suceder-se-iam várias outras, intercaladas de intervalos lúcidos durante os quais trabalhou como empregado de escritório, porteiro de hotel, vigia, pedreiro etc., até ser definitivamente internado em abril de 1948, com diagnóstico de esquizofrenia paranoide, ali falecendo mais de 40 anos mais tarde.
Um dos mais importantes representantes, no Brasil, da chamada Arte Incomum, Bispo nunca se considerou artista nem jamais pretendeu expor seus trabalhos, que fazia para si próprio, levado por irreprimível impulso interior. Seus bordados em lençóis, vestimentas rituais, textos delirantes, montagens e objetos tridimensionais formam em verdade uma dolorosa autobiografia da qual cada obra, feita com a precariedade dos materiais disponíveis - latas, têxteis, papel, barro, pedaços de pau, vidros vazios, funis, plásticos, torneiras, escovas, talheres, tomadas e uma centena de outros - não é senão a parte ínfima de um Todo que em vão buscou atingir, na tarefa infinita e no infinito suplício que se impôs de recensear, organizar, ordenar, catalogar, colecionar, envolver, englobar, preencher, reconstruir o mundo com vistas ao Juízo Final. Prova maior da consciência que tinha da missão que lhe fora confiada pelo próprio Jesus Cristo e da seriedade com a qual dela buscava desincumbir-se é o Manto de Passagem, bordado numa miríade de adornos figurativos, padrões geométricos, algarismos, nomes de mulher e outros elementos formais que juntos compõem uma simbologia toda pessoal

BONADEI, Aldo (1906-74). Nascido e falecido em São Paulo (SP). Aos nove anos pintou sua primeira natureza-morta - Goiabas -, e de então até 1923 realizou, autodidaticaniente, uma série de outras pinturas, dando provas de enorme precocidade. Disposto a aprimorar seus dotes naturais para as artes, matriculou-se em 1923 como aluno de Pedro Alexandrino, assim permanecendo por cinco anos. Do velho mestre acadêmico, autor de opulentas naturezas-mortas vinculadas à grande tradição clássica francesa, recebeu não apenas conselhos de cozinha pictórica, mas até mesmo uma influência que iria revelar-se duradoura. Além do mais, Pedro Alexandrino prodigalizou-lhe os frutos de sua longa experiência, em frases como essa: - Em pintura não existe distração.
Em 1925 cursou ainda, por alguns meses, aulas de Desenho no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo. A partir de 1928 começou a mostrar publicamente seus quadros, participando até 1933 das Exposições Gerais de Belas Artes, no Rio de Janeiro. Na de 1928, aliás, conquistou uma menção honrosa de primeiro grau, com o óleo Cúmplices, de conotação ainda acentuadamente realista. No ano seguinte, numa sala alugada do centro de São Paulo, efetuou sua primeira individual, que passaria praticamente desapercebida. Sentindo a necessidade de se aprimorar, embarcou em 1930 para a Itália, terra de seus ancestrais, freqüentando por cerca de um ano as aulas de Felice Carena e Ennio Pozzi na Academia de Belas Artes de Florença.
Em 1931 acha-se novamente em São Paulo, onde retoma sua atividade pictórica - que alterna aliás a um modesto ganha-pão como bordadeiro (incrível como possa parecer, somente em 1960 Bonadei viveria exclusivamente de e para a pintura!). Já em 1932 realiza em Campinas sua segunda individual, que obteve discreto sucesso. De 1934 em diante envia pinturas tanto para o Salão Nacional de Belas Artes quanto para o Salão Paulista de Belas Artes, recebendo no primeiro, já na vigência da Divisão Moderna, medalha de prata em 1940 e medalha de ouro em 1950, e no segundo, Prêmio Prefeitura de São Paulo em 1934 e menção honrosa em 1937.
Em meados da década de 1930 a pintura de Bonadei já não revela a marca inicial de Pedro Alexandrino e nem a de seus mestres italianos, antes podendo ser definida como de um modernismo atenuado, modesta e sensível. É por esse momento, 1935, que o artista se une a um grupo de pintores, proletários como ele, que costumavam freqüentar o escritório-ateliê de Rebolo Gonzales no Palacete Santa Helena, para trocarem idéias, fazerem o modelo-vivo e praticarem, em suma, a pintura. Dois anos mais tarde, será um dos integrantes da Família Artística Paulista, de cujas mostras de 1937 e 1939 em São Paulo e de 1940 no Rio de Janeiro participará com destaque. Seria também presença constante nas exposições anuais do Sindicato dos Artistas Plásticos de São Paulo, entre 1938 e 1949.
Paisagem, óleo s/ tela, 1946;
0,47 X 0,70, Museus Castro Maya, RJ.

Paisagem com casas, óleo s/ tela, 1947;
0,63 X 0,91, Palácio dos Bandeirantes, SP.

Natureza morta, óleo s/ tela, 1951;
0,46 X 0,55, Museu de Arte Contemporânea da USP.

BRÜSKY, Sonia von (1945). Nascida no Rio de Janeiro. Pintora, escultora e desenhista. A partir de 1967 estudou com Ivan Serpa no MAM-RJ e no ateliê do artista no Meyer. Em 1968, incentivada por Mário Pedrosa, realizou na Galeria Domus, do Rio de Janeiro, sua primeira individual de desenhos, na linha do Surrealismo Erótico e do Fantástico de que se tornaria entre nós dos mais típicos representantes. Apresentando-a, dizia o crítico Walmir Ayala:
- Focalizando a mulher, por autoconhecimento feroz de suas limitações e anseios, Sonia von Brüsky amplia essa reivindicação a todo ser castrado pelo poderio estabelecido, e incita cada um a vasculhar no seu íntimo o possível fracasso humano e a tentativa de reposição de uma verdade que o salve de ser um simples manequim ambulante. O personagem desta desenhista é isto, um manequim: o mundo surrealista onde ela se locomove é teatral, graficamente econômico e espantosamente técnico.
Não é demais salientar que 1968, ano de estréia da artista, é também o do Ato Institucional nº 5 e o da repressão militar em seu auge, devendo seus desenhos da época ser encarados não apenas no que aparentam ser, mas no que efetivamente são - metáforas da liberdade.
A partir de 1969 Sonia integrou-se ao movimento de vanguarda deflagrado no Rio de Janeiro em torno ao MAM, participando de manifestações como os Domigos da Criação, organizados pelo crítico Frederico de Morais, e pela primeira vez do Salão Nacional de Arte Moderna, no qual obteria de saída a isenção de júri. Outras coletivas de que tomou parte nessa época dentro e fora do país incluem "O Objeto", organizada pelo crítico Roberto Pontual (1969 - Rio de Janeiro), o Salão de Verão (1969, Rio de Janeiro - aquisição), o Salão Paranaense de Belas Artes (1970, Curitiba - aquisição), XVII Convenção de Arte Fantástica (1970, Heidelberg), Bienal de Cali (1971), Salão da Eletrobrás (1971, Rio de Janeiro - aquisição), Congresso Internacional de Arte Fantástica (1972, Trieste), Imagens do Brasil (1972, Bruxelas), Artes Gráficas Brasileiras de Hoje (1974-5, Madrid, Barcelona, Lisboa, Paris e Viena) etc. Em 1971, expondo desenhos e pinturas na Galeria L’Angle Aigu de Bruxelas, a artista mereceu elogios da exigente crítica belga, referindo-se por exemplo Alain Viray à sua "incontestável mestria", enquanto Stephane Rey acrescentava:
- Seu universo de sofrimento é de singular e cativante beleza. Nele se reencontram os temas clássicos das belas supliciadas, esquartejadas, as carnes assassinadas, as feridas exangues. O diabo e a morte estão presentes em toda parte. Do mesmo modo, não sei que gosto inexprimível de sacrilégio ligado a certos personagens, a certos acessórios, a um certo espírito blasfemo. Mas apesar, talvez por causa de tudo isso, a artista afirma uma personalidade extraordinária, que a vincula principalmente à arte (e mesmo à literatura) fantásticas.
Nos começos da década de 1970 a arte de Sonia passa por uma série de transformações: o meio expressivo já não é apenas o desenho, voltando-se ela cada vez mais para a pintura e inclusive para o tridimensional, datando de então esculturas manipuláveis em espuma de borracha ou semafóricas com luzes e ruídos sincronizados, pequenos objetos conjugando moldes em madeira de peças de navios a braços, mãos e cabeças de bonecas antigas, conchas, miniaturas e tampinhas de Coca-Cola, espelhos ou lentes que duplicam, distorcem ou deformam órgãos humanos - entre outros materiais insólitos, além de incursões pela arte ecológica e a criação, em 1973, da primeira camiseta brasileira com desenho de artista. Enquanto isso, nos desenhos, como escreveu Daisy Peccinini em 1994, "ao avançar dos anos 70 a construção geométrica começa a tomar visibilidade. O corpo e rosto femininos, libertos do sofrimento, são alvo de limpeza de formas. Desenvolve nova pesquisa pioneira com a utilização do off-set. Faz impressão de formas com retícula sobre papel-cartão e depois interfere com desenhos. Nesta série, o tema ainda é o feminino, a mulher, mas há um diálogo harmonioso entre o ser feminino e as formas geométricas".
Mudando-se em 1981 para São Paulo, sob o impacto da metrópole imensa com seus muros cinzas, obrigada a enfrentar um clima e uma atmosfera a que não estava habituada, Sonia mais uma vez refugia-se em sua pintura. Surgem agora as telas da série Correspondências, cuja gênese ela própria assim explica:
- Para chegar ao meu ateliê na Peixoto Gomide, precisava todos os dias atravessar a Avenida Paulista, e talvez influenciada por esta nova atmosfera, onde os edifícios imensos são toda a paisagem, a temática das minhas pinturas mudou inteiramente. A figura já desnecessária desapareceu, surgindo em seu lugar uma superfície lisa, cortada por canos e sobreposta de cartas endereçadas e seladas. No princípio as cores eram escuras, com o cinza predominando. Aos poucos foram clareando, e as telas crescendo até se transformarem em grandes painéis, mais condizentes com a grandiosidade da cidade.
Por ocasião da individual de 1983 no Museu de Arte da Bahia, o crítico Theon Spanudis, um de seus mais entusiásticos exegetas, sublinhou as dicotomias em que então se concretizava a arte de Sonia - "o humano com sua tenuidade, sensibilidade e angústia, justaposto ao mecânico, férreo, às leis intransponíveis que regem a vida humana" [....], "o elemento do acaso - as cartas postais jogadas no espaço da tela como cartas de baralho ocasionalmente jogadas em cima da mesa - em diálogo com o elemento construtivo, estável, calculado e firme".
Levando sempre adiante suas pesquisas, a artista acrescentará nos próximos anos duas novas linguagens ao seu fazer estético: a da arte xerox em 1984 e a da arte postal em 1987, nessa condição participando de dezenas de coletivas realizadas em numerosos países dos Quatro Continentes. Também executa design de joias e publica litografias, e em 1991 inicia, por uma interferência no metrô de Londres, ambicioso projeto conceitual que prosseguiria em 1992 no metrô de Paris e no campus da Universidade de Heidelberg e em 1995 no metrô de Nova York, estando ainda longe de se encerrar: a idéia é poder traçar algum dia, sobre o planisfério, um desenho que nasça da interligação das cidades em que tenham ocorrido tais interferências, sempre em lugares públicos e devidamente documentadas em vídeo ou fotografia. A partir de 1993 Sonia vem trabalhando nas pinturas a têmpera e nos relevos em madeira da série Círculos Partidos, nos quais adota os princípios da estética fractal. Também em 1993, para comemorar seus 25 anos de carreira, a Pinacoteca do Estado, em São Paulo, o Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, o Museu do Ingá, em Niterói, e o Centro Cultural da Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, realizaram a mostra Sonia von Brüsky 25 Anos, que lhe garantiram o Prêmio de Melhor Pintora da Associação Paulista de Críticos de Arte. Tomando parte em 1998 de concurso patrocinado pela Funarte-SP com outros 29 artistas de São Paulo, Sonia foi selecionada para executar a pintura de um dos flancos do Elevado Costa e Silva (Minhocão) em São Paulo, juntamente com Maurício Nogueira Lima, incumbido da pintura do outro flanco. Esse trabalho, inaugurado em 1999 e que com seus 12 mil metros quadrados talvez seja a maior obra pública de pintura do mundo, valeu-lhe o Prêmio Mário Pedrosa 1998 da Associação Brasileira de Críticos de Arte.
Auto-Retrato, óleo s/ tela, 1969;
0,45 X 0,35, Coleção Particular.

Sem Título, óleo s/ tela, 1983;
0,80 X 0,80, Coleção Particular.

Sem Título, pintura e colagem com fibras da Amazônia, 1999;
0,80 X 0,54, Coleção Particular.

Pintura da lateral sul do elevado Costa e Silva (Minhocão) em São Paulo,
comemoração dos 500 anos do Descobrimento do Brasil, 1999; 3 km de extensão.

BURLE-MARX, Roberto (1909-1994). Nascido em São Paulo (SP) e falecido no Rio de Janeiro. Radicando-se com a família no Rio de Janeiro, aos quatro anos de idade, seguiu para a Alemanha em 1928, demorando-se cerca de dois anos. Foi nas estufas do Jardim Botânico de Dahlem, Berlim, que paradoxalmente teve a revelação da opulenta flora tropical brasileira. Retornando em 1929 ao Rio de Janeiro, matriculou-se na Escola Nacional de Belas Artes, que freqüentou por pouco tempo:
- Quanto a Leo Putz, quando foi contratado por Lúcio Costa para ser professor da Escola de Belas Artes, muitas vezes servi de intérprete, porque não sabia falar o português. A primeira grande lição que tive com ele, foi quando fizemos uma viagem a Angra dos Reis. Leo Putz, que pintava de uma maneira expressionista alemã, da Escola de Munique, diante da minha surpresa ante uma interpretação do que ele via e do que ele pintava, me disse que a natureza era um pretexto para se fazer as divagações pictóricas da cor.
Se Leo Putz assim o entusiasmou, outra é contudo sua opinião sobre o tipo de ensinamento artístico que recebeu na Escola:
- As lições que tive na Escola de Belas Artes eram lições acadêmicas, com professores medíocres, a começar pelo Bracet. Quando cheguei da Europa - fui em 1928 e voltei em 1929 - nos últimos dias que passei em Berlim fui a uma galeria e vi pela primeira vez um Picasso. Levei um choque! Vi também Paul Klee, Matisse, Picasso da fase cor-de-rosa e outros. Aquilo foi como um soco que recebi, e não poderia deixar de guardar; eu queria me desfazer dessas impressões, mas era aquilo que me chamava a atenção. Quando me matriculei para as aulas de pintura na Escola de Belas Artes, Bracet depois me expulsou de aula, porque eu falava de Gauguin e ele dizia que eu estava pervertendo os alunos. Ele dava receita de como se deve pintar: pele branca, carmim, ocre, como se com isso se resolvesse o problema colorístico.
Quando, com a exoneração de Lúcio Costa da direção da Escola, Leo Putz e os demais professores de orientação moderna se retiraram do corpo docente, Burle-Marx abandonou o curso e se inscreveu na aula particular do escultor Celso Antônio, com quem aliás não experimentou progressos; ao contrário, muito aprendeu com o botânico Melo Barreto, orientando-se desde então cada vez mais para o paisagismo. Em 1933 criou seu primeiro jardim, para uma casa projetada por Lúcio Costa; no ano seguinte seria nomeado diretor de Parques e Jardins de Recife, desenhando para a capital pernambucana uma série de praças e jardins públicos e nela criando, em 1937, o primeiro parque ecológico nacional. Por volta de 1935, tornou-se aluno de Portinari na Universidade do Distrito Federal, sofrendo, como tantos jovens pintores da época, a influência do mestre, que a recente consagração nos Estados Unidos da América, transformara numa espécie de artista oficial do Brasil. Alternando sempre, a partir de então, suas atividades entre a pintura e o paisagismo, participou, logo em seguida, da equipe incumbida da edificação do Ministério da Educação, para o qual desenhou os jardins. Faria nos próximos 50 anos numerosíssimos projetos paisagísticos - para a Pampulha em Belo Horizonte (1940), o Largo do Machado no Rio de Janeiro (1945), o Parque Ibirapuera em São Paulo (1954), o Museu de Arte Moderna e a Praia de Botafogo no Rio de Janeiro (1955), o eixo monumental de Brasília (1958), o Aterro do Flamengo no Rio de Janeiro (1959), o Centro Cívico de Curitiba (1966) etc., além de numerosos projetos para o Exterior; por outro lado, nunca deixou de encarar a pintura como atividade paralela mas não necessariamente subjugada pela de paisagista, em que mais se consagrou, inclusive internacionalmente. Como pintor, como desenhista, como litógrafo e como designer têxtil ou de jóias, com efeito, tem mostrado seus trabalhos em numerosíssimas ocasiões, desde 1941, quando exibiu pinturas no Palace Hotel do Rio de Janeiro. Citem-se, entre as principais exposições de suas obras: a de 1954, Arquitetura Paisagística no Brasil: Roberto Burle-Marx, organizada em várias cidades norte-americanas pela União Pan-americana; a de 1956, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro; a de 1963, no Commercial Museum de Filadélfia, Estados Unidos da América; a sala especial na XXXV Bienal de Veneza, em 1970; a retrospectiva 43 Anos de Pintura, em 1972, no Museu de Arte de Belo Horizonte; as grandes mostras de 1973 na Fundação Gulbenkian, em Lisboa, e no Museu Galliera, em Paris; as exposições de 1974 no Museu de Arte Moderna de São Paulo, no Museu de Arte Contemporânea de Curitiba e no Teatro Castro Alves de Salvador; a do Museu de Caracas, em 1977, a do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, em 1978, a do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, em 1979, e a do MAC-USP, em 1997, entre tantas outras.
Originalmente calcada em raízes e treinamento europeus, a pintura de Burle-Marx viu-se enriquecida logo em seguida por fortes ingredientes telúricos, em razão do profundo interesse que o artista demonstrou desde a mocidade pela riquíssima flora brasileira, que converteu em leit-motiv de toda a sua produção. A natureza tropical, com efeito, é quem dá seiva e alento à arte de Burle-Marx, servindo-lhe, mais que de tema, de inspiração e pretexto para profundas pesquisas formais e de expressão. Mário Barata bem compreendeu essa síntese admirável, ao escrever recentemente:
- Na arte de Roberto dos anos recentes a forma europeizada e a vivência tropical estão conjugadas em uma adequação de boa forma e integração perfeita de técnica e visão. O artista reelaborou o vegetal no plano do pictórico e do desenho, com qualidade, em nível em que o pessoal se funde ao conhecimento. (...) Sua arte atual - na pintura, desenho e litografia - tem, pois, a contribuição da sua particular experiência, de sua percuciente visão caldeada pelos núcleos e formas de articulação vegetal, permanentemente observados por ele. Sentiu-os de perto, quase milimetricamente, através do que eu chamo a penetração burleana da natureza: o esplendor do interior da matéria (apud Joaquim Cardoso) e do entrelaçado das estruturas exteriorizadas do vegetal.