PALATNIK, Abraham (1928). Nascido em Natal (RN). Indo muito novo para Israel, fez sua aprendizagem em Tel Aviv, freqüentando os estúdios do pintor Aron Avni e do escultor Sternhus e se tornando aluno de estética de Shor. Retornando em 1948 ao Brasil fixou-se no Rio de Janeiro, onde deu continuidade a seus estudos teóricos com Mário Pedrosa.
Começou sua carreira como pintor não-figurativista, utilizando ainda pincéis e suportes tradicionais. Mas já em 1949 deu início a pesquisas no campo da luz e do movimento. Dotado de raro engenho mecânico, construiu aparelhos cinecromáticos e passou a aplicar à criação estética os recursos da tecnologia. Exibindo um desses aparelhos na I Bienal de São Paulo, em 1951, mereceu do júri menção especial, porquanto seu envio, mesmo não se enquadrando em nenhum dos meios expressivos tradicionais, impressionou vivamente os jurados. De 1953 a 1955 Palatnik integrou o Grupo Frente, tomando parte em suas exposições. Simultaneamente, dedicava-se à criação de processos de controle visual e automático de utilização industrial, patenteava máquinas e inventava em 1962 um jogo de percepção intitulado Quadrado Perfeito.
Internacionalmente reconhecido como um dos pioneiros mundiais da arte cinética, Palatnik (que participou de várias Bienais de São Paulo e realizou individuais dentro e fora do Brasil) pinta, se se pode assim dizer, diretamente com a luz, uma luz projetada que, combinando-se a outras luzes, gera imagens que se multiplicam no screen, um pouco à maneira de um caleidoscópio, só que subordinada às intenções do artista. Como escreveu a seu respeito o crítico Mário Pedrosa, em 1951:
- A cor, enfim, se liberta dos restos de sua existência, dependente do objeto, de seu materialismo local, químico. Torna-se agora pura, direta, oriunda de fontes luminosas artificiais. Uma cor pigmentária fixada na tela é um acidente que pode sempre ser removido. A que provém de fontes luminosas, entretanto, projeção de luzes coloridas, é ao mesmo tempo concreta e imponderável. Com efeito, uma ou mais fontes de luz cromática podem ser projetadas simultaneamente em vários lugares. O novo aparelho de Palatnik é uma caixa de quatro paredes: em cada parede uma abertura. Cada lâmpada pode projetar um foco luminoso em vários lugares ao mesmo tempo. O novo aparelho não dá apenas um só movimento - horizontal - como o primeiro: mas outro movimento contrastado por uma segunda direção vertical, que age como uma espécie de contraponto. Abrem-se com isso possibilidades sem limite às cores cinéticas. O amarelo, por exemplo, não precisa mais do cádmio para desabrochar, pois uma projeção de luz que atravessa as lentes pode gerar a mescla cinética do verde e do carmesim e nos dar uma percepção do amarelo. A luz transforma-se em meio de expressão plástica graças às suas próprias qualidades, como a fluidez, a irradiação, o dinamismo, a descontinuidade, a infiltração, o expansionismo envolvente, arrefecimento, etc. Ela cria, além disso, formas negativas e volumes espectrais.
Aparelho cinecromático (objeto cinético), 1958;
1,10 X 0,70 X 0,20, Museu de Arte Contemporânea da USP.
Aos 17 anos embarca num veleiro, o Maria-Rosa, rumo a Nápoles. Em 12 de Fevereiro de 1920, de regresso ao Brasil, desembarca em Santos, onde, para sobreviver, irá desempenhar humildes ofícios: empregado numa fábrica de tecidos, auxiliar de ourives, garçon, trabalhador em esgotos e arrumador do Hotel Guarujá. Em 1921, de novo sem trabalho, depara-se na Rua Aurora, em São Paulo, com a Oficina Beppe, na qual se emprega como pintor de paredes e cartazista improvisado. Logo depois torna-se auxiliar do pintor Adolfo Fonzari nas decorações da casa do Comendador Pugiese em Guarujá.
Em março de 1922 alista-se na Marinha de Guerra do Brasil e passa a servir no destróier Paraná. Como marinheiro, a partir de então, viajará o mundo, e tomará parte nas revoluções de 1922, 1924, 1930, 1932 e 1935, sempre ao lado das forças legalistas.
A bordo executava serviços de pintura: como pintor da Companhia de Praticantes Especialistas de Convés chegou a ter seu nome vinculado a uma tonalidade especial de verde - o verde pancetti -, na qual pintava cascos e paredes de navios. Já desde pouco antes realizara suas primeiras marinhas, explicando, muito mais tarde:
- Certa vez não sei como tive vontade de pintar aquilo que meus olhos viram na louca carreira do mar...
A partir de então, as horas vagas seriam utilizadas na elaboração de pequenas pinturas, executadas em caixas de fósforos ou em pequenos cartões, trocadas por cigarros ou simplesmente dadas a colegas. Em 1932, assistindo de bordo do cruzador Bahia ao combate entre o Rio Grande do Sul e o avião de Ribeiro de Barros, defronte ao Farol da Moela, em Santos, fixa a cena num desenho que, publicado em A Noite, obteve certa repercussão. Paulo Mazzuchelli e Giuseppe Gargaglione aconselham-no pouco depois a ingressar no Núcleo Bernardelli, o que faz efetivamente, passando a receber orientação de Manoel Santiago, Edson Motta, Rescala e outros. Explicaria anos depois, numa entrevista:
- Os primeiros que colocaram o fusain nas minhas mãos foram Armando Pacheco, Edson Motta, Rescala, Dacosta e Bustamente Sá.
Os pintores que mais o marcaram, no Núcleo, foram porém Martinho de Haro - o primeiro, talvez, a lhe falar em arte moderna - e principalmente Bruno Lechowski, com quem começou a compreender a parte artesanal da pintura, e que lhe emprestava livros e lhe dava conselhos.
Em 1933 expôs pela primeira vez no Salão Nacional de Belas Artes; no ano seguinte recebe menção honrosa. Em 1935 casou-se com Anita Caruso. Nos três quadros com que concorre ao Salão de 1936, e que lhe garantem a medalha de bronze, há quem perceba afinidades estilísticas com o argentino Quinquella Martin, então em grande voga. Em 1939 é a vez da medalha de prata, e em 1941 o prêmio de viagem à Europa, pela Divisão Moderna recém-criada. Esta premiação, dada a um pintor de orientação não-acadêmica, provoca reações entre os conservadores, e um deles, J. L. de Villeroy-França, agride Pancetti em artigo publicado a 19 de outubro de 1941 na Gazeta Magazine, chamando-o de "pintor sem símbolos e sem fatalidades, vitima do complexo terrível da praça de pré profissional que não pode atingir o oficialato, recalque de marinheiro que não pode ser almirante!"
Mas, tal como ocorrera com Vicente Leite, premiado no Salão anterior, Pancetti também não viajará, não tanto pela impossibilidade de seguir para a Europa em guerra - pretendia aliás viajar para os Estados Unidos -, mas pelo seu precário estado de saúde. Assim, o prêmio de viagem foi transformado em auxilio: 37 contos de réis, mais o que percebia como primeiro-sargento - um conto e 53 mil réis mensais. Reformado e sem maiores problemas financeiros, Pancetti poderá doravante dedicar-se por inteiro à pintura.
Em 1947, com o prêmio de viagem ao país obtido no Salão, parte para Salvador, a instâncias de Odorico Tavares. Em agosto de 1950 segue de novo para a Bahia, com a intenção de passar alguns meses. De Salvador porém não iria mais ausentar-se, a não ser em curtas temporadas em Campinas, Saquarema e Campos do Jordão, além de freqüentes visitas ao Rio. Em janeiro de 1952 é promovido a primeiro tenente. Em 1954 recebe a medalha de ouro do Salão Baiano - tal como, em 1948, recebera a do Salão Nacional. Em 1957 dão-lhe o titulo de Cidadão Baiano. No fim desse mesmo ano opera-se, no Hospital Central da Marinha, no Rio de Janeiro, de uma úlcera duodenal, recuperando-se em Campos do Jordão. A 10 de fevereiro de 1958, porém, após meses de padecimentos estoicamente suportados, registrados no pungente Diário do hospital, morre no Rio de Janeiro, deixando viúva e dois filhos, sendo sepultado no Cemitério de São João Batista.
Pancetti começou verdadeiramente a pintar uns dez anos após a Semana de Arte Moderna, no momento em que Portinari, recém-tornado da Europa, ia-se transformando no líder inconteste da chamada Escola Carioca de pintura. Não se aproximou porém quer de Portinari ou de Alberto da Veiga Guignard, também chegado havia pouco da Europa, nem de qualquer outro corifeu do Modernismo brasileiro - Di Cavalcanti, Ismael Nery, Cícero Dias, Correia de Araújo: ao contrário, ingressa no recém-fundado Núcleo Bernardelli, que funcionava nos porões da Escola Nacional de Belas Artes e representava a ala moderada do Modernismo no Rio de Janeiro. Formado em contacto com tal meio, Pancetti não seria jamais um experimentalista, conservando-se sempre um mimético, que partia da observação atenta dos seres e das coisas. Marinhista e paisagista por índole, por instinto, irá permanecer fiel, durante toda a sua carreira, a uma linhagem mais clássica, limitado pela referência à natureza, que não pretendeu reinventar, mas retratar. Nisso reside, de resto, um certo parentesco que tem com alguns pós-impressionistas europeus. Mesmo quando ia mais acesa, na década de 1950, a luta entre figurativistas e abstracionistas, José Pancetti permaneceu um isolado, simplificando ao máximo suas marinhas, fazendo uso de um desenho anguloso, mas ainda assim representando com fidelidade a natureza.
Por seu temperamento romântico, pode Pancetti ser aproximado de Guignard e de Djanira: há nos três a mesma ingenuidade, idêntica humildade ante a natureza, a mesma fé no instinto. Pancetti é porém mais melancólico, descambando por vezes para o patético. Como escreveu Rubem Navarra, "os mundos e os seres do marinheiro vivem arfando sob esse peso de uma implacável e soturna contemplação. Uma tristeza terrível, como um entardecer numa prisão ou num hospício, apodera-se desse olhar quase alienado de tão romântico. Pintor das almas humildes e trágicas, a obra de Pancetti pode se fixar em estados culminantes como o famoso Homem Louco, onde o pintor evoca sem querer o patético dos grandes expressionistas". Para o grande crítico, o artista de quem Pancetti mais se avizinha em tais momentos é Segall, já que um e outro pintavam para extravasar o sentimento do mundo.
Cézanne e sobretudo Van Gogh chegaram a impressioná-lo em dado momento, influência que repercute em várias naturezas-mortas e nos auto-retratos. É que Pancetti, como o célebre pintor holandês, concebia a pintura como experiência vital, não fazendo diferença entre sua vivência humana e sua arte. Influência mais palpável exerceria contudo Lechowski, artista polonês que passou no Brasil os 15 anos finais de sua vida. Pancetti nunca deixou aliás de reconhecer quanto devia a Lechowski, e como discípulo de Lechowski é que se apresenta no Salão de 1937.
Fracamente influenciado (haveria talvez a fazer ainda uma referência à influência recíproca que em dado instante exerceram entre si Pancetti, Dacosta e Bustamente Sá, a ponto de pintarem a três mãos), buscando a duras penas o caminho da própria pintura, Pancetti não pode ser enquadrado a rigor numa dada tendência: é, na verdade, o grande solitário da pintura brasileira, romântico e expressionista, preso indelevelmente à alusão ao mundo exterior mas - ainda assim - evocando a natureza em esquemas tão puros, tão despojados, que quase tocam a abstração.
Caracteristicas gerais. Mesmo sem se subordinar a qualquer esquema rígido, Pancetti obedece às leis da perspectiva aérea e linear; essa, a partir da fase iniciada em 1945 em Itanhaém, é obtida com auxílio de uma linha em ziguezague que atravessa de um canto a outro o espaço pictórico. Tal linha ocorre amiúde nos quadros de Pancetti sob a aparência de fímbria de mar, curso de rio ou bordos de lagoa, estrada ou caminho, sendo inclusive uma de suas características mais constantes. No que tange à perspectiva, Pancettti nada tem por conseguinte de um inovador, antes sendo um continuador da tradição.
Pancetti não desenha o detalhe, contentando-se com esboçar, em traços incisivos, o essencial de cada forma. A anatomia de suas figuras é sumária: o artista busca a síntese, evitando minúcias. Sempre no que respeita ao desenho, nele predomina a linha angulosa, quebrada em arestas. Quanto à cor, Pancetti subordina-se à natural, igual, nisso também, aos pleinairistes desde o Séc. XIX.
Pancetti modela as formas com auxílio dos contrastes entre luz e sombras, obtendo bons efeitos plásticos. Mas não raro as sombras se reduzem ao mínimo, com sacrifício da volumetria: para os fins da carreira, as formas de figuras humanas e de certas naturezas-mortas tornam-se achatadas.
Recurso também tradicional de que fez uso foi a ilusão da matéria, muito nítida em começos de sua carreira, e que para o fim vai-se atenuando. Quanto à composição, um dos esquemas mais empregados é aquele em que a superfície pictórica é dividida em duas partes desiguais por uma reta, aqui e ali quebrada em ângulos. Na pintura de figuras ocorre um expediente que evoca Van Gogh: a figura ocupa o plano principal, recortando-se contra um fundo dividido em campos cromáticos delimitados também por linhas retas. Há ainda que realçar alguns cortes, quase fotográficos, que ocorrem, com freqüência, em paisagens, marinhas e mesmo naturezas-mortas.
Evolução Estilística. Na evolução estilística de Pancetti, podemos distinguir três fases: de aprendizagem, desde 1925 pouco mais ou menos até 1941, de maturidade, entre 1941 e 1950, e de declínio, a partir dessa última data. A fase de aprendizagem abarca ainda um período de iniciação até cerca de 1934, e outro de aperfeiçoamento, de então ao prêmio de viagem em 1941.
Desprezando-se as primeiras tentativas amadorísticas da década de 1920, pode-se dizer que a carreira de Pancetti começa verdadeiramente em 1932. O conhecimento com Lechowski é decisivo, e daria seus frutos cerca de dois anos depois, em obras nas quais é já possível surpreender uma execução mais segura, se bem que ainda pesada e algo desgraciosa. À medida que a década se aproxima do fim, Pancetti experimenta grandes progressos. À influência de Lechowski sucedem-se, por breves períodos, as de Cézanne, nas naturezas-mortas, e Van Gogh, nos retratos e auto-retratos; influências livrescas, que cedo se dissipariam.
Será a partir de 1943, em Campos do Jordão, que Pancetti vai encontrar seu estilo próprio. A doença, a solidão e o encontro com a natureza produzem no artista um forte impacto, responsável pelo surgimento de uma série de paisagens caracterizadas pela nota de profunda melancolia (série negra ou abissínia). Depois de Campos do Jordão, Pancetti está apto a se entregar a vôos ainda mais altos: São João del Rey e Itanhaém (1945), Mangaratiba (1946), Cabo Frio (1947), Arraial do Cabo (1948), novamente Campos do Jordão (1949).
Em agosto de 1950 Pancetti radicou-se em Salvador e começou a pintar. A princípio, sua arte ressentiu-se com a mudança atmosférica e com o excesso de luminosidade. Foi um momento de transição, durante o qual a visão do artista buscou adaptar-se às novas condições, nem sempre com êxito. Mas a partir de 1952 Pancetti readquiria a plenitude de seus recursos e passava a retratar, com a mesma intensidade poética de antes, o litoral baiano de Mont-Serrat a Areia Branca, do Farol da Barra a Itapoã e do Rio Vermelho à Lagoa do Abaeté, a Mar Grande, a Amaralina. Com o breve intervalo de 1955 (fase de Saquarema), a fase baiana prosseguiria até o fim da vida, com altos e baixos. Na verdade, após Saquarema a mensagem de Pancetti parece esgotada: o artista repete, com maior ou menor felicidade, o que já antes dissera melhor. Itapoã, em 1957, é o termo final de sua carreira, e a despeito do cromatismo renovado, os quadros então produzidos ressentem-se de maior emoção. Mesmo assim seria injusto não destacar algumas obras da série Lavadeiras do Abaeté, com sua invenção formal, seus cortes originais, sua luminosidade.
Influência. A rigor, Pancetti não teve discípulos, herdeiros ou continuadores. A todo grande artista, porém, cedo ou tarde irá corresponder outro, menor (seu diminutivo, no dizer de Claude Roger-Marx) capaz de lhe macaquear sem grandeza a linguagem. Pancetti também os teve, pintores cuja arte timidamente evoca seu estilo no que possui de mais exterior e superficial. Na verdade, toda uma série de artistas em atividade durante a década de 1940 e mesmo mais tarde imitou-o, não só na temática como no modo de a conceber e desenvolver.
Oficinas, óleo s/ tela,1940;
0,74 X 0,94, Museu Nacional de Belas Artes, RJ.
Mulheres e crianças, óleo s/ tela, 1944;
0,32 X 0,44, Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Marinha, óleo s/ tela, 1947;
0,46 X 0,65, Museus Castro Maya, RJ.
Primavera em Campos do Jordão, óleo s/ tela, 1949;
0,46 X 0,38, Palácio Bandeirantes, SP.
Igreja de Santo Antônio da Barra, Bahia, óleo s/ tela, 1951;
0,60 X 0,73, Museu Nacional de Belas Artes, RJ.
Saquarema, óleo s/ tela, 1955;
0,65 X 0,44, Palácio Bandeirantes, SP.
Em começos de 1883 é aluno livre da Academia Imperial na classe de Grimm; torna-se aluno regular no ano seguinte, mas em meados do ano deixa as aulas, passando a trabalhar com o cenógrafo Frederico de Barros, ao mesmo tempo em que freqüenta as sessões de ar livre na Praia da Boa Viagem, orientadas pelo paisagista alemão, ao lado de Castagneto, Caron, Vasquez e outros.
Data de 1886 sua primeira individual, na Casa De Wilde, do Rio de Janeiro. Gonzaga Duque, comentando-a, refere-se à sua "invencível predileção pelas cores pálidas, pelos aspectos tristonhos da natureza", à "pobreza de tons", à "geral monotonia de cor" de sua pintura. Na verdade, as pinturas que lhe nascem, naquele instante, acham-se ainda muito próximas das de Grimm.
A mostra foi de qualquer modo um sucesso, e a ela se sucederiam várias outras, alternadas a excursões à Serra da Estrela e a Cabo Frio (1886-87), das quais o artista retornava, sempre, com novos quadros, que vendia a preço razoável. Após uma individual efetuada no estúdio de Insley Pacheco em 1888, sentiu Parreiras a necessidade de ir aperfeiçoar-se na Europa, fixando-se pouco depois em Veneza, como discípulo de Filippo Carcano. Copiava, sem entusiasmo, a natureza, num trabalho mecânico que não o satisfazia, quando certo dia, trabalhando ao ar livre já em começos do inverno, percebe a impossível tarefa que seria reproduzir, em minúcias, o imponente conjunto das formas em mutação, envoltas em neblina. Esquecendo-se de tudo quanto lhe haviam ensinado, entrega-se à pintura guiado apenas pelo instinto, espremendo os tubos de tinta na superfície da palheta:
- Quanto tempo se passou não sei. A tela estava literalmente cheia. Borrão informe, áspero, pastoso, rugoso de perto. De longe, porém, tudo se envolvia em tinta cinzenta, bastante transparente para, através dela, se sentir vibrando o tom local. Tudo em redor de mim se apagava dentro de um ambiente vaporoso... Tudo sem contornos... apenas "massas". Então vi na minha tela a visão daquela natureza. Desde este dia, deixei de copiar para interpretar; e, para sempre, me separei de Grimm...
Cerca de dois anos permaneceu na Europa, efetuando ao regressar, em 1890, duas mostras de impacto. No fim do mesmo ano é nomeado professor de Paisagem da Escola Nacional de Belas Artes, cargo que cedo abandona, revoltado com as exonerações injustas, pelo novo regime republicano, de Vítor Meireles e Pedro Américo, identificados com o antigo regime imperial. A partir de então a atividade de Parreiras desdobrar-se-ia entre o trabalho no campo ou em freqüentes excursões a Friburgo, Teresópolis, Barra Mansa e Barão de Javari, de novo entregue "à vida livre de errante paisagista, da qual jamais devera ter saído", e as exposições, as encomendas de pinturas históricas (que o levam do Rio Grande do Sul à Amazônia), e, entre 1906 e 1919, permanências mais ou menos longas em Paris, onde mantém ateliê e expõe com sucesso nos Salons. Sertanejas, de 1896, é a síntese de diversos estudos realizados nas matas de Teresópolis; quase dez anos mais tarde conclui seu primeiro quadro histórico, A Conquista do Amazonas, encomendado pelo Estado do Pará (1907). Esse trabalho, executado em Niterói a partir de estudos feitos do natural e mais tarde desenvolvidos em Paris, conheceu enorme êxito, e abriu para o artista caminho para diversas outras encomendas do gênero.
Foi em Paris, também em 1907, que Parreiras expôs seu primeiro nu - Fantasia, mostrado no Salon, ao qual se seguiriam Frineia, exposto em 1909, Dolorida (1911), Flor Brasileira (1913), Nonchalance (1914) e Modelo em Repouso (1920). Tais nus grangearam-lhe em França sólida reputação, a ponto de o artista poder dizer:
- Na Europa, ninguém me conhece senão como pintor de nu.
Os nus de Parreiras, a despeito das críticas acerbas que despertaram, são visões opulentas de formas femininas ao abandono de sofás e divãs, em atitudes lânguidas ou lascivas muito ao gosto do 1900. Dolorida impõe-se pelo elegante desenho, de um linearismo que compõe gracioso arabesco nos contornos da jovem mulher, de braço frouxamente distendido; já Flor Brasileira ou Modelo em Repouso interessam mais pela atmosfera intensamente poética, e pelo admirável jogo de cores e texturas.
Menos interesse possui sua pintura histórica. O artista chegara a conceber um verdadeiro painel visual da História do Brasil, do qual só iria executar uns poucos episódios: Felipe dos Santos (para Minas Gerais), Frei Miguelinho (Rio Grande do Norte), Morte de Fernão Dias (São Paulo), Anchieta (Espírito Santo), Prisão de Tiradentes (Rio Grande do Sul), Independência da Bahia (Bahia), Fundação de Niterói (Estado do Rio), Morte de Mem de Sá (Rio de Janeiro), etc. Não sem orgulho, pôde escrever Parreiras em seu livro de memórias:
- Dos artistas brasileiros até o presente, fui eu quem maior número de quadros históricos executou. Eles deviam constituir um pequeno compêndio da História do Brasil, conforme aconselhou o meu grande amigo Rocha Pombo, quando lhe mostrei os definitivos croquis dos quadros históricos que tinha executado, tal o rigor da documentação que neles encontrou. Infelizmente até hoje não me foi possível seguir o conselho do eminente historiador brasileiro.
Mas foi justamente esse "rigor de documentação" que tirou, às pinturas históricas de Parreiras, toda espontaneidade: nunca foi melhor artista, o autor de Sertanejas, do que quando se entregava instintivamente a evocar um trecho qualquer da natureza, sem preocupações outras que não de ordem pictórica; nem nunca pareceu mais artificial do que quando compunha suas enormes máquinas, nas quais tudo parece emperrado e morto.
Em 1919, casado em segundas núpcias com Lucienne Martigné, Parreiras retornou em definitivo ao Brasil. Abre-se então para ele uma fase de triunfos e honrarias, de que são marcos a grande medalha de ouro e a medalha de honra da Exposição Geral de Belas Artes, respectivamente em 1918 e 1923, a eleição, por 19.827 votos, como o mais famoso pintor brasileiro, em concurso promovido em 1925 por Fon-Fon, e a medalha de ouro na Exposição Ibero-Americana de Barcelona, em 1929. Rico, célebre, autor de enorme obra ("Calculo, pelo que pude verificar nos catálogos dessas exposições, em 850 as telas por mim pintadas, sendo destas, 720 executadas no Brasil"), tendo publicado, em 1926, sua autobiografia (História de um pintor contada por ele mesmo), e experimentado, no ano seguinte, a estranha emoção de inaugurar o próprio busto em bronze, em Niterói, Antonio Parreiras faleceu a 17 de outubro de 1937, na sua casa-ateliê da Rua Tiradentes, a qual, quatro anos mais tarde, seria transformada no Museu Antônio Parreiras.
Estilisticamente, a carreira de Parreiras evoluiu da cópia para a recriação e a interpretação da natureza. A crítica de começos do século chamou-o, com imprecisão, de impressionista, o que não era. Após a permanência italiana, parece-nos nítida certa influência dos Macchiajoli, e de Fattori em especial, visível por exemplo em Carnaval na Roça e sobretudo em Fim de Romance. Mas Parreiras quase sempre permaneceu imune a impactos de outros artistas, chegando a dominar uma linguagem pessoal, que submetia perfeitamente às suas necessidades.
Foi bom colorista e não menor desenhista, passando, sua palheta, das "cores pálidas" de fins do Séc. XIX às mais veementes de suas obras mais típicas, nas quais, por sua vez, a fatura se impõe com força quase expressionista. Um dionisíaco, nunca um apolíneo, Parreiras descambou por vezes para um nível bastante discreto de execução, sobretudo após 1927, quando a idade começava a se fazer sentir. Em seus melhores momentos, porém, o que produziu sustenta o confronto com o que nos legaram de mais notável nossos mais importantes paisagistas, como também não fazem má figura seus nus femininos.
Não foi a rigor professor, embora tenha iniciado na Escola de Ar Livre que fundou enquanto lecionava na Academia, em 1890, alguns pintores, como Manuel Madruga. Seu filho Dakir Parreiras (1893-1967) e seu sobrinho Edgard Parreiras (1885-1964), paisagistas, imitaram-lhe o estilo.
Canto de praia, óleo s/ tela, 1886;
0,55 X 1,00, Museu Nacional de Belas Artes, RJ.
Canto de praia, óleo s/ tela, 1886;
0,55 X 1,00, Museu Nacional de Belas Artes, RJ.
Baía Cabrália, óleo s/ tela, 1900;
1,20 X 0,84, Pinacoteca do Estado de São Paulo.
São Domingos, óleo s/ tela, 1902.
Fantasia, óleo s/ tela, 1909;
0,89 X 1,46, Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Em 1883 travou conhecimento com Almeida Júnior, que aliás o retratou em pelo menos duas ocasiões: no personagem ajoelhado de Caipiras Negaceando, e na figura do santo, na Conversão de Paulo. E foi Almeida Júnior quem certo dia lhe teria aconselhado, observando uma natureza-morta por ele pintada:
- Não pinta senão isso: é a tua arte.
Conselho, diga-se de passagem, que talvez tenha matado no nascedouro um bom paisagista, a se deduzir de algumas paisagens de Pedro Alexandrino conservadas na Pinacoteca de São Paulo e em algumas coleções particulares, paisagens que revelam um lirismo e uma liberdade que em vão se procuraria nas naturezas-mortas.
Entre Almeida Júnior e Pedro Alexandrino, imediatamente, estabeleceu-se um clima de compreensão e mútuo respeito. No ocaso da vida, Alexandrino confessava ainda, humildemente, a quantos quisessem ouví-lo:
- Tudo o que sei da minha arte, devo a Almeida Júnior.
Em 1887, com bolsa do Governo de São Paulo, Pedro Alexandrino está matriculado na Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro, que cursará até 1893 como aluno de José Maria de Medeiros e Zeferino da Costa, entre outros. Na Exposição Geral de 1894 recebe medalha de ouro de 3ª classe, só voltando a ser contemplado nesse certame em 1922, com a grande medalha de ouro, e em 1939, com a medalha de honra.
De novo em São Paulo tão logo concluído o curso no Rio, Pedro Alexandrino retoma seus estudos com Almeida Júnior. Conhece, por essa época, Antônio Parreiras, que ao admirar uma natureza-morta em casa de Dona Viridiana Prado, publica na imprensa paulista um artiguete em que afirmava:
- Declaro que em natureza-morta ainda não vi coisa melhor pintada no Brasil, e que este quadro encerra enorme promessa para um futuro de glórias, aliás não muito remoto, se os paulistas auxiliarem o meu distinto colega. Pedro Alexandrino necessita ir ver os quadros dos grandes mestres, necessita ir à Europa, faltando-lhe para isto os meios, o que em geral acontece a todo aquele que se dedica às artes no Brasil.
A opinião do grande paisagista calou fundo e já em 1896, com pensão do Governo de São Paulo, Pedro Alexandrino seguia para a Europa, em companhia de Almeida Júnior. De 1897 a 1905 demorou-se o artista em Paris, estudando no Ateliê Cormon com Renê Chrétien e Antoine Vollon, e tomando também lições com Lauri e Monroy. Chrétien (que o retratou) e sobretudo Vollon muito o marcaram. Com Vollon, foi que Pedro Alexandrino aprendeu os segredos do difícil gênero que escolhera, captando algo da poesia que o grande pintor francês tão bem sabia imprimir a seus quadros.
Durante sua estada em Paris Pedro Alexandrino tornou-se bastante conhecido nos meios artísticos, tendo exposto nos Salons de 1899, 1900, 1901, 1903 e 1907 com êxito. Além disso lecionava, e vendia relativamente bem. O Barão de Rotschild chegou a convidá-lo a se transferir para os Estados Unidos, o que recusou por achar chegada a hora de retornar ao Brasil.
No mesmo ano do regresso, 1905, expõe no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo 110 obras, entre as quais 84 naturezas-mortas. Venceslau de Queiroz, que visitou a exposição, assim descreve o pintor:
- Alexandrino lá estava, radiante de alegria, se tal manifestação se pode dar em um homem como ele, que sempre se vestiu de preto (longa sobrecasaca e calças pretas), e trazia inalteravelmente um rosto de poucos amigos, máscara dura e nada expressiva de caboclo desconfiado. Nesse tempo devia contar o pintor paulista mais de 30 anos. Negros cabelos untuosos e corredios, olhos pardos escuros e pestanudos, pele morena, barba preta e rala, estatura meã, eis os traços característicos de seu tipo físico, que jamais fazia esquecer o seu lídimo creoulismo de origem.
De então por diante, não deixou mais Pedro Alexandrino de produzir naturezas-mortas, que encontraram enorme acolhida entre críticos e colecionadores, a ponto de em certo momento a sua quantidade se ter tornado alarmante com o conseqüente declínio na qualidade. A essa atividade pictórica alternava Pedro Alexandrino seu trabalho de professor, por seu ateliê tendo passado, entre tantos outros, Tarsila e Bonadei, Lucilia Fraga e Alice Gonçalves. As duas últimas foram decerto as que mais lhe assimilaram a maneira, a ponto de seus melhores quadros serem por vezes confundidos com os do mestre.
À medida em que avançava em anos Alexandrino via-se reconhecido: em 1910 ganhou o título de Oficial da Academia de Belas Artes de França, e em 1936 o de Comendador da Ordem da Coroa da Itália. Sua arte, contudo, manteve-se praticamente estacionária, e por volta de 1927 dela podia Angyone Costa escrever, com ironia:
- De Pedro Alexandrino, o mais justo conceito que a sua arte pode inspirar à nossa crítica, é que a sua fábrica de artefatos, tachos e metais se mantém a mais ativa e perfeita da pintura nacional. As suas naturezas-mortas continuam a dar bons preços no mercado embora o mestre já se haja habituado a truques normais para conseguir determinados efeitos, especialmente quanto pinta metais.
Pedro Alexandrino foi talvez o melhor pintor brasileiro de naturezas-mortas, dono de técnica esmerada. Tendo bebido a Vollon o melhor da tradição francesa, remontável a Chardin, sua arte caracterizava-se por acentuado amor a formas, cores e texturas opulentas de objetos inanimados, que retrataria com fidelidade e, em seus melhores momentos, não sem emoção. Nada possui, é fato, de um inovador: acha-se próximo de um Joseph Bail, não de um Cézanne. Mas é artista de extrema probidade, e em certas obras deu vazas a acentuado sentimento poético, que se traduz em sutis diálogos entres formas e cores, planos e volumes. Flores, frutas, animais mortos, vasos e copos de cristal e chaleiras de cobre, porcelanas orientais, têxteis, talheres de prata, peixes, pães e fatias de queijo protegidas sob campânulas absolutamente imateriais constituem o seu mundo de idéias e o seu arsenal de formas. Nunca entendeu, e jamais aceitou a chamada arte moderna - "importada da Rússia", como declarou certa vez numa entrevista; mas louvem-se-lhe, como o fez Monteiro Lobato em artigo de 1918, seu "ódio a tudo que é falso, charlatenesco, kyrialesco, idiota, cúbico ou futurístico, e o seu amor à verdade e à sinceridade".
Aspargos, óleo s/ tela, s/ data;
1,00 X 1,37, Pinacoteca do Estado de São Paulo
Frutas e flores, óleo s/ tela, s/ data;
0,69 X 1,24, Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Cozinha na roça, óleo s/ tela, 1894;
1,31 X 1,10, Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Peru depenado, óleo s/ tela, cerca de 1903;
1,64 X 1,31, Pinacoteca do Estado de São Paulo.
- No dia da minha chegada ao Brasil, 5 de julho de 1929, descendo em Santos, ao nascer do dia, o céu tinha uma cor tão estranha e exagerada que bem podia ser o fundo de um dos meus quadros - O Fim do Mundo - e eu fiquei chocado com o vermelho fogo e o amarelo berrante. Nunca mais voltei a ver em 44 anos de vida brasileira outro céu tão agressivo e espantoso.
Tal cenário parecia preludiar dias difíceis para o jovem italiano - e foi o que de fato ocorreu. É ainda o artista quem diz:
- Os primeiros anos de vida paulista foram em verdade um tanto semelhantes ao céu do dia de minha chegada. Não tinha possibilidade de sobreviver através da arte, somente podia levar uma vida miserável, adaptando-me aos mais humildes trabalhos que por piedade ia pedindo às pessoas que conhecia ou simpatizava. São Paulo estava em uma crise espantosa, eu considerado como um futurista, as mil tentativas com a pintura e o desenho resultaram quase que somente em fracassos - só mais tarde quando fatalmente me tornei açougueiro, pude então pintar durante a noite meus primeiros quadros representando as várias fases da vida de Jesus e cenas da vida de São Francisco.
Foi efetivamente num açougue, desenhando em ásperos papéis de embrulho que o encontrou em 1932 o escultor Emendabili o qual, impressionado com a qualidade dos desenhos, convidou-o a compartilhar o seu ateliê, do que nasceu uma cooperação que durou alguns anos. A partir de então, Pennacchi, levando embora uma vida modesta, dispôs de mais tranqüilidade para a criação de sua obra pictórica, travando paralelamente conhecimento com pessoas influentes, que iriam tornar-se seus primeiros clientes.
Em 1935, expondo no Salão Paulista de Belas Artes, Pennacchi foi apresentado a Rebolo Gonsales, que assim evocaria o encontro, anos depois:
- Penacchi falou sobre meu quadro com tanta poesia e conhecimento sobre pintura que eu pensei: "estou diante de um mestre". E não me enganei. Ficamos amigos inseparáveis e convidei-o a associar-se comigo, para trabalharmos juntos no ateliê que eu tinha alugado no Santa Helena. No final de 35, participamos de uma exposição de miniquadros no Palácio das Arcadas e tivemos trabalhos nossos comprados pelo Professor Piccolo. Foi uma festa. Fazia apenas um ano que eu tinha abandonado o futebol e evidentemente desconhecia muita coisa sobre pintura. Pennacchi ensinou-me então, até sobre arquitetura, pois ele tinha um aprendizado muito bom, feito na Itália, e pintava há muitos anos, desde antes de 1930.
Tais frases de Rebolo colocam em pauta um problema importante, e bem pouco enfocado: o papel destacado que Penacchi desempenhou entre os componentes do Grupo do Santa Helena, no que respeita à técnica, à cozinha pictórica, em que era mestre.
O ano de 1936 seria de muitos sucessos: o pintor não apenas conquista medalhas de prata, no Salão Nacional e no Salão Paulista de Belas Artes, como inicia uma série de murais decorativos em residências paulistas; além do que, ilustra um livro de poemas de Jorge de Lima - O anjo - e passa a lecionar Desenho no prestigioso Colégio Dante Alighieri, onde viria a ser, anos mais tarde, professor de uma jovem com a qual se casaria, Philomena Matarazzo, filha do riquíssimo Conde Attilio Matarazzo. Outros murais surgiriam em 1937 e 1938, respectivamente na capela da fazenda de Agostinho Prado (aliás totalmente idealizada e projetada por Penacchi, que também executou para a mesma uma Via Sacra em terracota, mais os altares e os vitrais), e no salão de entrada de A Gazeta - uma síntese visual da evolução da Imprensa.
Todos os murais realizados até 1939 eram feitos a óleo; a partir de então foi empregada exclusivamente a velha técnica do afresco, tendo servido de marco inicial da série uma Última Ceia pintada, naquele ano, na residência do Dr. Carlos Bott. Entre muitas outras igrejas e locais públicos que receberam decorações murais em afrescos de autoria de Pennacchi, citem-se a Igreja e o Convento de Nossa Senhora da Paz (1942), o Hotel Toriba, de Campos do Jordão (1943), a Catedral de Uruguaiana, no Rio Grande do Sul (1945), a Capela do Hospital das Clínicas (1947), a Capela da Vila São Francisco, em Osasco (1948), o Banco Auxiliar de São Paulo e o Hotel Príncipe (1954), a Igreja do Orfanato Cristóvão Colombo (1955), a Liga das Senhoras Católicas (1957) e a Igreja de Nossa Senhora Auxiliadora (1959).
Com referência aliás ao afresco do Hotel Toriba, de 1943, cumpre destacar que foi em tais decorações que apareceu pela primeira vez a temática folclórica na pintura de Pennacchi. No ano seguinte, ao realizar sua primeira individual, na Galeria Ita, ao lado das já conhecidas cenas religiosas de sabor tão peninsular ocorrem algumas telas de ambientação brasileira e interiorana, na forma de vistas urbanas com personagens e de paisagens rurais. Tais paisagens ressurgem quando da individual do artista em Buenos Aires, em 1945, e são já uma espécie de marca registrada quando da realização da última exposição da Família Artística Paulista - no Rio de Janeiro, em 1949 -, delas dizendo, no prefácio do catálogo, o crítico Ciro Mendes:
- Com Fulvio Pennacchi encontramos de novo essa fome de Brasil que periodicamente empolga alguns dos nossos artistas. Cenas folclóricas do interior, a que não faltam o pitoresco e o humano, gradualmente dominados pela sensibilidade fortemente meridional do pintor italiano.
Mais ou menos a partir de 1945, sentindo-se marginalizado e esquecido, Pennacchi isola-se em seu ateliê, ao mesmo tempo em que, em total desacordo com os rumos tomados pela arte moderna e com a organização das exposições de arte, decide não mais enviar obras para esses certames. Ele mesmo diria:
- No período de 1945 a 1962 fiquei completamente isolado e nunca fui convidado a tomar parte em qualquer mostra de arte. Participei somente da I Bienal - dos meus três trabalhos, somente um foi aceito - e depois não tentei mais participar. Depois de vários anos, em 1969 mandei trabalhos para o I Salão de Arte Contemporânea, mas o ilustre júri Flexor - Flávio - Nicolas os cortaram, ficando eu assim definitivamente fora de qualquer movimento artístico. Na minha solidão, continuei a ser eu - continuei a pintar - e com exceção de murais, pássaros e cinzeiros nada mais me era possível vender. Quadros somente ao dono da antiga Galeria Ita - Beneteau que comprava meus quadros a preço de artesão e os vendia a estrangeiros, considerando-me sempre o pintor que melhor retratava o Brasil.
De 1950 em diante, certamente para tentar romper tal isolamento, Pennacchi passou a se dedicar com crescente interesse à cerâmica, executando numerosas Vias Crucis, presépios, imagens, figuras, pássaros, galos e mesmo objetos utilitários, assim explicando a gênese desse novo meio expressivo:
- A cerâmica nasceu de algumas experiências feitas por iniciativa de Paulo Rossi Osir e, apoiado pela inteligente amabilidade do industrial Cândido Cerqueira Leite, pude utilizar os fornos de sua fábrica, e nesses fornos de 1.300°, milagrosamente realizei obras muito interessantes. Como agradecimento pelo seu incansável apoio, executei em 1951 um grande mural afresco na sua residência em Mauá, tendo como base a Festa de São João, com alguma ajuda de Mário Zanini e do Rossi. Este mural é, sem dúvida, a minha maior e mais espontânea realização referente ao folclore brasileiro.
Depois de 1960, quando, atendendo a um convite da Galeria Atrium, realizou uma série de cartões de Natal, Pennacchi começou a fazer, com facilidade assustadoramente crescente, miniaturas de quadros que, se por um lado serviram para recolocar seu nome no circuito das artes, por outro terminaram por prejudicá-lo, na medida em que lhe minimizaram o estilo, não passando, derradeiras, de simples exercícios destituídos de maior interesse artístico, fruto da habilidade e não mais da emoção. Certamente não há de ser por esses poucos centímetros quadrados de tela colorida que Pennacchi interessa à nossa História da Arte, mas sim pelos grandes afrescos de tema sacro, que se estribam num sentimento religioso autêntico, e por certas pinturas de cavalete marcadas pela originalidade.
Foi na retrospectiva que lhe consagrou em 1973 o Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand que Pennacchi ressurgiu como um dos valores da arte paulista e brasileira modernas. Ali patenteou-se sua nota pessoal, quase monótona de tão típica, e sobretudo foi possível ver o lento e gradativo abrasileiramento de sua pintura, desde as primeiras obras produzidas no Brasil - ainda tão fundamente marcadas pelo Renascimento Italiano -, às suas inconfundíveis cidadezinhas interioranas, com moleques e comadres nas praças, aos retirantes, aos festejos populares, aos plantadores e aos colhedores, operários e camponeses - tudo isso pintado de modo despretensioso, simplório quase, figurinhas ingênuas que povoam seus quadros. Pois afinal, é Pennacchi ele próprio quem nos esclarece:
- Eu adoro figuras, principalmente se retratam homens do campo, nossos caboclos, essa gente simples e ingênua, eles movimentam cada tela, acho mesmo que o lado humano é básico na arte. Eu me considero um pintor que atinge a vida humilde que vejo lá fora e rodeia as cidades. Detesto os granfinos, quando os retrato é humoristicamente. Nesse ponto me aproximo dos primitivos - tudo que é humano e pitoresco me interessa...
Paisagem com figuras, óleo s/ tela, 1941;
0,52 X 0,72, Museu de Arte Contemporânea da USP.
- Outro, o Sr. Oscar Pereira da Silva (também aluno antigo) só compareceu na primeira semana de trabalho, fazendo apenas um estudo!
Mesmo assim conquistou, durante o curso, importantes premiações, e inclusive, no exato ano da queixa de Zeferino, o prêmio de viagem à Europa, último concedido no Império. Partindo pouco depois para a França, tornou-se aluno, em Paris, de Leon Gêrome e de Leon Bonnat - que iria marcá-lo, a ponto de Infância de Giotto, do brasileiro, repetir uma das composições mais conhecidas do francês. Durante a permanência em Paris Oscar fez cópias (inclusive do Naufrágio do "Medusa", de Géricault), e pintou alguns de seus melhores óleos, como Sansão e Dalila (1893), a já citada Infância de Giotto (1895), Escrava Romana (1895) e Criação da Vovó (1895), que lhe valeria a grande medalha de prata na Exposição de Saint Louis, em 1904. Em 1896 achava-se novamente no Rio, pouco depois expondo 33 obras feitas na Europa, numa dependência da antiga Academia. Essa exposição foi mal recebida, e a Revista Brasileira assim se externou sobre o pintor:
- A obra do Sr. Pereira da Silva não revela por ora nenhuma qualidade notável, sendo principalmente desigual e incaracterística.
Fixando-se no mesmo ano de 1896 em São Paulo, 0scar passou a se dedicar ao magistério, primeiro no Liceu de Artes e Ofícios e depois no Ginásio Estadual. E foi com um colega do Ginásio, José Cândido de Sousa, que fundou o Núcleo Artístico, do qual se originaria a atual Escola de Belas Artes de São Paulo. Em 1898 já expunha em São Paulo, primeiro no Banco União de São Paulo, e em dezembro no Banco Construtor. Daí até o fim da vida desincumbiu-se em São Paulo de importantes comissões, como a decoração do Teatro Municipal e diversos painéis religiosos para as igrejas de Nossa Senhora da Conceição e de Santa Cecília. Foi também em São Paulo que se lançou à tarefa de recriar, em grandes composições, os principais episódios da História Nacional, como Desembarque de Cabral em Porto Seguro, A Fundação de São Paulo, Sessão das Cortes de Lisboa em 9 de Maio de 1822, etc.
O governo do Estado, cioso de sua contribuição à vida cultural de São Paulo, recompensou-o em vários ensejos, inclusive propiciando-lhe algumas viagens à Europa. Numa delas, em 1925, encontrou-o numa obscura academia de Montparnasse o então muito jovem pintor Tulio Mugnaini, a quem singelamente explicou o motivo de sua presença naquele lugar:
- Vim estudar um pouco.
Oscar, que na ocasião se abeirava dos 60 anos, sentia-se ainda capaz de aprender, e assim não perdia a ocasião de praticar um pouco de desenho, dando aos mais novos uma lição de humildade, ele que em 1905 ganhara a medalha de ouro na I Exposição de Animais do Estado de São Paulo e em 1908 o grande prêmio da Exposição Comemorativa da Abertura dos Portos.
0scar Pereira da Silva foi de certo modo o último representante de uma geração diretamente nutrida nos ensinamentos da Academia Imperial, através dos sucessores de Debret e Taunay. Cultivou, em data relativamente tardia, assuntos bíblicos ou históricos já então desleixados pela maioria dos nossos pintores, e o fez com perfeição de desenho, minúcia arqueológica e aquela mesma frieza que se observa, por exemplo, na obra de um de seus principais mentores, Zeferino da Costa. Por seu temperamento-, oscilaria a vida inteira entre o romantismo e o naturalismo. Se é fato que sua pintura, como um todo, carece de maior emoção ou simpatia humana (Gonzaga Duque já em 1907 se referia à sua frieza, ressalvando-lhe sem embargo a correção do desenho), não é menos verdadeiro que em certas obras o artista se impôs nitidamente ao artesão. Isso ocorre quer em grandes quadros, como a Infância de Giotto ou a Criação da Vovó, como principalmente em obras menores, não tão severamente policiadas pela estética oficial. Suas pinturas de conotação histórica como Salomé, Lídia, mesmo a Escrava Romana, parecem ser as que envelheceram mais rapidamente; as reconstituições da História do Brasil impressionam pela composição, pelo cuidado desenho e pelo colorido, às vezes bastante feliz, mas não têm o dom de comover; quanto às incontáveis Cabeças de Ancião, às poucas paisagens, às cenas de gênero do tipo Raccomodeur de Faiences, às naturezas-mortas e às alegorias como O Sonho de Beethoven, sem falar nos retratos, nas cenas de ateliê e nos interiores à Luiz XV, formam uma galeria imensa mas de valor desigual. Paradoxalmente, em certas aquarelas realizadas já quase ao fim da vida o velho artista como que se revitaliza, dando então provas de uma frescura de execução e de uma leveza de toque que em vão procuraremos nas grandes pinturas que lhe deram fama.
D. Pedro I a bordo da fragata União, óleo s/ tela, s/ data;
0,49 X 0,44, Museu Paulista da USP.
Hora da música, óleo s/ tela, 1901;
0,65 X 0,50, Pinacoteca do Estado de São Paulo
Desembarque de Cabral em Porto Seguro em 1500, óleo s/ tela, 1922;
3,33 X 1,90, Museu Paulista da USP.
Aclamação de Amador Bueno, óleo s/ tela, 1930;
1,71 X 2,27, Palácio Bandeirantes, SP.
Peticov tem realizado desde 1969 freqüentes viagens à Europa e aos Estados Unidos. Sua arte, após atravessar uma fase de rigorosa construção geométrica, orientou-se posteriormente para a evocação de "paisagens imaginárias a que adiciona estruturas formais que recordam ilustrações da ciência-ficção" (Walter Zanini). Um dos temas recorrentes de sua pintura, em dada época, foram portas que se abriam para espaços irreais, "onde as cores se relacionam livremente, de modo lúdico e, ao mesmo tempo, cheio de significados esotéricos", como observou o crítico Pedro Manuel. Esotérico, aliás, parece um termo bem adequado para definir o universo plástico de Peticov, como bem percebeu já em 1981 o crítico italiano Umberto Quintavalle, ao lhe apresentar uma individual na Galeria del Naviglio em Milão:
- O universo de Peticov vem direto da mesma harmonia secreta que tem impregnado os artistas misticamente inquietos através dos séculos. Os números de Fibonacci, a Seção Áurea, o relato cromático do espectro, dão rigor arquitetônico ao seu mundo e fazem respirar cada aspecto dele, com aquela respiração cósmica que se revela como o que parece estático e na realidade está pleno de movimento, como o que parece frio e silencioso, e na realidade está pleno de significado e amor, e que sugere que cada aspecto do mundo que o circunda é potencialmente, contanto que o saibamos guardar de um modo apropriado, uma porta para o infinito.
As sete vitalidades da criação, acrílica s/ tela, 1973;
1,00 X 1,20, coleção particular.
Em 1918 transfere-se definitivamente para o Rio de Janeiro, disposto a seguir sua vocação. Era tão pobre que dormia no banheiro de uma casa de cômodos e só se alimentava uma vez ao dia para poder freqüentar a Escola Nacional de Belas Artes, na qual estudaria desenho com Lucílio de Albuquerque (talvez o primeiro a lhe reconhecer e incentivar o talento), e pintura com Rodolfo Amoedo e Batista da Costa.
Por volta de 1920 compôs sua primeira pintura de importância: Baile na Roça, de dois por dois metros, vendida por 200 mil réis e não faz muito tempo reencontrada. Dois anos depois expôs pela primeira vez no Salão Nacional de Belas Artes um retrato, que passou desapercebido. Mas já no ano seguinte seu retrato do escultor Paulo Mazzuchelli lhe garantia a medalha de bronze e um prêmio de estímulo de 500 mil réis. A medalha de prata viria em 1925, e a grande medalha de prata em 1927. Comentando seu envio ao Salão de 1926, o crítico Flexa Ribeiro emitia os seguintes conceitos, que bem caracterizam seu estilo na época:
- No Sr. Cândido Portinari a elegância do desenho, o romantismo de outras eras sobrelevam as demais qualidades. É um jovem que ficou à margem da evolução pictural. Dir-se-ia um tradicionalista: mas sua fatura recebeu o influxo de certas modalidades da pintura moderna, onde também aquele sentimento predomina. E não é outra a razão que o levou a filiar-se a Zuloaga, mestre que sempre se conservou estranho às correntes que revolucionam a arte desde o Impressionismo. Sua sensibilidade fina leva-o a assimilar com facilidade as dominantes expressionais de certos artistas.
Flexa Ribeiro conclui suas observações com uma frase profética:
- Do seu sentimento, muito devemos esperar: alguma coisa da alma florentina tenta renascer nesse adolescente, que é, desde já, um espiritualista.
Em 1928, com o Retrato de Olegário Mariano, é-lhe afinal atribuído o prêmio de viagem ao estrangeiro. Portinari segue para a Europa e percorre França, Itália, Inglaterra e Espanha, observando muito e pouco produzindo. Em 1930 retorna ao Brasil, casado com a jovem uruguaia Maria Martinelli. Fixando-se de novo no Rio de Janeiro, começa a produzir furiosamente. Se, durante a permanência européia, somente executou três pequenas naturezas-mortas, agora chega a produzir até cinco pinturas por semana! O seu amor pela pintura era de tal modo absorvente, escreveu Manuel Bandeira, que - Portinari como Paolo Ucello séculos antes, preocupado com a perspectiva -, "muitas noites rolava insone na cama, ansioso por que despontasse a luz do dia para poder pintar".
O novo estilo pictórico de Portinari, em começos da década de 1930, é uma curiosa mistura de elementos quatrocentescos italianos (em especial de Piero della Francesca) e de reminiscências de pintores modernos, como Modigliani. O retrato domina então sua produção, lado a lado com algumas paisagens e naturezas-mortas. No Salão Revolucionário de 1931 tais obras começam a interessar vivamente à crítica e aos intelectuais, e toda uma clientela surge em torno ao jovem retratista, de estilo ao mesmo tempo clássico e renovador. O crítico Paulo Boneschi, de orientação conservadora, faz então a respeito do artista um reparo que o tempo felizmente se incumbiria de desmentir:
- Portinari pinta retratos bem desenhados e compostos, simples e sintéticos, executados com uma técnica moderna. Já alcançou o máximo de sua evolução artística, e dificilmente poderá fazer obras melhores que as pintadas até hoje.
Ao contrário, de 1932 a 1935 a obra de Portinari amadurece rapidamente, sob o influxo da pintura mexicana. É sob o peso dessa influência de Rivera, Orozco e Siqueiros que o artista brasileiro, debruçado sobre as memórias da infância em Brodósqui e perseguindo, como eles, a meta do nacionalismo artístico, começa a produzir uma série de obras marcantes, das quais a mais notável, Café, conquistará menção honrosa na exposição internacional de arte moderna efetuada pelo Instituto Carnegie de Pittsburgh, em 1935. Esse prêmio dado nos Estados Unidos a um pintor moderno brasileiro é, mais do que a consagração do artista, o triunfo da própria arte moderna no Brasil.
Os quadros executados entre 1932 e 1939 formam a série marrom de Portinari. São obras de ambiência brodosquiana, visões de favelas e morros do Rio de Janeiro e composições com trabalhadores do campo, marcadas, já, por um sentimento de calma monumentalidade que preludia o futuro muralista. Em 1936, com efeito, Portinari executa seu primeiro mural, para o Monumento Rodoviário, na Estrada Rio-São Paulo. No mesmo ano leciona pintura na Universidade do Distrito Federal, logo extinta. De 1937 a 1945 desenvolverá uma atividade inacreditável: pinta, então, os murais para o gabinete de espera e os aposentos do ministro no edifício-sede do Ministério da Educação, por encomenda de Gustavo Capanema; executa, para o Pavilhão do Brasil na Feira Mundial de Nova Iorque, três grandes murais (1939); expõe individualmente no Rio de Janeiro, em Washington e Detroit (1939-40), e para a biblioteca do Congresso da capital norte-americana realiza quatro murais; pinta as têmperas, mais tarde destruídas num incêndio, para a Rádio Tupi, do Rio de Janeiro, e outras, com temas bíblicos, para a Rádio Tupi de São Paulo; e ainda acha tempo para decorar a capelinha que mandara erguer junto à casa paterna, em Brodósqui, e a Igreja da Pampulha, em Belo Horizonte, e para pintar uma Via Sacra para a Catedral da capital mineira.
Uma incursão pela política torna-o candidato a deputado federal em 1945 e candidato a senador em 1947, por São Paulo, perdendo, nesse último ano, por exígua margem de votos. No intervalo, expõe na Galeria Charpentier, de Paris, e recebe a Legião de Honra do Governo francês, o qual também lhe adquire, para o Museu de Arte Moderna de Paris, uma tela da série Emigrantes.
Novos murais serão executados em 1948 (Primeira Missa no Brasil, Banco Boavista), 1949 (Tiradentes, para o Colégio de Cataguazes, hoje no Palácio dos Bandeirantes, em São Paulo), e 1952 (Chegada de Dom João VI, Salvador). Nesse mesmo ano dá início à execução de dois enormes painéis, Guerra e Paz, cada qual medindo 14 x 10 metros e executados a óleo sobre madeira. A obra, ofertada pelo governo brasileiro, é colocada em 1956 no edifício-sede da Organização das Nações Unidas, em Nova lorque.
Em 1950 Portinari realiza nova viagem à Europa, demorando-se na Itália e participando da Bienal de Veneza. Em 1953 decora a Igreja de Batatais, em São Pauto, e realiza grande exposição no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Recuperado, no ano seguinte, de uma primeira crise de saturnismo, realiza outro mural, O Descobrimento do Brasil, e nova Via Sacra para a mesma igreja de Batatais. Na III Bienal de São Paulo, em 1955, expõe os primeiros estudos dos murais Guerra e Paz.
Em 1956 vai a Israel, a convite do governo, realizando exposições em Tel Aviv e Haifa. Encantado com o país e seus habitantes, pinta inúmeras obras, nas quais avulta a nota lírica, a cor revelando-se então mais vívida, a composição resolvida em pinceladas destacadas, de conotação divisionista. No mesmo ano, por ocasião da inauguração dos seus painéis na ONU, recebe em Nova Iorque os prêmios Guggenheim e Hallmark Art.
Diversas outras individuais realizaria a partir de 1957 em Paris e Munique, Bolonha, Lima e Buenos Aires, Praga, Rio de Janeiro e São Paulo, enquanto em 1958 participava da Bienal Internacional do México (nela obtendo o Prêmio Ciudad de Mexico) e da grande exposição 50 Anos de Arte Moderna em Bruxelas e em 1959 ilustrava, para a Gallimard, a edição francesa de O poder e a glória de Graham Greene.
Viajando, em 1961, mais uma vez para a Europa, adoece gravemente em Paris, minado pelo chumbo que já o intoxicara havia alguns anos. Retornando ao Rio de Janeiro, ali faleceu a 6 de fevereiro de 1962, com 58 anos, pois nascera a 29 de dezembro de 1903: tinham-no vitimado as próprias cores a que devia toda a sua celebridade.
A evolução artística de Portinari pode ser reconstituída desde suas primeiras obras, que tanto devem a Zorn e Zuloaga, às últimas composições, de um cromatismo fragmentado reminiscente de Jacques Villon. Entre os dois extremos situam-se influências dos pré-renascentistas italianos e de Modigliani, De Chirico e outros mestres modernos; a fase marrom, marcada pelo muralismo mexicano; o encontro decisivo, em Nova lorque, com a obra-prima de Picasso, Guernica, que iria marcá-lo e de certo modo preludia tema e técnica do mural Guerra; em dado instante, quando mais acesa ia a luta no Brasil entre abstracionistas e figurativistas, curto namoro com a arte não-figurativista, tal como, alguns anos antes, já flertara, na série dos Espantalhos, com o Surrealismo.
Mas não se pense que Portinari era alguém à procura de um estilo: o artista possuiu seu estilo pessoal, embora tivesse sido permeável à grande arte do passado e à arte dos criadores de formas do Séc. XX. O desenho portinariano é, por exemplo, clássico, clássico no sentido de que o são Cézanne, ou Braque; desenho sólido e de um virtuose acabado, configurado em linhas ao mesmo tempo sensíveis e expressivas. Já no que respeita à cor, ora limitada a uns poucos contrastes entre pretos e brancos ora explosiva, atravessa todo um périplo até chegar aos tons claros e alegres dos retratos da netinha Denise, nascida em 1960.
Portinari deforma com violência, para expressar; e com freqüência atinge o dramático e o patético, como nos quadros da série Retirantes - em especial Enterro na Rede ou Menino Morto, ambos de 1944. Em muitas de suas melhores obras de cavalete, e logicamente nos murais, atinge, sem esforço, a uma monumentalidade sóbria e plena de eloqüência. Certa geometrizaçào, o afastamento gradativo da atmosfera naturalista-romântica de obras anteriores manifestam-se a partir de 1947, primeiro no mural Primeira Missa no Brasil, marcado pela contenção formal e despido de qualquer arroubo romântico. Nesses momentos, Portinari combina os postulados racionalistas oriundos do Cubismo a seu inato Expressionismo, produzindo obras de grande apuro formal e fundo sentimento contido. Finalmente, as obras do último período, executadas durante a permanência em Israel, com seus tons amarelos, laranjas e violetas, e sobretudo as inspiradas pelo nascimento da netinha Denise são marcadas pelo lirismo: Portinari parece renovar-se, embora tecnicamente seja licito falar numa dependência de Jacques Villon e até longinquamente de Van Gogh.
Influenciado por muitos, não deixou Portinari também de por sua vez influenciar inúmeros jovens pintores: na verdade, toda a década de 1940 foi marcada pela sua presença, entrechocando-se, no cenário pictórico nacional, o portinarismo e o antiportinarismo. Hoje, mais de 35 anos decorridos de sua morte, seu prestígio é imenso, inclusive internacionalmente: Portinari é considerado um dos maiores artistas da América Latina e o mais brasileiro dos pintores, pois ninguém, mais do que ele, soube fixar, com fidelidade e emoção, as favelas cariocas, o trabalho nos cafezais e nas plantações de tabaco, o drama dos retirantes ou a inocência dos jogos infantis.
Mestiço, óleo s/ tela, 1934;
0,81 X 0,65, Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Floresta, óleo s/ tela, 1937;
1,50 X 2,20, Palácio Bandeirantes, SP.
O lavrador, óleo s/ tela, 1939;
1,00 X 0,81, Museu de Arte de São Paulo.
A barca, óleo s/ tela, 1941;
2,00 X 2,00, Museus Castro Maya, RJ.
Lavadeiras, óleo s / tela, 1943;
0,55 X 0,46, Museus Castro Maya, RJ.
Menino com carneiro, óleo s/ tela, 1953;
0,46 X 0,26, Museus Castro Maya, RJ.
A barca de São Pedro, óleo s/ tela, 1955;
2,10 X 5,13, Palácio Bandeirantes, SP.
D. Quixote e Sancho Pança, desenho, 1955;
0,33 X 0,29, Museus Castro Maya, RJ.
Orfão de pai aos cincos anos, tendo perdido aos 12 o padrasto, tinha 16 quando se empregou como ajudante na oficina de relojoaria do francês Jean Jacques Rousseau, o qual, tendo em vista seus pendores para o desenho, estimulou-o a estudar com seu compatriota François Ther, recém-chegado à cidade. Pouco mais tarde teria algumas lições com o retratista Maciel Gentil e com o pintor decorador João de Deus, passando a ganhar a vida como pintor profissional.
Decidido a ir estudar com Debret no Rio de Janeiro depois de ter visto uma reprodução do Desembarque da Arquiduquesa Leopoldina do mestre francês, só em fins de 1826 conseguiu embarcar com destino à Corte, onde chegou a 14 de janeiro de 1827. Treze dias mais tarde estava matriculado como aluno fundador na Academia Imperial de Belas Artes, na classe de Debret, de quem se tomaria em breve dos mais chegados amigos. Na Academia foi também discípulo de Grandjean de Montingny, tanto que na Exposição escolar de 1830 compareceu com obras de pintura e de arquitetura. Seu interesse pela arquitetura era aliás muito grande, e prova disso é ter estudado, quando em Roma em 1834, com o famoso arquiteto Canina; muitos foram, de resto, os projetos de sua autoria, depois que retornou da Europa em 1837 - entre eles o edifício da Igreja de Santana (não executado), a antiga sede do Banco do Brasil na Rua da Candelária (demolida em 1937) e as obras de reforma e ampliação dos Paços da Cidade e de São Cristóvão e da Alfândega do Rio de Janeiro. Mas, voltando aos tempos de sua formação, acrescente-se que também cursou a Escola Militar, estudou Anatomia e Fisiologia na Faculdade de Medicina e recebeu aulas de Filosofia de Frei José Policarpo de Santa Gertrudes
Todos esses esforços tinham apenas um escopo: prepará-lo adequadamente para a viagem à Europa, com a qual sonhava desde quando ainda residia na província. Com a abdicação de seu protetor Pedro I e o recebimento de uma inesperada herança, ao mesmo tempo em que seu mestre Debret se licenciava da Academia e retornava à Europa com os originais da Voyage Pittoresque prontos para publicação, todas as circunstâncias concorriam para a concretização de seus planos. Com efeito a 25 de julho de 1831 Porto-alegre seguia para a França em companhia de Debret, e já em fins desse ano estava matriculado na aula particular do célebre Barão Gros em Paris. Em 1832 inscreveu-se na École des Beaux Arts, que cursou com certo destaque. Morando num aposento da residência do arquiteto François Debret, irmão do pintor, Porto-alegre, durante o tempo de sua permanência em Paris, desfrutaria senão da intimidade, ao menos da proximidade de todas as celebridades que freqüentavam a casa, como explicaria anos depois, em sua autobiografia:
- A casa de Francisco Debret era um ponto de reunião de grandes notabilidades; e como este arquiteto era o primeiro mestre na arte de construir teatros, ali se juntavam também os memógrafos mais célebres e os músicos maiores, como Rossini, Auber, Boieldieu, Cherubini e Paer, não falando nas plêiades de pintores, escultores e outros homens de primeira plana. No centro desta sociedade, enciclopédia viva, colhe o jovem artista idéias gerais de muitas coisas, e sobretudo o gosto pelo estudo, e mais ainda esse respeito devido ao verdadeiro mérito e a todas as especialidades, porque no exemplo de tantos grandes homens aprendeu a respeitar os homens.
Porto-alegre não cita os nomes dos pintores ou dos poetas com os quais conviveu, mas é fora de dúvidas que na Paris dos começos da década de 1830 seriam todos eles espíritos românticos, os corifeus da nova escola estética que vinha se impondo havia apenas alguns anos aos postulados do neoclassicismo. Pinheiro Chagas, aliás, sustenta equivocadamente que o jovem brasileiro alistou-se na luta contra os clássicos, assistiu à première do Hernani de Victor Hugo e " foi um daqueles revolucionários da arte que, de gravata vermelha e de longos cabelos, se assenhorearam, por direito de conquista, da platéia do teatro francês nessa noite de luta em que se afirmou o triunfo da escola romântica".
Em 1834 Porto-alegre deixava Paris e encetava uma longa excursão através da Europa, percorrendo sucessivamente Itália, Suíça, Bélgica e Inglaterra. Acompanhou-o na viagem à Itália seu dileto amigo e também ex-aluno de Debret na Academia Imperial de Belas Artes Domingos José Gonçalves de Magalhães, o qual apenas dois anos antes se formara em Medicina e publicara seu primeiro livro, Poesias. Cumpre acrescentar que Gonçalves de Magalhães seria um dos fundadores em Paris, em 1836, da revista Niterói, da qual só apareceram dois números, mas que se constituiria no núcleo inicial do Romantismo brasileiro.
Regressando ao Brasil em 1837, o artista parece ter publicado, nesse mesmo ano, algumas caricaturas satirizando Justiniano José da Rocha, o que levou Herman Lima a sustentar, em sua História da Caricatura no Brasil, ter sido Porto-alegre o primeiro caricaturista brasileiro, sendo além do mais certo que fundou em 1844 o primeiro periódico do país ilustrado com caricaturas - a Lanterna Mágica, de efêmera duração. Também em 1837 foi nomeado professor de Pintura Histórica da Academia Imperial de Belas Artes, cargo que desde a partida de Debret em 1831 vinha sendo desempenhado por Simplício Rodrigues de Sá. Pintor da Câmara Imperial em 1840, couberam-lhe nessa condição a execução e a supervisão de trabalhos decorativos importantes para a coroação de Dom Pedro II, o casamento do Imperador com a Princesa Dona Teresa Cristina e os batizados dos Príncipes Imperiais Dom Afonso e Dom Pedro. Já no ano anterior realizara o pano-de-boca e cenários do Teatro São Pedro de Alcântara, inaugurado a 7 de setembro de 1839, representando "... o gênio das Belas Artes rasgando as espessas nuvens da Ignoráncia e da Rotina, e dando ao Gosto o lugar que elas usurpavam. A direita vê-se a magnifica entrada da barra do Rio de Janeiro; à esquerda a Ignorância e a Rotina fogem espavoridas", tudo conforme a descrição do Jornal do Comércio de 10 de setembro do mesmo ano de 1839.
Desde 1838 professor interino de Desenho do Colégio Pedro II, como substituto do titular Gonçalves de Magalhães, Porto-alegre permaneceu lecionando na Academia de Belas Artes até 1848 quando, sentindo-se hostilizado por seus antigos colegas Félix Emile Taunay, Cabral Teive, José Correia de Lima e Auguste Moreau, solicitou e obteve sua transferência para a Escola Militar, embora tal transferência implicasse sua passagem de professor catedrático para substituto. A Reforma Jerônimo Francisco Coelho, ocorrida pouco depois, acabrunhou-o ainda mais, reduzindo-lhe os vencimentos de maneira substancial e levando-o a solicitar sua jubilação.
Eleito vereador em 1852, nesse cargo desenvolveu tão ampla e fecunda atividade que ao deixá-lo recebeu da Câmara um ofício no qual lhe eram agradecidos o zelo e a dedicação com que desempenhara suas funções. Mais tarde, o Imperador Pedro II solicitava-lhe um esboço de reforma radical para a Academia Imperial de Belas Artes - o que foi feito, tornando-se Porto-alegre em 1854 diretor do estabelecimento e implantando efetivamente as idéias que delineara em seu projeto. Assim, foram criadas novas cadeiras (inclusive a de Desenho Industrial), a biblioteca passou a funcionar com seu catálogo, foi melhorada a situação financeira dos professores e se ampliou o edifício da Academia, de modo a poder nele funcionar a pinacoteca, enquanto era dilatado de três para seis anos o prazo de permanência dos pensionistas na Europa. Todas essas reformas não se fizeram porém sem reações, desencadeadas sorrateiramente pelos mesmos desafetos que, alguns anos antes, tinham-no forçado a deixar a Academia. Imiscuindo-se junto ao Marquês de Olinda, os inimigos de Porto-alegre - Félix Taunay à frente - dele obtiveram a nomeação de Joaquim Lopes de Barros Cabral Teive para a Cadeira de Pintura Histórica, à revelia do diretor. Indignado, Porto-alegre solicitou demissão do seu cargo em setembro de 1857, enviando ao ministro uma carta que é ainda hoje um documento de grande dignidade:
- Vossa Excelência sabe que, quem combate hábitos de relaxação, não é amado pelos madraços; e quem é justo, sofre dos que contam com o poderio misterioso do empenho e do patronato. (... ) Por convicções que nunca renegarei, deixo aquela diretoria com a satisfação que todo homem de brio encontra no cumprimento de seus deveres e muito mais quando altamente pugna pela causa da lei, da inteligência e da moral.
Praticando, além da pintura e da arquitetura, a literatura, Porto-alegre publicaria os livros de poesia Brasiliana (1843), O Caçador (1843), Brasiliana I (1844), O Voador (1844), A Destruição das Florestas (1845), Brasiliana em Três Cantos (1845), O Corcovado (1847) e principalmente o grande poema épico em mais de 20 mil versos Colombo (1866), bem como algumas peças de teatro Angélica e Firmino (1845); A Estátua Amazônica (1851); Os Voluntários da Pátria, (1877) etc., libretos para óperas (O Prestígio da Lei, 1859, música de Francisco Manuel; A Restauração de Pernambuco, 1852, música de Gianini; A Véspera dos Guararapes, A Noite de São João, etc.) e traduções de peças (Electra, de Eurípedes, Lucrecia Borgia, de Victor Hugo, Cristina da Suécia, de Dumas Pai, etc.), ocupando nas letras nacionais um espaço todo especial, a meio cantinho entre o neoclassicismo de sua mocidade e o romantismo de seus anos maduros. Homem-tudo, como a ele se referiu Max Fleuiss, deixou publicados nada menos de 135 trabalhos de literatura propriamente dita, 20 peças teatrais e quatro traduções. Jornalista, fundou e dirigiu Niterói (com Gonçalves de Magalhães e Torres Homem), Lanterna Mágica, Minerva Brasiliense e Guanabara, tendo colaborado com freqüência em vários outros, como o Journal de I'Institut Historique de France, Aurora Fluminense, A Reforma, Revista Brasileira, Nova Minerva e Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Finalmente, seja dito que Porto-alegre é o fundador da história e da critica de arte brasileiras, e ainda hoje podem ser compulsados com proveito seus artigos e memórias sobre arte nacional, destacando-se "Memória sobre a Antiga Escola Fluminense de Pintura", "Valentim da Fonseca e Silva", "Francisco Pedro do Amaral" e "Algumas Idéias sobre as Belas Artes e a Indústria no Império do Brasil", além de diversos artigos sobre música.
Nomeado para a carreira consular em 1859 por Pedro II, Porto-alegre, desiludido da arte e dos artistas, assume seu posto em Berlim em meados de 1860, sendo transferido em 1862 para Dresden. Em 1866 foi mais uma vez transferido - agora para Portugal -, falecendo cerca de 13 anos mais tarde na capital portuguesa. Uma de suas filhas, Carlota, casou-se com Pedro Américo. Seus despojos, trazidos em 1922 para o Brasil, foram transferidos sete anos mais tarde para Rio Pardo, onde repousam.
Homem de atividades múltiplas e por vezes excludentes, Porto-alegre deixou obra pictórica pequena e de valor desigual, na qual se destacam retratos, como o de Garret no Cerco do Porto, feito em 1833, quadros históricos, paisagens, interiores de grutas, alegorias e cenografias, etc. Não foi rigorosamente falando um grande pintor, mas um excepcional animador cultural, a quem muito ficaram devendo as artes, as letras e, numa palavra, a cultura do Brasil.
D. Pedro I, óleo s/ tela, 1826;
1,12 X 0,94, Museu Histórico Nacional, RJ.
Sagração de D. Pedro II, óleo s/ tela, cerca de 1840;
1,10 X 0,80, Museu Histórico Nacional, RJ.
Tinha 24 anos quando Maurício de Nassau convidou-o a acompanhá-lo ao Brasil, residindo entre 1637 e 1644 em Recife, onde desenvolveria grande atividade, documentando a paisagem e tomando apontamentos de portos e fortificações que mais tarde aproveitaria como ilustrações no Rerum per octennium in Brasília. Gozando de prestígio junto ao Conde (que o mantinha aliás de seu bolso), residia no Palácio das Torres, tinha assento à mesa do mordomo, ao lado de Albert Eckhout e Georg Marcgraf, e dispunha inclusive de um criado. Durante a permanência no Brasil Holandês, pode ter visitado outros recantos controlados pela Companhia das índias Ocidentais, notadamente a África. Nos primeiros meses de 1644 já retornara à Holanda - antes portanto de Nassau, que só voltaria em julho do mesmo ano; mas continuaria ainda por algum tempo empregado do Conde, para quem ilustraria, em 1645, o acima mencionado livro de Barleus.
Em 1646 Frans Post ingressou na confraria de pintores de sua cidade natal, da qual seria procurador e finalmente tesoureiro (1658-59); a 27 de março de 1650 casou-se, enviuvando em 1664. De pouco depois é o retrato que lhe fez Frans Hals, no qual surge como "um burguês de olhar inteligente e bem-humorado, de espessa face bonachona e cabeleira hirsuta, sob negro feltro de copa afunilada, vestes em monocromática austeridade... um desses espíritos contemplativos, que se comprazem em olhar para as coisas, sem imaginação, mas com agudeza, a lhes penetra remanessência" (Sousa Leão).
É possível que em 1664 Post tenha estado em Paris, acompanhando o físico Christian Huyghens, e visitando Londres na mesma ocasião: datariam desse momento duas vistas de Paris, uma vista do Palácio de Fontainebleau e outra do Castelo de Windsor, mencionadas no catálogo de 1764 do Castelo de Honsholredijk; mas também é possível que o acompanhante de Huyghens, na viagem a Paris e Londres, tenha sido o pintor Jan Post, sobrinho de Frans Post e imitador de sua maneira.
Após 1664, viúvo, Post levará vida obscura, entregue a excessos alcoólicos que terminariam por minar sua capacidade criadora. Viria a falecer em fevereiro de 1680, menos de dois anos após seu antigo patrão Maurício de Nassau, tendo sido enterrado na Groote Kerk de Haariem.
Como muitos quadros de Frans Post são assinados, e cerca de 40, além do mais, datados, não é difícil reconstituir-lhe a evolução estilística, entre 1637 (data da Ilha de Itamaratí, primeira obra executada no Brasil) e 1669, ano de execução da Paisagem de Pernambuco do Museu de Duesseldorf, última pintura datada. Post não foi pintor fecundo, tendo executado entre 200 e 300 obras, no decurso de uma carreira de mais de 40 anos - o que demonstra que, se conseguiu conquistar com suas paisagens das Índias Ocidentais, posição de destaque entre os artistas holandeses de seu tempo, não teve muitos clientes, a maior parte deles, quem sabe, antigos colonos no Brasil. A aceitação moderada das paisagens de Post é ainda confirmada pelos modestíssimos preços que atingiam no Séc. XVII: 20 florins em 1695, embora em 1650 uma sua Paisagem, encomendada por Guilherme de Orange, lhe tivesse rendido 300 florins.
Pode-se dividir a carreira de Frans Post em três períodos: antes, durante e depois da viagem ao Brasil, isto é, de 1631 a 1636, de 1637 a 1644 e de 1645 a 1669. O período inicial acha-se representado por uma única pintura, um Combate de Cavalaria conservado em Viena, mero pastiche do que no gênero realizaram outros artistas holandeses de começos do Séc. XVII. Anacrônico já à época de sua elaboração, serve somente para atestar os começos, mais do que discretos, de Post; e não terá sido em função dele, ou de obras de igual qualidade ou categoria, que Nassau o convidou a tomar parte na viagem ao Brasil, embora seja lícito contra-argumentar que um pintor de batalhas, mesmo iniciante, não seria de todo inútil no séquito de quem, como o Conde, dirigia-se a uma terra hostil, em missão de conquista, e cujo primeiro ato, tão logo desembarcado, foi o assédio às tropas de Bagnuolo com a conseqüente, captura de Porto Calvo. É possível que Post tenha executado também paisagens, nos primórdios de sua carreira, mas tais obras desapareceram, e com elas os vínculos que uniam o jovem artista a seus antecessores e mestres. Assim sendo, foi no segundo período, ou seja, no Brasil, que Post confirmaria sua vocação pictórica, transformando-se a sombra da natureza tropical num puro paisagista.
Poucos quadros restaram da permanência brasileira: os quatro do Museu do Louvre.- Rio Sio Francisco e Forte Maurício, Carro de Bois, Forte dos Reis Magos e Paisagem das Cercanias de Porto Calvo, o último curiosamente assinado F. C,oreo, tendo o pintor traduzido seu nome para o português; Ilha de ltamaracá, no Museu de Haia, e Vista de Antônio Vaz, que pertenceu à Coleção Sousa Leão. Nesses quadros pintados no Brasil, sob uma luminosidade intensa e em meio à luxuriante vegetação tropical, Post conseguiria traduzir todo o pitoresco do pais, sem deixar, porém de ser pictórico. A composição é simples, e não há acúmulo de detalhes esdrúxulos, que sobrecarregariam o quadro, contrastando esta simplicidade, quase despojamento, com as paisagens tão mais complexas efetuadas após o retorno à Europa. Post subordina-se integralmente ao que vê, mesmo porque sua função, na comitiva do culto Maurício de Nassau, era a de um documentarista, tal como Eckhout, ambos a reunir material ilustrativo para posterior utilização pelo Conde.
As pinturas brasileiras servirão de paradigma às que irão suceder-se, quando começa o terceiro e último período de sua carreira; mas paulatinamente, à frescura da emoção direta impõe-se um estoque de fórmulas: Post repete-se e se amaneira, perdendo sua obra em originalidade e em força expressiva para ganhar em requinte e virtuosismo. À composição sólida e sem artifícios dos quadros feitos no Brasil, nascidos ao contacto do espetáculo suntuoso e inédito do cenário tropical, alternar-se-á a complexidade crescente da Vista do Ipojuca (1647, Biblioteca Municipal de São Paulo), da Vista de Olinda (1650-5), Museu Nacional de Belas Artes), da Plantacio de Cana (1660, Museu Nacional de Belas Artes), da Igreja Jesuíta em Ruínas (1665, Detroit Institute of Arts),cada qual buscando resumir, em alguns centímetros quadrados, toda a natureza do Brasil, tudo muito ao gosto dos colecionadores. com abundantes citações à fauna e à flora, ao casario e às montanhas ao longe, aos habitantes e às suas atividades, num processo que evoca o da enumeracão caótica em Literatura, tão tipicamente barroco.
Acrescente-se a isso que, para satisfazer as exigências de clientes, nosso artista pintou muito quadro de circunstância, que em geral sequer assinava ou datava: infelizmente, essas obras comerciais constituem parte considerável de sua produção, e muito contribuíram para que até muito recentemente só se o considerasse como artista de interesse regional, pintor de importância secundária no panorama da paisagem holandesa do Séc. XVII, como o fez ainda em 1937 Arthur van Schendel:
- Frans Post é artista de segundo plano mas não deixa de ser também um talento pessoal. Tivesse permanecido na Holanda, não teria sido senão um paisagista medíocre; enriquecido da experiência brasileira, logrou produzir uma arte de sabor ainda desconhecido e de encantadora originalidade.
É inegável que, com suas paisagens brasileiras, Frans Post conquistou um domínio à parte, criando um gênero no qual não teria competidores. Típica, pessoal, embora algo fria, sua obra aparenta-se à de outros paisagistas holandeses seus contemporâneos, como Philips Koninck por exemplo, beneficiada, porém, pelo ineditismo do tema tropical. Historicamente, sua importância é também grande, tendo sido o primeiro pintor a, em terra americana, dar uma versão ao mesmo tempo fiel e poética da região, num momento em que toda a ênfase era concedida à pintura de natureza religiosa.
Paisagem com fortaleza, desenho.
Engenho de cana-de-açúcar, óleo s/ madeira,
0,26 X 0,41, Museu Nacional de Belas Artes, RJ.
Paisagem com jibóia, óleo s/ tela,
1,19 X 1,74, Museu Nacional de Belas Artes, RJ.
Cachoeira de Paulo Afonso, óleo s/ madeira, 1649;
0,59 X 0,46, Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand.
Paisagem da Paraíba, óleo s/ madeira, 1665;
0,45 X 0,53, Museu Nacional de Belas Artes, RJ.
Mocambo, óleo s/ madeira, 1659;
0,34 X 0,51, Museu Nacional de Belas Artes, RJ.
Em 1937, "para enfeitar a parede" de seu quarto triste de viúvo, começaria a pintar aquarelas, estimulado por Carlos Cavalcanti. Só mais tarde enfrentaria a pintura a óleo, fazendo a princípio uns quadros muito escuros, mas clareando sua palheta com o passar dos anos. Tematicamente, pintou o morro de sua infância, as favelas cariocas, rodas de samba, mulatas, tintureiros e malandros, fazendo uso de um desenho de duros contornos e de um colorido esmaltado de tons chapados. Falando em 1953 de sua pintura, assim se expressou Rubem Braga:
- Sua pintura é uma flor natural de seu samba e de sua vida, de seu meio e de suas mulatas, de quem ele desenha com amor todos os dentinhos brancos. Se às vezes exprime algum drama social, como Os Refugiados, em que aparece gente pobre carregando seus trastes, expulsa do barraco de uma favela qualquer, ou uma reivindicação racial, como naquela sala de jantar em que uma família preta é servida por uma copeira branca, quase sempre reflete momentos amenos da vida da gente do samba, não bem a de hoje, mas os de tempo já antigo, em que para além de São Cristóvão o Rio de Janeiro era muito rural.
Existe em verdade, na pintura de Heitor dos Prazeres, alguma coisa de profundamente nostálgico, mesmo porque o artista muitas vezes pintou de memória recantos do Rio e cenas urbanas que ficaram perdidos no passado, e que procurou assim resgatar do olvido. Por outro lado, e como bem observou o já mencionado Rubem Braga, "há em sua pintura, às vezes, uma ressonância da roça em que ele nunca viveu, luares de sertão e frisos de cana-de-açúcar, caboclas do mato; assim é mais fiel à sua cidade, cujo sentimento rural os pobres que vêm vindo renovam sem cessar, e mesmo um homem nascido na Cidade Nova é no Brasil, como somos todos, uns vagos exilados do país essencialmente agrícola ".
Funcionário público por muitos anos lotado na Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, homem de trajar impecável, usando paletós belamente talhados e por ele mesmo desenhados, autor de um conhecido Método de Cavaquinho, Heitor dos Prazeres foi, como artista popular, uma das expressões mais típicas do Rio de Janeiro proletário, e por isso podia afirmar, como disse em 1965 a Antônio Carlos Fontoura, no documentário que esse fez sobre sua vida e obra:
- Eu sou o povo e sou um homem do povo. Eu vejo esse povo que eu transporto para meus quadros como eu sinto, que eu também sou uma parte desse povo, de forma que eu sinto ele conforme vivo. Não há nada mais sublime que viver na massa do povo. Povo é a massa humana, é a voz do sangue, de forma que é o calor da carne. O povo pra mim é o aconchego, eu por exemplo, o povo para mim, eu sou um ovo e o povo é a Chocadeira.
Realizou algumas individuais - no Rio de Janeiro (1959 e 1961), São Paulo (1963), Bahia (1964) e Porto Alegre (1965) -, e entre as coletivas de que tomou parte estão a Bienal de São Paulo (1951,1953,1961), o Festival Mundial de Artes Negras de Dakar (1966) e ainda manifestações de arte brasileira em Santiago, Buenos Aires, Londres, Nova Iorque, Veneza e Barcelona. Foi, além do mais, um dos fundadores das primeiras escolas de samba cariocas, como Portela e Estação Primeira de Mangueira.
Moenda, óleo s/ tela, 1951;
0,65 X 0,81, Museu de Arte Contemporânea da USP.
RAMOS, Nuno (1960). Nascido em São Paulo. Após ter publicado em 1981-82 poemas nas revistas Almanaque-80 e Katalok, por ele editadas, formou-se em Filosofia pela Universidade de São Paulo (1982), e no ano seguinte começou a pintar autodidaticamente, integrando-se ao Ateliê Casa 7 e realizando sua primeira individual. Em 1984 participa com Paulo Monteiro e Rodrigo Andrade da mostra Painéis, no Paço das Artes em São Paulo, expondo também, ao lado de Sérgio Fingermann e de seus companheiros do Ateliê Casa 7, na mostra Pintura, realizada no Centro Cultural São Paulo. Nesse mesmo ano recebe o prêmio de viagem ao exterior do VII Salão Nacional de Artes Plásticas, participa da II Bienal de Havana e da Bienal Latino-Americana de Arte sobre Papel em Buenos Aires e executa suas primeiras estruturas tridimensionais, que exporá em 1987 na Galeria da Funarte no Rio de Janeiro, passando a alternar o seu fazer artístico entre a pintura (que retoma em 1988), a escultura (à qual volta em 1990) e a instalação. Em 1987 recebeu também a primeira Bolsa Émile Eddé, de subsídio a atividades artísticas. Tem realizado individuais em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Vitória, Amsterdam, Assunção e Nova Iorque, além de marcar presença em coletivas como a Bienal de São Paulo (1985, 1989, 1994, 1998), Modernidade - Arte Brasileira do Século XX (1987, Paris), Brasil Já (1988-89, Leverkusen, Hannover e Stuttgart), BR/80- Pintura Brasil Década 80 (1991, São Paulo), Bienal de Cuenca (1991), Brasil: La Nueva Generación (1991, Caracas), Latin-American Artists of the XXth Centry (1992-93, Sevilha, Paris, Colônia e Nova Iorque), Bienal Brasil Século XX (1994, São Paulo), Bienal de Veneza (1995), Tridimensionalidade na Arte Brasileira do Séc. XX e Diversidade da Escultura Contemporânea Brasileira (1997, São Paulo) etc. Em 1993 realizou uma de suas obras mais conhecidas - Instalação 111 , sobre o massacre dos presos do Carandiru, que expôs no Museu de Arte Contemporânea de Porto Alegre e na Galeria Raquel Arnaud de São Paulo. Nuno Ramos tem feito ilustrações para livro (Poros, de Rubens Rodrigues Torres Filho, em 1989), executou cenários para shows (Nome, em 1994, e Ninguém, em 1995, ambos de Arnaldo Antunes), e publicou os livros Cujo (1993) e Balada (1995). Comparando-o a Hélio Oiticica, o crítico Alberto Tassinari assim se expressou sobre Nuno, em livro publicado em 1997:
- Como Hélio Oiticica, ele pode ser classificado na família dos artistas da arte. Mas a arte, enquanto tal, na sua generalidade, só pode existir como conceito estético. Artistas preocupados com a própria criação necessitam, de algum modo, traduzir de um modo particular, sensível e convincente suas preocupações. Em Hélio Oiticica a hipótese do fim histórico da pintura o leva, numa espécie de contra-pintura, a fabricar ambientes que reproduzem a interioridade e as cores da pintura perdida. Nisto o espectador é convidado a ser uma espécie de co-autor da obra através da exploração dos ambientes. Em Nuno Ramos não há busca por novos gêneros ou mesmo pela ruptura deles. Seja no interior de cada arte, seja nas relações que sua obra inteira estabelece entre elas, o que se busca é algo como um atrito um uma justaposição do diverso que revele o sentido no movimento mesmo da sua dificuldade. A arte, neste caminho, surge como busca do solidário no não-solidário. Feita de restos e de antinomias, a criação, em Nuno Ramos, é concebida como regeneração.
REBOLO GONZALES, Francisco (1902-1980), Nascido e falecido em São Paulo (SP). Filho de imigrantes espanhóis, teve infância pobre, trabalhando como entregador numa chapelaria enquanto fazia o primário. Em 1915 seu primeiro contato com tintas e pincéis, como aprendiz numa oficina de decoração, possibilitar-lhe-ia auxiliar na ornamentação de igrejas e residências, abrindo-lhe assim um universo novo. Dois anos depois, nova experiência fascinante: o começo de uma carreira profissional como jogador de futebol, carreira que iria durar até 1934 e que lhe proporcionou inclusive o titulo de Campeão do Centenário pelo Corínthians, em 1922. No fim da vida, rememorando suas atividades no futebol e na arte, Rebolo assim comparou uma e outra, num singelo credo estético:
- Antes da pintura, o futebol já tinha marcado minha vida. Como no futebol, acho que na arte deve-se fazer coisas espontâneas, com a marca do amor e do entusiasmo, para poder se emocionar e emocionar os outros.
Mesmo quando era um bem-sucedido ponta-direita, porém, Rebolo não deixou de lado o trabalho de decorador. Desde 1926, com efeito, abrira um escritório-ateliê na Rua São Bento, transferindo-o em 1933 para uma sala do Palacete Santa Helena, na Praça da Sé. Data desse momento o início de sua carreira artística propriamente dita: Rebolo passa a pintar do natural e a se preocupar cada vez mais com o lado artesanal do seu ofício. Dentro em breve, em torno de sua figura começam a gravitar vários outros artistas-artesãos, como Pennacchi, Zanini, Graciano, Bonadei, Volpi, Manuel Martins e Rizzotti. Surgiu assim o chamado Grupo do Santa Helena, de tão ampla significação na história da pintura paulista do Séc. XX.
Em 1936 Rebolo participou pela primeira vez do Salão Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, ganhando medalha de bronze. No ano seguinte, no mesmo certame, ganhou a medalha de prata; sempre em 1937, exibiu seus quadros na I Exposição da Família Artística Paulista, ao lado dos demais integrantes do Grupo do Santa Helena, e ainda de Rossi Osir, Gobbis, Malfatti, Adami, Waldemar da Costa e outros pintores.
Quando, em 1939, volta a tomar parte na II Exposição da Família Artística Paulista, é já um pintor a caminho do pleno amadurecimento, merecendo, de Mário de Andrade, as seguintes palavras:
- Os dois ases da exposição me pareceram ser Rebolo Gonzales e Mário Zanini... Rebolo, tanto pelas suas naturezas-mortas como pelas suas paisagens é já um ótimo artista. Além das suas qualidades técnicas muito seguras, sabe revelar uma alma já bem caracterizada, suave e cheia de delicada poesia.
No mesmo ano, Giuliana Giorgi, em texto publicado em O Estado de São Paulo, refere-se com extrema acuidade a peculiaridades que acompanhariam até o fim o estilo de Rebolo:
- Rebolo tem matéria extremamente sensível; o colorido acinzentado - tipicamente seu - é rico de matizes agradabilíssimos, com os quais compõe na essência o seu quadro. Em substância, uma pintura de tom, tratada em surdina, onde os elementos ilustrativos, casas, árvores, figuras são apontados livremente com uma ingenuidade que é síntese, conseguindo atingir um lirismo melancólico de considerável eficácia.
Pintura de tom tratada em surdina parece-nos em verdade definição adequada da arte de Rebolo.
Mas a carreira do artista prossegue. Em 1941 é premiado no concurso de desenho e guache organizado pelo Patrimônio Artístico de São Paulo. Nesse mesmo ano Sérgio Milliet mais uma vez alude às características inconfundíveis de seu colorido, e chama-o de "mestre do meio-tom". É, também, o primeiro a realçar a pureza de Rebolo, o lado emotivo e intuitivo de sua produção:
- Céus de bruma, casas simplórias, colinas bem penteadas, hortas e jardins rústicos, eis o ambiente de suas telas que primam pela sensibilidade. Rebolo não é um "intelectual": despreza as teorias complicadas e só acredita na experiência humana do pintor. Descansa-nos assim da aridez erudita e gentilmente nos conduz a sensações de puro prazer sensual.
Em 1944 o pintor leva a efeito sua primeira mostra individual, na Livraria Brasiliense, de São Paulo. São paisagens, naturezas-mortas e figuras, com ênfase justamente nas paisagens, não fosse Rebolo antes e acima de tudo um paisagista, e paisagista, como diria seu prefaciador Sérgio Milliet, "do São Paulo suburbano e rural". Outras individuais teriam lugar em 1946, na Galeria Itapetininga, em 1955, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1957, na Embaixada do Brasil em Roma e no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1960, na Petite Galerie do Rio de Janeiro, etc. etc., consagrando-lhe o mesmo Museu uma grande retrospectiva em 1974, comemorativa dos seus 40 anos de pintura.
Em 1954 Rebolo conquistou, no III Salão Nacional de Arte Moderna, o prêmio de viagem à Europa, partindo em setembro do ano seguinte, com a família, para a Itália. No gozo do prêmio, percorreu não só a Itália, como ainda Espanha, Alemanha, França, Áustria e Holanda, chegando a fazer no Museu do Vaticano um curso de restauração, durante alguns meses. Quando regressou, dedicou-se a uma série de experimentações com a gravura, o que iria influenciar inclusive sua pintura, que então retomou de modo mais sistemático e estruturado. Comentando a temporada européia de Rebolo, e o que significou para o artista e para o homem a contemplação das obras-primas dos museus e o contato com países tão mais avançados culturalmente, Quirino da Silva assim se expressou, em texto de 1959:
- Os seus olhos contemplaram as obras dos grandes mestres durante dois anos, na Europa. Durante dois anos Rebolo passeou a sua sensibilidade pelos museus, pelas exposições, e o Rebolo que voltou é o mesmo Rebolo humilde. Os grandes mestres o empolgaram. Com eles aprendeu muita coisa. Aprendeu sobretudo a não ouvir as arengas dos falsos modernistas. E solidificou muito mais o seu respeito pelo verdadeiro artista.
Mas o Rebolo que regressou da Europa já não era o paisagista instintivo que para lá seguiu, e sim alguém que afinal atingira o pleno desenvolvimento de sua personalidade, uma personalidade que, como observou em 1961 Sérgio Milliet (decerto o melhor e mais constante exegeta do artista), "não era feita sobretudo de ingenuidade, como parecia, e sim de sutileza e de matizamento". Passam a ter vez, em sua pintura, os efeitos de textura, os caprichosos contrastes de tons, as belas transparências, sem que se enfraqueça a invenção formal e se desvaneça a atmosfera poética das primeiras telas. Simples, despretensiosas, de um extremo despojamento, as pinturas de Rebolo ainda assim (ou até por isso) agradam em seu approach impressionista, no qual o desenho desempenha papel secundário e a cor assume importância primordial.
Até o fim da vida pouco se modificaria, desde então, a pintura de Rebolo. Uma pintura na qual as paisagens, as naturezas-mortas e mesmo as figuras impõem-se-nos imediatamente à sensibilidade, sem apelos racionais e sem subterfúgios técnicos. À sua grande importância histórica, como elemento central do Grupo do Santa Helena, membro da Família Artística Paulista e do Sindicato dos Artistas Plásticos, co-fundador (ao lado de Volpi, Zanini, Nelson Nóbrega, Quirino da Silva, Rossi Osir e tantos mais), do Clube dos Artistas e Amigos da Arte e do Museu de Arte Moderna de São Paulo, ex-expositor dos Salões de Maio, junte-se sua importância artística propriamente dita, e ter-se-á o perfil exato da grandeza de Rebolo, alguém que conseguiu, além do mais, aquilo a que bem poucos é concedido ter: uma obra que é o reflexo exato de sua personalidade, generosa e sem dissimulações. Por isso, ninguém melhor do que outro pintor, Pennacchi, para definir a arte singela e poética de Rebolo:
- Rebolo foi sempre muito amável, pintava alegre, compenetrado ou satisfeito. Para ele o drama não existia. A atmosfera era sempre leve, preciosa, encantada, os morros de um verde apagado, os céus preferivelmente acinzentados, envolvendo umas vezes uma figura solitária e outras um grupo de moleques futebolistas...
Paisagem de M'Boy, óleo s/ tela, s/ data;
0,37 X 0,45, Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Natureza morta, óleo s/ tela, 1938;
0,50 X 0,71, Palácio Bandeirantes, SP.
Paisagem, detalhe, óleo s/ tela, 1942;
0,59 X 0,73, Museu de Arte Contemporânea da USP.
Morumbi, óleo s/ tela, 1944;
0,41 X 0,51, Palácio Bandeirantes, SP.
RODRIGUES, Glauco (1929). Nascido em Bagé (RS). Começou a pintar, como autodidata, por volta de 1945, para dois anos mais tarde matricular-se na Escola de Belas Artes de Porto Alegre, que não chegaria a concluir. Transferindo-se em 1949 para o Rio de Janeiro, freqüentou por alguns meses a Escola Nacional de Belas Artes, e no mesmo ano participou pela primeira vez do Salão Nacional de Belas Artes (Divisão Moderna). Regressando logo em seguida ao Sul, foi um dos fundadores, em 1950 do Clube de Gravura de Porto Alegre, núcleo de um movimento de repercussão nacional. Em 1958 retornou ao Rio de Janeiro, já agora em caráter definitivo, contratado para, ao lado de Carlos Scliar, dirigir o setor de arte da nova revista Senhor. Dessa cidade tem-se ausentado raramente desde então, como entre 1962 e 1965, quando viveu em Roma como chefe do setor de artes gráficas da Embaixada do Brasil. Participou de inúmeras coletivas, como o Salão Nacional de Arte Moderna (prêmio de viagem ao país em 1960), as Bienais de Paris (1961), de Veneza (1964) e de São Paulo (1959, 1967, 1989), mostras como Nova Objetividade Brasileira (1967), Portraits of a Country (1984, Londres), Natureza (1992, Rio de Janeiro) etc. Após sua primeira individual, em 1961, tem realizado várias outras mostras pessoais, em cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre, Brasília, Paris, Roma, Munique, Frankfurt e Cassel.
Glauco Rodrigues foi no começo gravador estilisticamente alinhado entre os adeptos do Realismo Social. Em começos da década de 1960 atravessou uma fase de gradativo afastamento da figura, se bem que nunca tivesse sido a rigor um puro abstracionista, porquanto suas naturezas-mortas e composições de tal época conservam ainda alusões a formas naturais ou de objetos, perceptíveis sem muita dificuldade por entre sucessivas diluições cromáticas e morfológicas. Após seu retorno da Itália, de novo abraçou a representação dos seres e das coisas, já agora obedecendo a uma acentuada postura crítica, ditada possivelmente pela Pop Art Norte-americana, que então afetava tantos de nossos artistas. O gigantismo de suas naturezas-mortas de frutos tropicais, ampliadas no todo ou em parte em obediência a um processo não sem analogias com o fotográfico, as cenas de praia e alguns retratos que lhe brotam em 1967 e 1968 serão dentro em pouco substituídos pelos grandes óleos da série Terra Brasilis (expostos em 1970 na Galeria Bonino, do Rio de Janeiro), que acusam influência simultaneamente do antropofagismo de Tarsila e Oswald de Andrade e do Tropicalismo. A essa primeira série voltada para assuntos brasileiros iriam suceder-se diversas outras: Descobrimento do Brasil, A Lenda do Coati-Puru, Tradições Gaúchas, Aquarela do Brasil, No Tempo dos Vice-Reis, Ciclo do Café, Paisagens Imaginárias Brasileiras, No País do Carnaval, Os Sete Vícios Capitais, etc . Em todas, Glauco faz uso de um desenho de extrema correção e fidelidade quase fotográfica, avivando o suporte com cores de grande intensidade e logrando obter efeitos expressivos surpreendentes ao colocar lado a lado elementos do passado e do presente na busca de uma consciência nacional, não recuando sequer ante certas situações de conotação kitsch. Como a seu respeito escreveu em 1986 Frederico Morais, "em Glauco o que temos é a carnavalização de nossa cultura e de nossa história. O próprio artista indicou que a estrutura de sua obra funciona um pouco como os enredos das escolas de samba. Mudam os temas, os personagens, mas há uma estrutura básica que é sempre a mesma. Na sua pintura, desfilam temas e mitos da vida brasileira: carnaval, futebol, índio, negro, religião, política, lendas, praia, sol, a flora e a fauna, o regional e o nacional, o passado e o presente, a própria arte, a de Glauco inclusive. Tudo canibalizado, deglutido e em seguida expelido na forma de uma explosão colorida, de um delírio visual. Brasil-pindorama, 365 dias de carnaval e futebol. Imagem de um Brasil tropical e barroco, mas também a sua contra-imagem ou contraface: o falso milagre econômico, repressão, a retórica política e o economês, o medo e a censura, que esta insiste em não sair de cena. É um pouco como o samba do crioulo-doido, tudo está fora do lugar, isto é, no seu lugar, pois no país do carnaval, o velho e o novo se misturam, tempo e espaço se confundem na mesma imagem, e a história se refaz a cada instante, antropofagicamente".
Sem título, xilogravura, 1951;
0,13 X 0,29, Museu de Arte Contemporânea da USP.
Alegoria barroca, litografia, 1980;
0,57 X 0,76, Museu Nacional de Belas Artes, RJ.
Em fins de 1821, com apenas 19 anos, Rugendas partia para o Rio de Janeiro, encontrando ao desembarcar um Brasil às vésperas de acontecimentos que culminariam poucos meses depois com a Independência. A atmosfera política carregada protelou o início da expedição, uma vez que como diplomata Langsdorff tinha de acompanhar o desenrolar dos fatos. Rugendas foi-se deixando ficar no Rio, visitando também suas cercanias e tomando anotações gráficas de tudo quanto lhe era facultado ver. E não foi senão em 1824 que, a convite do Barão, acompanhou-o numa excursão a Minas Gerais, visitando, então, Barbacena, São João del Rey, Vila Rica, Sabará, Caeté e Diamantina, para retornar em seguida à Corte, onde se separou definitivamente de Langsdorff, seguindo a 21 de maio de 1825 para a Europa, com escalas na Bahia e em Pernambuco. Nesse mesmo ano de 1825 teria início afinal a expedição de Langsdorff, com o jovem desenhista Adrien-Aimé Taunay no lugar de Rugendas. Certos lances dramáticos da viagem, como a morte trágica de Adrien e a demência que se apossou de Langsdorff, contribuíram em muito para o relativo insucesso da missão, se bem que a Academia de Ciências de Leningrado conserve bom número de papéis e originais a ela referentes, inclusive 67 desenhos e aquarelas de Rugendas.
A caminho da Alemanha Rugendas deteve-se em Paris, a fim de preparar os originais do livro que tinha a intenção de fazer editar, dando contas de sua viagem. Foi incentivado, nessa iniciativa, por Humboldt e pelo célebre pintor francês François Gérard. Intitulou o livro Malerische Reisein Brasilien - ou, na sua versão francesa, Voyage pittoresque dans le Brésil -, e o entregou aos editores. Cansado, porém, de aguardar o lançamento (que só se daria em 1834, por Engelmann & Cie.), decidiu mais uma vez embarcar para a América, o que fez a bordo do L'Antigone, a 30 de abril de 1831, com destino ao México.
Nesse país ficaria até 1834, tendo produzido nos três anos de sua estada cerca de 1.700 obras, entre desenhos, aquarelas e óleos. Envolvendo-se em 1833 num movimento revolucionário, foi preso e em seguida expulso do México, dirigindo-se então ao Chile, onde permaneceria os próximos 12 anos com curtas viagens à Argentina, em 1837 e 1838, ao Peru e à Bolívia, entre 1842 e 1844. Datam da fase chilena cenas da vida campesina e indígena que tranqüilamente se situam entre o que de melhor produziu, tudo vazado num desenho agilíssimo e num colorido de extrema sensibilidade, dentro de uma atmosfera inconfundivelmente romântica. Em 1845 o artista, sempre em busca de novos cenários, embarca em Valparaíso com destino a Buenos Aires e Montevidéu, efetuando em ambas essas capitais animadas cenas militares, ao lado das costumeiras cenas de gênero. Encontrando porém a situação no Rio de la Plata muito conturbada, em agosto de 1845 já se encontrava no Rio de Janeiro, após uma ausência de exatos 20 anos. Reatando antigas amizades brasileiras, tornou-se habitué do Paço Imperial, tendo realizado os retratos de Dom Pedro II, da Imperatriz Teresa Cristina e do Príncipe Dom Afonso, atualmente no Palácio do Grão-Pará em Petrópolis. Também concorreu às Exposições Gerais de Belas Artes de 1845 e 1846, e nesse ano recebeu as insígnias de Cavaleiro da Imperial Ordem do Cruzeiro.
Em fins de 1846 ou inícios de 1847 partia para a Europa, deixando definitivamente o Novo Mundo. Embora não tivesse mais de 45 anos, achava-se cansado pelas constantes viagens, e ao regressar à pátria desejou obter uma renda capaz de lhe assegurar tranqüilidade pelo resto da vida. Cedeu então ao Rei Ludwig I da Baviera sua coleção de desenhos e aquarelas americanos, num total de cerca de 3 mil peças, em troca de uma pensão anual de 1.200 florins. Seus derradeiros anos não foram calmos, porém: acossado permanentemente por credores, desfrutando de saúde precária, tinha ainda assim de produzir, tanto mais que suas aventuras amorosas o forçavam a efetuar pesados gastos financeiros. A 29 de maio de 1858, faleceu de repente aos 56 anos, saudoso, sempre, do Novo Mundo e do Brasil. A 22 de outubro de 1966, na cidade de Weilheim, não longe de Stuttgart, onde se encontra o jazigo do pintor, foi inaugurada por iniciativa do então cônsul brasileiro em Munique, Mário Calábria, uma placa com os seguintes dizeres:
- À memória de Johann Moritz Rugendas, pintor das paisagens e da gente brasileira, em agradecimento - a Nação Brasileira.
Rugendas é, sem qualquer dúvida, o mais artista dentre todos os pintores e desenhistas-viajantes que estiveram no Brasil em começos do Oitocentos. Sua execução econômica, a emoção que soube imprimir a seus desenhos, aquarelas e óleos, o suave colorido de suas paisagens e cenas de gênero, tudo contribui para fazer, de Rugendas, um pintor de altíssimo nível, aliando-se, às suas qualidades propriamente artísticas, a circunstância de ter com igual sensibilidade e delicadeza retratado a terra e a gente de países como o Brasil e o México, o Peru e a Bolívia, Argentina, Uruguai e sobretudo Chile, tornando-se, como é por vezes chamado, o Pintor das Américas.
Cena rural, desenho, 1835;
0,25 X 0,31, in: Voyage Pittoresque.
Numa fazenda, litografia, s/ data;
0,23 X 0,33, Palácio Bandeirantes, SP.
Vista da Igreja de São Bento, litogravura, s/ data;
0,26 X 0,21, Palácio Bandeirantes, SP.
Dois escravos sentados, detalhe, desenho, s/ data;
0,26 X 0,19, Biblioteca Nacional, RJ.
Dois escravos em pé, detalhe, desenho, s/ data;
0,25 X 0,21, Biblioteca Nacional, RJ.