DACOSTA, Milton (1915-1988). Nascido em Niterói (RJ) e falecido no Rio de Janeiro. Tendo começado a pintar com 12 anos de idade, fazendo paisagens, marinhas e cenas tiradas de folhinhas sobre caixas de sapatos e outros suportes pouco convencionais, em 1929 passou a estudar com o pintor alemão Augusto Hantz, que lhe dava a copiar retratos de artistas de cinema:
- Era um homem gozado, de rosto vermelho. Gostava muito de tomar a nossa "pinga". Quando ele se excedia no consumo desta bebida, suas aulas ficavam tumultuadas.
Em 1930 matriculou-se no curso livre da Escola Nacional de Belas Artes, como discípulo de Marques Júnior. Mais ou menos por essa época, nas travessias de barca para o Rio de Janeiro, conheceu Antônio Parreiras, septuagenário e celebérrimo, para quem chegou a posar, e que em uma ocasião lhe corrigiu uma pintura:
- Certa vez, mostrei-lhe o estudo de uma paisagem, com as sombras bem escuras e os tons luminosos menos quentes. Parreiras corrigiu a minha pintura. Substituiu as sombras pretas por sombras roxas. E colocou amarelos em todos os tons de luz. A correção era feita por um pintor não apenas conhecedor do Impressionismo, senão principalmente por um artista obediente à convenção tradicional, vinda já dos tempos de Delacroix.
Abandonando dentro de pouco tempo as aulas da Escola Nacional de Belas Artes, Dacosta seria, em 1931, um dos fundadores do Núcleo Bernardelli, ao lado de outros jovens pintores, como Edson Motta, Malagoli, Bustamante Sá, Rescala e Braulio Poiava (a quem conhecia de Niterói). Dois anos mais tarde, já se julgando apto a participar do Salão Nacional de Belas Artes, submeteu a júri algumas pinturas, que não lograram contudo aceitação:
- Uma delas, por sinal, era a pintura de umas botinas. Mas a tela não foi aceita pelo júri, composto geralmente na época pelos professores da ENBA. Imagine que cortaram o meu trabalho, dizendo que os sapatos pareciam um reclame da Casa Clark, que possuía uma loja na Avenida Rio Branco.
O ano de 1936 testemunha duas importantes vitórias: Dacosta realiza sua primeira individual, na Galeria Santo Antônio, do Rio de Janeiro, e expõe pela primeira vez no Salão Nacional de Belas Artes, onde obtém uma menção honrosa. No mesmo certame seria premiado, sucessivamente, com medalha de bronze (1939), medalha de prata (1941) e a viagem ao estrangeiro (1944), as duas últimas distinções já na vigência da Divisão Moderna.
Com o prêmio de viagem, o artista partiu para os Estados Unidos da América (1945), freqüentando
Em 1952, depois de ter tomado parte, no ano anterior, na I Bienal de São Paulo, Dacosta embarcou novamente para a Europa, regressando em 1954 para já no próximo ano receber, na III Bienal de São Paulo, o prêmio de Melhor Pintor Nacional. Na VI Bienal de São Paulo, em 1961, teve sala especial, tal como ocorreria, cinco anos mais tarde, na I Bienal da Bahia. Retrospectivas de sua obra foram realizadas em 1959, pelo Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, e em 1981, pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo.
As primeiras pinturas de Milton Dacosta, de começos da década de 1930, eram simples exercícios de um adolescente de pouco mais de 15 anos, exercícios nos quais é lícito porém surpreender algumas das características que mais tarde iriam marcar-lhe em definitivo o estilo: agudo senso de construção, a tendência a captar somente o essencial de cada forma, seres e coisas utilizados em função de seus valores exclusivamente pictóricos, nenhuma concessão ao pitoresco ou ao anedótico, e horror ao regional, ao folclórico, ao episódico.
Tivesse acaso ficado nessas primícias, e ainda assim mereceria um lugar destacado na evolução de nossa pintura moderna, mesmo porque, à medida que a década se aproxima do fim, surgem-lhe da paleta obras de maior fôlego e mais intenso poder expressivo, se bem que ainda influenciadas pelas de outros artistas, ecos da Escola de Paris, num momento
No que respeita aliás a influências, Dacosta jamais escondeu quanto devem seus anos de aprendizado e aprimoramento a Modigliani, Cézanne e De Chirico, ou - para citar gente de casa - a Cândido Portinari. Certas pinturas feitas por exemplo em 1937, reproduzindo telhados e casario das imediações do Campo de Santana e de outros sítios do Rio de Janeiro, evocam, em sua estruturação geométrica, o Mestre de Aix-en-Provence; ao passo que a atmosfera rarefeita de alguns quadros de começos da década de 1940, com suas perspectivas exatas, seus manequins, seus ambíguos espaços metafísicos, remetem diretamente a De Chirico. E não seria possível ver a marca de Modigliani nos pescoços e vultos alongados de seus Banhistas, e a de Morandi na severidade elementar de umas poucas naturezas-mortas de fins da década de 1940?
Mas a influência mais funda e permanente que repercutiu sobre a produção de Milton Dacosta foi a do Cubismo, um Cubismo decerto adaptado às circunstâncias brasileiras. Foi essa admiração pelo Cubismo que iria gradativamente fazer com que Dacosta substituísse o Impressionismo de suas composições juvenis - a cor tonal, o primado das texturas -, pelo predomínio de uma forma perfeitamente estruturada. Em pinturas de fins da década de 1940 é possível inclusive surpreender recursos tradicionais cubistas, como a parcimoniosa utilização da cor - a paleta reduzida a três ou quatro tonalidades apenas -, e a visão simultânea de um rosto, de face e de perfil. Em tais momentos, repercute bem forte a lição de Picasso, que continuará visível mesmo nas Figuras de Alexandre e nos Cabeçudos, nas Meninas e em outras composições de fins dos anos 40 e começos da década seguinte, frutos de um artista preocupado com a redução de planos, formas e cores a uma síntese cada vez mais econômica.
A fase final dessa produção de cunho pós-cubista acha-se representada numa série de naturezas-mortas e de Cidades ou Castelos, nas quais se observa um progressivo aprofundamento expressivo, ao mesmo tempo em que as referências ao mundo natural se reduzem ao mínimo - discos, cilindros, retângulos que apenas sugerem objetos. De posse, finalmente, de todos os seus recursos expressivos, e tendo atingido um estado de autêntica sabedoria pictórica, a personalidade de Dacosta cristaliza-se. E se é verdade, como queria Schopenhauer, que toda arte aspira à condição de música, força é reconhecer que nunca, como em tais obras, alçou-se o artista a tão elevado nível de realização. Isso mesmo, aliás, parece ter sentido o júri da III Bienal de São Paulo, ao lhe atribuir, em 1955, o Prêmio de Melhor Pintor Nacional justamente por uma série de Castelos ou Cidades.
O intervalo puramente abstrato que iria seguir-se, e que até certo ponto era preludiado por algumas naturezas-mortas e Cidades, nada tem de estranhável: afinal, oriunda de Cézanne e do Cubismo, a pintura de Dacosta concebe a Natureza antes de mais nada como um esquema abstrato que fosse, ao mesmo tempo, desafio ao intelecto e estímulo à emoção. Fazendo então uso de linhas retas, que delimitam campos monocromáticos, Dacosta passa a construir espaços nos quais a vibração dessa ou daquela tonalidade não chega a destruir a sensação predominante de um deliberado ascetismo, de uma austeridade quase mondrianesca. Nessas obras de fins da década de 1950 e princípios da de 1960 repercute sem dúvida, se não a lição, ao menos a presença do Concretismo, identicamente ao que se passava, pela mesma época, com a pintura de Volpi.
Mas já em 1963 o artista abandona esse despojamento, como explicaria numa entrevista a Frederico de Morais, anos depois:
- Aquela fase dos quadrados significou a necessidade de uma certa disciplina. Eu pintava como uma dona-de-casa que quer manter sua casa sempre arrumada. Isto exige muito esforço. Naquele tempo, acredito, era um jeito, um modo de ser. Mas acho que o ciclo da construção acabou. Cheguei ao extremo e queriam que eu continuasse. Não via como. Hoje concluí pela importância do "humano" na arte. Desci à terra. A disciplina não pode ir contra a liberdade.
Expressando-se por antíteses, Dacosta entrega-se a partir daquele ano à elaboração de nova série - Vênus e Pássaros -, constituída por pinturas em que formas femininas opulentas, às vezes em atitudes e posturas lascivas, são resolvidas com o emprego de linhas sensualmente recurvas, cantantes de tão puras. Nessas obras, próximas do imaterial - a camada de pigmentos, de tão rala, mal se percebe -, quase não se pode dizer onde acaba o desenho e começa a pintura, ou vice-versa. Geometrizada, reduzida a um arabesco, a uma síntese visual que é o próprio avesso da forma feminina naturalisticamente observada, a Vênus de Dacosta é obra de um virtuose consumado. Vibra, em suas formas voluptuosas de leve colorido, qualquer coisa de oriental.
Por duas décadas, até morrer, Dacosta dedicou-se à temática das Vênus e Pássaros, numa sucessão de imagens que chegam a sugerir a catarse de alguma obsessão - como se o artista quisesse expulsar, de dentro de si, todas as infinitas variações de um tema aparentemente inesgotável.
Sobre o fundo negro, óleo s/ tela, 1954;
Museu de Arte Contemporânea da USP.
Natureza morta, óleo s/ tela, 1949;
0,73 X 0,92, Museu de Arte Contemporânea da USP.
Composição sobre marron, óleo s/ tela, 1955;
0,65 X 0,92, Museu de Arte Contemporânea da USP.
Vênus e pássaros, óleo s/ tela, 1971;
0,54 X 0,81, Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Após uma permanência de mais de ano em Londres, em 1909-10, visita Paris pela primeira vez, ali se deixando ficar até 1914. Ligando-se aos círculos de vanguarda, amigo de Matisse e Picasso, tem porém um abalo ao tomar contato com a pintura de Renoir e principalmente com a de Cézanne, passando dois dias fechado em seu quarto "com o rosto virado para a parede, decidido a não mais pintar", Após quatro meses de total apatia, volta a trabalhar, agora como escultor, e como escultor é que, nos próximos anos, conhecerá sucesso internacional, sofrendo sucessivamente a influência de Maillol, Degas e do Cubismo, até adotar o estilo vigoroso e pessoal que iria caracterizá-lo por volta de meados da década de 1920.
Cidadão alemão naturalizado, De Fiori é convocado em 1916 e luta no front francês. Desmobilizado, transfere-se para a Suíça, e em 1919 casa-se com uma jovem escultora, com a qual viverá sete anos. Famoso, presença obrigatória em todas as grandes manifestações de arte contemporânea levadas a efeito na Europa ao longo de mais de duas décadas de ativo labor, em 1936 De Fiori decide-se a abandonar a Alemanha, pressentindo a aproximação da tragédia iminente, e após curta temporada em Paris dirige-se ao Brasil, fixando-se
Apaixonado pela paisagem brasileira, em nosso país não deixa de esculpir, mas pratica com assiduidade cada vez maior a pintura, que assim retomava após um intervalo de mais de 20 anos. Pretendendo embora regressar à Europa tão logo as circunstâncias o permitissem, e tendo ainda a intenção de viajar aos Estados Unidos, não logrou concretizar nem uma coisa nem outra, deixando-se ficar no Brasil em definitivo, e aqui se ligando de amizade a intelectuais e artistas como Menotti del Picchia e Paulo Rossi Osir. Desportista, adepto da vela e vencedor de inúmeras regatas, deu seqüência no Brasil à sua ilustre carreira, expondo nos três Salões de Maio (1937-39), no III Salão da Família Artística Paulista (Rio de Janeiro, 1940), no 1 Salão de Arte da Feira Nacional de Indústrias (1941) e nos Salões do Sindicato dos Artistas Plásticos de 1942 e 1944, ao mesmo tempo em que realizava mais três individuais: em 1937, na Nova Galeria de Arte de Theodor Heuberger, no Rio de Janeiro; em 1939, na Casa e Jardim, de São Paulo, e em 1944 na Galeria Itá, também de São Paulo. Foi a partir da mostra de 1941 em Casa e Jardim que seu prestigio no Brasil começou a aumentar, diversos críticos e intelectuais tendo-lhe dedicado, na ocasião, artigos encomiásticos.
A obra pictórica de De Fiori compreende retratos, paisagens, figuras, sucessivas representações do tema de São Jorge e o Dragão, que assumia a seus olhos conotações simbólicas, e inúmeras vistas da represa de Santo Amaro, iniciadas por volta de 1939. É uma pintura alegre, extravasada em pinceladas largas, de cromatismo intenso, sem preocupações com o fini, e estilisticamente ligada ao expressionismo germânico, a cuja sombra se desenvolvera. O crítico de arte Walter Zanini, que lhe estudou a obra em profundidade, divide sua pintura brasileira em duas fases: a primeira, a partir de 1936, mais subordinada à realidade objetiva, e a segunda, que surge por volta de 1939 e atinge seu apogeu em 1942-43, marcada por forte expressionismo, o qual se reflete "não apenas na vitalidade de sua cor, nos acidentes de matéria, mas em detalhes ponderáveis como os arrependimentos freqüentes na disposição dos tons, os refazimentos propositadamente não dissimulados dos motivos, o inacabado, os escorrimentos de tinta (antecipação às coulées informalistas), o avanço das cores pelas molduras".
Violentamente antiabstracionista, comprazendo-se com freqüência na representação de cenas urbanas de São Paulo - que descrevia pouco após sua chegada como " uma grande e inacabada cidade, uma pequena Nova Iorque, meio titânica, meio nanica, habitada por estranha mistura de raças, uma pequena Babel" -, de figuras isoladas ou em grupo e de naturezas-mortas ou interiores, De Fiori chegaria a influenciar a, entre outros, Alfredo Volpi, Mario Zanini e Joaquim Figueira, como pintor, enquanto o mesmo Figueira e principalmente Bruno Giorgi iriam sofrer seu impacto como escultor. Foi porém Zanini quem mais fundamente sentiu o influxo da arte de De Fiori, a ponto de lhe assimilar processos e maneiras, até o esquema colorístico.
Para os últimos anos de vida, acabrunhado com o rumo da guerra na Europa e decidido a emprestar sua colaboração à luta contra o Nazismo, propõe sem sucesso a criação,
Arlequim dançando, detalhe, óleo s/ tela, 1942;
1,10 X 0,90, Museu de Arte Contemporânea da USP.
São Jorge, azulejo, década de 40;
feito para Osirarte, SP.
Batalha, têmpera s/ tela, s/ data;
0,48 X 0,61, Palácio Bandeirantes, SP.
São Jorge, óleo s/ tela, 1943;
0,95 X 0,65, Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Após 1806, Debret voltou-se para os grandes quadros de assunto napoleônico, muitos deles feitos por encomenda oficial, como Napoleão prestando homenagem à bravura infeliz, ou Napoleão em Tilsit condecorando com a Legião de Honra um bravo do Exército Russo. A queda do Imperador e a morte de seu único filho, em 1815, foram duras provações para o artista, o qual decidiu afastar-se para bem longe de França. Tencionava seguir, juntamente com o arquiteto Grandjean de Montigny, para a Rússia, mas ambos acabaram tomando o rumo de Brasil, engajados na Missão Artística organizada por Lebreton para criar, no Rio de Janeiro, uma Academia de Belas Artes. Debret desembarcou nessa cidade a 26 de março de 1816, e ali permaneceu até 1831, quando retornou à França,
Tão logo chegado, Debret passou a desenvolver intensa atividade, pintando retratos da Família Real e obras como a grande tela Desembarque de Dona Leopoldina em 1817. Realizou ainda trabalhos de cenografia para o Teatro São João e decorações e serviços de ornamentação pública do Rio de Janeiro, para grandes festas como a Aclamação de Dom João VI, a 6 de fevereiro de 1818, como Rei de Portugal, Brasil e Algarve, e como o bailado histórico e representação de gala concebidos por Louis Lacombe, diretor do Teatro São João, levados à cena a 15 de maio do mesmo ano, ainda como homenagem a Dom João VI. No entanto, a principal finalidade da vinda de Debret e dos demais artistas franceses de Lebreton ao Brasil - a organização do ensino artístico no país - demorava a se concretizar. Pensionário real em 1816, encarregado da aula de Pintura Histórica da Escola Real de Artes e Ofícios criada naquele mesmo ano, lente dessa mesma disciplina em novembro de 1820, na nova Academia e Escola Real das Artes (em que se transformara a Escola Real), Debret teve de enfrentar todo tipo de dificuldade burocrática, levantada pelo novo diretor da Academia - o português Henrique José da Silva, adversário ostensivo ou dissimulado dos franceses -, para finalmente começar a lecionar a apenas cinco alunos, em 1823! Só em 1826, com a abertura da Academia Imperial de Belas Artes, disporia de espaço suficiente para reunir um número apreciável de discípulos, embora ainda não estivesse terminada a construção da sede projetada por Grandjean de Montigny. Mas em
Coube a Debret organizar a primeira exposição pública de arte realizada no Brasil, aberta a 2 de dezembro de 1829 na Academia, com catálogo financiado pelo artista. Achavam-se expostos 115 trabalhos, sendo que 33 de autoria dos professores. Debret apresentava-se com seus alunos: Simplício de Sá, José de Cristo Moreira, Francisco de Souza Lobo, Manuel de Araújo Porto-alegre, José dos Reis Carvalho, José da Silva Arruda, Alphonse Falcoz, João Clímaco, Augusto Goulart e Francisco Pedro do Amaral. Segunda exposição seria realizada em 1830 mas, retirando-se Debret no ano seguinte para a França, só em dezembro de 1840 teria lugar a terceira; quando partiu, levou em sua companhia o discípulo favorito, Porto-alegre, a fim de que se aperfeiçoasse em Paris.
Como pintor, Debret não chega a entusiasmar: sua pintura é dura, convencional ao extremo, até porque nascida ao léu das circunstâncias, de fora para dentro, por assim dizer. O Museu Nacional de Belas Artes possui um razoável núcleo de tais pinturas, como Retrato de Dom João VI, Desembarque de Dona Leopoldina, Sagração de Dom Pedro I, Aclamação de Dom Pedro I, conservando o Museu de Arte de São Paulo e o Museu Imperial de Petrópolis outros originais. Na verdade, a maior fonte do prestígio de que desfruta Debret na atualidade deriva do fato de ter sido autor da Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, publicada por Firmin Didot Frères
Oficial da corte, aquarela, 1822;
0,16 X 0,21, Museus Castro Maya, RJ.
Botica, aquarela, 1823;
0,15 X 0,21, Museus Castro Maya, RJ.
Embarque das tropas para Montevidéu, óleo s/ papel, 1826;
0,64 X 0,42, Museu Imperial, Petrópolis.
- Você será pintor.
Poucos anos mais tarde, em 1914, tem início a carreira de caricaturista de Di, que nesse ano publica seu primeiro trabalho
- São dignos de exame alguns trabalhos de um jovem que se estréia com o pseudônimo de Di.
No mesmo ano de 1916, Di Cavalcanti matriculou-se na Escola Livre de Direito. Logo depois mudava-se para São Paulo, levando uma carta de apresentação de Olavo Bilac para o jornalista Nestor Rangel Pestana. Emprega-se como arquivista
- Eu, que deveria continuar meu curso de Direito, fiquei entre as aulas do vetusto casarão, as redações dos jornais, os cafés boêmios, as livrarias, as pensões de mulheres.
Nessa fase inicial de sua existência, Di Cavalcanti atravessa dificuldades, mas vai-se tornando pouco a pouco um homem. Em 1917 tem a revelação do Socialismo pelos ecos que aqui chegam da Revolução Russa; presencia a exposição de Anita Malfatti e a grande greve operária deflagrada
Freqüentador de livrarias, numa delas - a Editora do Livro -, sempre naquele fecundo ano de 1917, efetuará sua primeira individual. Havia bem pouco tempo que começara a pintar, e era ainda aquele "menestrel dos tons velados" ao qual se referira, na dedicatória de um livro, Mário de Andrade. Seu veículo predileto era então o pastel, do qual se utilizava para retratar figuras femininas, "da angelitude então em voga". Lado a lado, porém, com essas "místicas fugas da realidade", o futuro grande pintor "punha já em valor certos caracteres depreciativos do corpo feminino, denunciava nos seus tipos uma psicologia mais propriamente safada que extravagante, com uma admirável acuidade crítica de desenho" (Mário de Andrade). Passando a freqüentar, em 1918, o ateliê de Georg Fischer Elpons, dentro em breve estava substituindo pelo impressionismo desse artista alemão radicado
O ano de 1922 é de importância fundamental tanto para a arte moderna brasileira quanto para a carreira do pintor, de quem partiria inclusive a idéia, dada a Paulo Prado, para a realização de uma Semana de Arte Moderna:
- Eu sugeri a Paulo Prado a nossa semana, que seria uma semana de escândalos literários e artísticos.
Realizada a Semana, Di Cavalcanti fica por algum tempo desnorteado:
- Eu era um esnobe, não posso negar. Me considerava o tal, porque ilustrava as obras de Oscar Wilde, sabia mais literatura que os outros, tinha contato com os intelectuais, e ainda possuía uma amante italiana que abandonara o teatro por minha causa. A Semana - coitada - só veio agravar meu quadro geral. Fiquei muito pior, e fugir disso, então, passou a ser uma necessidade. O próprio Brasil, para mim, passara a ser apenas uma multiforme nação irreal, que me levava a rir, às gargalhadas, de tudo, principalmente da velha Academia de Direito. Larguei tudo e fui para Paris.
Fascinado por Paris, que até então só conhecia de conversas, para lá embarcou com efeito em 1923, com um ralo dinheiro obtido com a venda de alguns quadros e um trato, com Edmundo Bittencourt, para a remessa de crônicas para o Correio da Manhã:
- Lá andava eu, em Paris, para um lado e para outro; trabalhava na pintura no meu pequenino ateliê de Montparnasse e rodava pelas ruas procurando reportagens para o Correio.
Em breve escapada à Itália, descobre os Velhos Mestres, que lhe causam tremendo impacto:
- Quando volto a Paris quero abandonar para sempre a pintura. Sinto em mim a ressonância do colorido do Ticiano, a força teatral de Michelangelo. Da Vinci! Todos me destruindo, empurrando-me para um anonimato, para uma pobreza moral infinita!
Por algum tempo cursa a Academia Ranson, conhecendo em seguida intelectuais como Jean Cocteau, Blaise Cendrars, Paul Eluard, André Breton, Leon Paul Fargue e Miguel de Unamuno; músicos como Darius Milhaud, Poulenc, Auric e Satie; e artistas como Léger, Marx Ernst, De Chirico, Matisse, Braque e principalmente Picasso. Por volta de 1924, segundo Sergio Milliet, Di Cavalcanti "dedicava-se conscienciosamente ao estudo da maneira monumental de Picasso, que tanto o enriqueceu e que foi o primeiro a transpor através de uma originalidade indiscutível para o assunto brasileiro. Essa influência picassiana fez-se sentir de modo tão intenso e, por outro lado, tão duradouro, na obra de Di, que críticas ferinas e mesmo acusações de plágio foram volta e meia assacadas contra o pintor brasileiro, muito embora o crítico Luís Martins, estudando esse delicado capítulo das relações estilísticas entre Di e Picasso, tenha aparentemente esclarecido a questão:
- Compreende-se que se sentisse impressionado, quando em sua primeira viagem à Europa, em 1923, deparou com as mulheres monumentais de Picasso - o Picasso que se evadia das linhas frias, severas e angulosas do cubismo, para as curvas sensuais e exuberantes de sua fase neoclássica. Mas, se esse encontro com o grande pintor espanhol constitui provavelmente, para o brasileiro, uma revelação do seu próprio temperamento, sugerindo-lhe uma forma de exprimir plasticamente o que há de ondulante, macio, cálido e maternal no corpo feminino, força é confessar que a personalidade do nosso artista não se deixou subjugar pela outra, mais amadurecida, do mestre consagrado. O que há
Di Cavalcanti, ele próprio, não escondeu jamais o que devia a Picasso, e referindo-se ao seu conhecimento com o artista, assim declarou numa entrevista:
- Conheci-o fazendo uma reportagem para o Correio da Manhã. Ficamos camaradas, mas eu não quis saber dele porque o achava muito sério. Aliás, não gosto de conviver com pintores. São uns chatos, os maiores chatos que conheço. No entanto, fui amigo de Picasso até a morte dele. Mas em matéria de mulher, por exemplo, modéstia à parte, sou mais eu, anti-picassiano. Nunca soube o que se passava na cabeça dele, daquele cigano magnífico, mas o fato é que ele não servia para fazer mulher bonita. Era sempre mulher com um olho a mais ou a menos, um nariz de lado. Saía sempre um Picasso bonito, mas nunca uma mulher bonita.
Com a Revolução de 1924, o Correio da Manhã foi fechado e Di Cavalcanti viu-se forçado a regressar ao Brasil. Ei-lo novamente no Rio de Janeiro, em 1925, renovando um contato que se revelaria indispensável ao amadurecimento de sua produção - ele que, um dia, escreveria:
- A nossa arte tem de ser como a nossa comida, o nosso ar, o nosso mar. Tem de ser reveladora de nossa cultura, pois a boa arte é sempre cultural, e sua dimensão própria é a de antecipar um momento cultural.
Mesmo afirmando em suas memórias que entre 1925 e 1935 não se lembrava de ter feito muita coisa importante, o fato é que datam de 1929 os dois admiráveis murais que realizou para o Teatro João Caetano, do Rio de Janeiro - obras poderosas, nas quais seu talento se afirma de modo pessoal e vigoroso. Já em 1928 ingressara no Partido Comunista, levado por sua fé na justiça social. Mas em 1931 verificava, aturdido, não poder ser jamais "um bravo comunista: entre a minha liberdade individual e as regras partidárias abriam-se abismos".
Retornando em
A partir da década de
- A partir daí (1940) deve-se reconhecer que sua obra passou a ser bastante repetitiva, e seu lançamento e valorização no mercado, por marchands habilidosos, resultou numa produção comercializada, em que a despeito de muitos trabalhos bons, a qualidade freqüentemente não correspondia ao talento. Sendo um de nossos grandes pintores, com Portinari, Segall e Volpi, sua obra é desigual, especialmente a partir de 1950, o que sua personalidade explica, mas não deixa de ser lastimável.
Di negava essa tendência à comercialização do seu talento:
- Dizem que me tornei mais comerciante que artista. Bobagens. Sou um artista... mas um homem também. Preciso de dinheiro para o homem e tempo livre para o artista. Preciso de dinheiro para minha alegria e minha tristeza.
Seja como for, era natural que, num artista cuja produção pictórica já foi estimada em aproximadamente cinco mil obras, nem tudo lhe tivesse saído de primeiríssima qualidade, até porque não era do seu temperamento essa preocupação para com a qualidade de seus quadros, como de certa feita confiou a Mário de Andrade, numa carta de 1930:
- Mário, felizmente eu não me apresso, não quero nunca realizar obras-primas como quis o Brecheret, o Villa e mesmo já o Celso Antonio, o que acontece é que eles sem autocrítica já estão paus. E eu me sinto de uma mocidade comovente. Não é orgulho, é vaidade. Eles não amam a vida. Amam a arte como a um mito. E eu amo sobretudo a vida, esta vida que vem como os calores sexuais de baixo para cima…
Vivendo alternadamente entre São Paulo e Rio de Janeiro - "eu não poderia viver sem o Rio de Janeiro, porque tudo o que vejo como pintor se integra na paisagem carioca" -, expondo constantemente no Brasil, mas também no Uruguai, na Argentina, no México e nos Estados Unidos, Di Cavalcanti recebeu importantes premiações ao longo de sua carreira, destacando-se a medalha de ouro conquistada em 1937 na Exposição de Paris (com a decoração do pavilhão da Companhia Franco-Brasileira), o prêmio Melhor Pintor Brasileiro, que dividiu com Volpi na II Bienal de São Paulo, em 1953, o primeiro prêmio da Mostra de Arte Sacra de Trieste, Itália, em 1956 e a medalha de ouro da II Bienal Interamericana do México, em 1960 - na qual teve aliás sala especial. O Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em
Sobre a arte de Di Cavalcanti, já Mário de Andrade se pronunciara, há cinqüenta anos, de maneira extraordinariamente lúcida, ao dizer:
- Di Cavalcanti conquistou uma posição única em nossa pintura contemporânea. Em nossa pintura brasileira. Sem se prender a nenhuma tese nacionalista, é sempre o mais exato pintor das coisas nacionais. Não confundiu o Brasil com paisagens; e em vez do Pão-de-Açúcar nos dá sambas, em vez de coqueiros, mulatas, pretos e carnavais. Analista do Rio de Janeiro noturno, satirizador odioso e pragmatista das nossas taras sociais, amoroso contador das nossas festinhas, mulatista-mor da pintura, este é o Di Cavalcanti de agora, mais permanente e completado.
Mulatista-mor da pintura... Será que Di Cavalcanti aceitava de bom grado a denominação, que lhe foi dada, de "Pintor das Mulatas"? É provável que sim:
- A mulata, para mim, é um símbolo do Brasil, Ela não é preta nem branca. Nem rica nem pobre. Gosta de dança, gosta de música, gosta do futebol, como o nosso povo. Imagino ela deitada em cama pobre como imagino o país deitado em berço esplêndido. A mulata é o feminino e o Brasil é um dos países mais femininos do mundo. Não temos o machismo do México, o Brasil gira em torno das mulheres...
Estilisticamente, Di Cavalcanti sofreu, desde o início de sua longa carreira, numerosas influências, confessadas ou não: marcaram-no por exemplo Beardsley, Picasso, os renascentistas italianos, Gauguin, Rivera e os mexicanos, Delacroix, Matisse, Braque, Dufy e muitos, muitos outros. Todas essas influências foram analisadas, sopesadas, assimiladas, deglutidas e digeridas, incorporando-se definitivamente ao mundo formal do artista, que lhes imprimiu a marca de sua personalidade - tão forte, tão acentuadamente hedonista. Embora de base clássica (o que explica sua fidelidade, por exemplo, ao cubismo), a arte de Di Cavalcanti é expressionista e romântica, e a despeito de seu realismo, toca por vezes também no mágico e no fantástico. Quanto ao mulatismo de sua pintura, não existe somente nos temas, mas sim num jeito tropical e dengoso de os desenvolver, numa malemolência que nem é branca nem negra, mas deriva da mescla de ambas as raças - sem falar na pincelada gorda e despreocupada, na matéria por vezes suja e empastada.
Pioneiro do Modernismo no Brasil, idealizador da Semana de Arte Moderna de 1922, Emiliano Di Cavalcanti produziu, em cerca de seis décadas de carreira, uma quantidade prodigiosa de óleos e de desenhos, muitos de altíssima qualidade. Só sua atividade como desenhista daria para consagrar um artista - como se pode ver pelo exame da admirável coleção por ele doada em 1963 ao Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. Sem ter sido paisagista, pintor de história ou religioso - a não ser circunstancialmente -, foi seduzido sempre, ao contrário, pela figura humana, observada em si mesma ou em meio a opulentos cenários tropicais - a festa popular; a gafieira onde os corpos se abraçam; as pensões de mulheres; os interiores modestos de subúrbio. Também demonstrou predileção especial pela natureza-morta, tendo deixado uma quantidade considerável delas, nas quais com evidente ciência de composição dá vazas a seu intenso cromatismo, servindo-se de um desenho espontâneo e bem lançado.
Partiu do crítico Frederico Morais, por ocasião da retrospectiva de 1971 no Museu de Arte Moderna de São Paulo, uma das análises mais perspicazes da arte de Di Cavalcanti, razão pela qual a seguir a transcrevemos:
- Di Cavalcanti tem um espírito gordo e exuberante e faz um expressionismo de raízes barrocas e tropicais. A arte de Di tem o aspecto roliço, satisfeito e exultante do barroco rubenista. Di é romântico como Delacroix e Matisse, os quais buscaram a aventura do longínquo e do desconhecido: o Magreb, as odaliscas marroquinas, os arabescos. Seus pescadores, cercados de mulatas, atravessam com os olhos o Atlântico e querem outros continentes, outras regiões, outras histórias. A pintura de Di Cavalcanti tem, curiosamente, algo da aventura marítima portuguesa - é litorânea, praiana, fica entre o mar e o "bas-fond", entre o porto e o "dancing", não adentra o território brasileiro, nem quer ser interiorana ou regional. Aqui, no Rio, permanece na Lapa ou avança até o Mangue, perambula, erradia, nos subúrbios. O Rio de outrora. Di é carioca, um pouco à antiga, e sua arte é o carioquismo na arte brasileira. Como Di, o Rio é gordo, barroco, sensual, lascivo. Como de resto, e finalmente, a mulata. Ah, a mulata. Algumas são calipígias e esteatopígias, como as vênus pré-históricas, outras, menos gordas, são esvoaçantes e aéreas, como as mulheres rubenistas. Mas gordas, sobretudo, no espírito e no comportamento. Em nenhum outro artista brasileiro, a mulata recebeu tratamento pictórico tão alto e tão digno. Sem paternalismos, sem menosprezo. Di deu-lhe a dignidade da madona renascentista, madonizou a nossa mulata, o que não é o mesmo que mulatizar a madona, como o fez Athayde no céu barroco de Minas. Altaneiras, monumentais quase sempre, alegres ou sonhadoras, em devaneios - o gato no colo, a flor sobre o busto - apenas por alguns momentos o olhar parece triste ou vago. Porque, hedonista nato, amoroso da vida e das pessoas, Di não se deixa abater pelos problemas existenciais, pela inquietação política ou social. Coisas mais próprias para os espíritos magros.
Em 1997, por ocasião do centenário de nascimento do artista, diversas exposições importantes foram-lhe consagradas no Rio de Janeiro e
Mulher e paisagem, óleo s/ cartão, 1931;
0,40 X 0,50, Palácio Bandeirantes, SP.
Vaso com flores, óleo s/ tela, 1936;
0,62 X 0,60, Palácio Bandeirantes, SP.
Pescadores, óleo s/ tela, 1942;
0,81 X 1,00, Palácio Bandeirantes, SP.
Flores, óleo s/ tela, 1946;
0,70 X 0,57, Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Mocinha com gato na janela, óleo s/ tela, s/ data;
0,78 X 0,62, Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Casa de mulheres, óleo s/ tela, 1962;
0,38 X 0,55, Museus Castro Maya, RJ.
Natureza morta, óleo s/ madeira, 1966;
1,00 X 0,54, Palácio Bandeirantes, SP.
- A meu modo de ver, a arte deve ter alma, vida e movimento. Hoje me parece que um quadro apenas pintado é um objeto morto numa parede. Pois os meus quadros têm luz, som, ruídos, movimentação eletrônica, vida. Uma arte não só cinética, mas com som, também.
Durante a II Guerra Mundial foi telegrafista e participou do Grupo de Artistas Italianos em Armas com trabalhos que representavam cenas da guerra na Albânia, Grécia e Iugoslávia. Findo o conflito, embarcou para o Brasil, onde chegou em setembro de 1946, logo se radicando
Di Prete figurou ainda em diversos certames artísticos importantes, dentro e fora do Brasil - como o Salão Nacional de Arte Moderna de 1952, o Salão de Maio parisiense desse mesmo ano, a XXVI e a XXX Bienais de Veneza, em 1952 e
Partindo de uma arte figurativa intimista, regida por suaves contrastes de forma e cor, a pintura de Di Prete atravessaria diversos estágios a partir da década de 1960, sentindo sucessivamente a sedução do abstracionismo informal e, abandonada a bidimensionalidade, encontrando na arte cinética talvez sua mais forte expressão. Numa entrevista concedida ao jornalista Luís Ernesto Machado Kawall em 1972, assim se referiu o artista ao tipo de arte que então produzia:
- Mesmo quando fazia arte figurativa, sempre me preocupei com o cósmico, o segredo espacial, o universo indecifrável. Isso até hoje, quando procuro integrar à arte cinética essa relação fantástica com o mundo irreal, misterioso, imprevisível em que vivemos. E também estou pensando em introduzir nos meus objetos, além de movimento e luz, música eletrônica e poemas falados. Na vida de hoje, desumana, burocratizada, mercantilista, todo mundo só pensa em se "desligar". Então, os objetos que vou fazer doravante servirão ao homem moderno, serão utilitários, ele ficará em sua casa, depois de chegar "arrasado" da cidade, muitas horas, diante deles, escutando seus sons, vendo seus movimentos coloridos e eletrônicos.
Grande experimentalista, utilizando com idêntica desenvoltura suportes e materiais tradicionais lado a lado com telas de arame, nailon, sucata, lâmpadas, tubos galvanizados, acrílico e motores elétricos, Di Prete imprimiu a todos esses elementos a marca de sua inquieta lucidez, merecendo essas palavras consagratórias de José Geraldo Vieira:
- Como se não lhe bastassem os estratagemas do trompe l'oeil, Danilo vai mais longe do que Le Parc e Schoeffer. Associa aos recursos plásticos o movimento pendular de lâmpadas acesas mas invisíveis que, indo e vindo, desvendam um espaço interior, uma nova dimensão pulsátil, despertam no bojo e na periferia dos quadros misteriosos fulgores de diamantes, ágatas, rubis, safiras, topázios, opalas, esmeraldas, ametistas, turquesas, sílicas, quartzos, granadas, coridons e berilos, obrigam aquelas maçanetas, aqueles fundos de garrafas, aquelas lascas, aqueles seixos a se transformarem em gemas, em grutas de Capri, em torsos siderais, enquanto as redes de náilon se põem a vibrar em ondas moirées. Trata-se de arrojado sincretismo de recursos que, renovando a obra de Di Prete, a elevam ao mais alto gabarito da arte contemporânea universal.
Abstracionismo, óleo s/ madeira, 1959;
3,50 X 1,30, Palácio dos Bandeirantes, SP.
Paisagem cosmica, óleo s/ tela, creca de 1967;
1,50 X 1,50, Pinacoteca do Estado de São Paulo.
- "As feridas, a relação que tenho com a carne maltratada, por exemplo, me acompanham desde os oito anos. Não sei o que são, se traem um acento sádico ou se são lembranças de um sofrimento. Poderia tentar uma explicação qualquer, da realidade da carne sob as aparências, mas não o quero fazer porque não seria verdade. Através da pintura, das minhas coisas transferidas para o quadro, existe uma atitude profundamente fetichista. Posso notar isso de uma maneira clara, até mesmo nos elementos que me cercam em minha casa, no meu ateliê, nas pessoas que escolho para mim.
- Parei de fazer arte no sentido que está nos livros em 1963. Não era possível continuar. Senti que não era apenas o produto do meu trabalho, mas a própria intenção que era medíocre. Larguei tudo e parti para conhecer gente da minha idade. Até então só havia andado com gente mais velha do que eu - era um contido. Meu trabalho durante esta temporada foi acumular choques. Sentia-me preso e descobri de repente que milhares de jovens lutavam para a libertação, lutavam para fazer alguma coisa que fosse resultante de suas idéias, de suas relações com o mundo. Foi a conscientização dessa luta que me fez voltar ao ateliê e tentar, através do desenho, me situar, isto é, deixar claro para mim mesmo o que eu era.
- Se no início trabalhei desenfreadamente, isso foi por que estivera parado durante muito tempo, havia verdades acumuladas. Precisei de muita disciplina. Porque fazer um desenho, uma pintura, é contar a verdade e não se tem verdades para contar a toda hora; mentiras sim, se tem muitas.
- Hoje trabalho de vez
- Os jovens são propósitos
Em 1967, quando já era um dos mais importantes artistas de sua geração, e após ter sido tema - ao lado de Gerchman e de Roberto Magalhães - do curta-metragem Ver e Ouvir, de Antonio Carlos Fontoura, Antonio Dias transferiu-se para Paris, cidade onde já em 1965 havia efetuado uma individual e participado da mostra A Figuração Narrativa na Arte Contemporânea. Também em 1967 expôs, com sucesso, na Galeria Delta, de Rotterdam. No ano seguinte, após os acontecimentos de Maio de 1968 na capital francesa, o artista brasileiro mudou-se para Milão, onde tem residido desde então, com periódicas viagens ao Brasil, Colônia e Nova Iorque, além de curtas escapadas a outras cidades da Europa, para expor. Ao radicar-se contudo em Milão, a arte de Antonio Dias passou por nova transformação substancial, substituindo a figuração Pop até então seguida pela tendência conceptualista. Sem abandonar de todo o gesto de pintar, Dias voltou-se, ali, para novos recursos expressivos, como o vídeo e a fotografia, e abriu-se a novas tendências, como a arte condizionata, a arte política e a arte sistêmica, de cujas mostras antológicas em Milão, Karlsruhe e Buenos Aires participou sucessivamente em 1969, 1970 e 1971. Ao mesmo tempo, em princípios dos anos de 1970 sua arte passava a questionar a própria arte e se tornava uma reflexão sobre sua essência e limitações (série The Illustration of Art, Milão e Nova Iorque). Por outro lado, numa viagem ao Nepal, em 1977, surgiram-lhe os despojados discos desenhados sobre esplêndido papel artesanal fibroso, objeto de exposições na Europa e no Brasil, em anos subseqüentes.
Figura exponencial da jovem arte brasileira na segunda metade da década de 1960, quando tocou-lhe desempenhar, no Rio de Janeiro, papel de autêntico chefe de escola, Antonio Dias insere-se hoje na corrente da arte internacional de vanguarda, e seu espírito inquiridor não pára de pesquisar novas formas de expressão, novas media, novos universos visuais. A relação de suas individuais e de sua participação em coletivas e mostras panorâmicas, na Europa, na América do Norte e no Brasil, é extensa, como são numerosos os museus de arte contemporânea que conservam originais de sua mão. Em 1994 uma grande retrospectiva de sua produção, desde 1964, teve lugar no Instituto Mathildenhöhe de Darmstadt, na Alemanha.
The american death, vinil s/ tela, 1967;
0,97 X 1,90, Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Nota sobre a morte imprevista, técnica mista, 1965;
1,50 X 1,22, coleção particular.
- Fui procurar o Graça, e o Graça me disse que eu fosse, com uma carta dele, procurar o Moura Brasil, que havia um salão da Policlínica defronte da Galeria Cruzeiro. Não encontrava o Moura Brasil, aí o Graça conhecia muito bem o Juliano Moreira, psiquiatra muito importante, e fui procurar Juliano Moreira lá no hospital, mostrei o desenho e ele me disse: "Está muito bem, porque lá no hospício está havendo um congresso de Psiquiatria mundial"... Fiz a exposição no salão da Politécnica, quando houve esse congresso. Foi um escândalo. Até consegui vender quadros. O público não aceitava aquilo de maneira nenhuma, só professores alemães, franceses, estrangeiros que naturalmente já estavam senhores de tudo aquilo.
Interrompido o curso de Belas Artes, Cícero partiu de volta ao Nordeste, expondo em 1928 em Recife e logo depois em três cidades do interior de Pernambuco:
- Em 1928, fiz uma exposição em Recife, depois fiz três exposições no interior do Estado, para justamente sentir a receptividade do povo para a pintura moderna, diante da expressão moderna. O povo não estranha; quem estranha o novo é o mal instruído, o burguês, mas o povo não. Em Recife, a repercussão foi horrível, fui perseguido pelo ambiente cultural, apesar da apresentação de Gilberto Freire.
Nessa apresentação, o grande sociólogo dizia, entre outras coisas:
- Das novas relações e proporções é que sai avivado pelo mais brasileiro dos azuis, pelo mais pernambucano dos encarnados, o lirismo profundo como em nenhum outro pintor que eu conheço, de Cícero Santos Dias. Esse pintor não tem requintes de colorido nem luxos, mas quase só azul e encarnado como os pintorezinhos pobres - de barcaças e de ex-votos e de casas de porta e janela.
Esse lirismo de base popular e autenticamente brasileiro nutriria de então por diante as melhores obras de Cícero, ao tempo em que praticava uma pintura ingenuamente surrealista, quando, rústico Chagall dos Trópicos, externava com simploriedade suas reminiscências e sensações de menino de engenho impregnado de fortes odores de frutas e do colorido dos canaviais, com medo de assombração e despertando para a sexualidade. "Pintura é poesia, qual técnica!" costumava dizer então aos que lhe censuravam o desleixo no acabamento das aquarelas e dos óleos. Desleixo que aliás não passou desapercebido a um crítico como Rubem Navarra, o qual assim caracterizou sua produção entre 1928 e 1937:
- Ele se dava a todas as liberdades no terreno da técnica. Tinha horror à virtuosidade linear e à lógica do espaço natural - a composição era uma montagem de símbolos e imagens - poemas e não arquiteturas. De maneira que não havia questão de exercitar nem forma nem matéria: o que importava era figurar um determinado sentido de evocação, por meio de imagens em geral soltas e mal construídas, onde tudo se encontrava na idéia de produzir um choque poético, através de uma linguagem como a dos primitivos ou a das crianças.
Esse desleixado, muito mais artista do que artesão, paradoxalmente chegaria a lecionar Técnica da Pintura em 1935, do mesmo modo como, desorganizado sempre, foi um dos organizadores do Congresso Afro-Brasileiro de Recife, em 1929...
Em 1931, no Salão Nacional de Belas Artes que Lúcio Costa pela primeira vez franqueava a artistas de orientação não-acadêmica, Cícero expôs um enorme quadro, Eu vi o mundo, ele começava no Recife, que causaria sensação:
- Eu expus um quadro enorme, esse meu quadro hoje tem
O quadro, devidamente restaurado, e após ter integrado durante anos, em comodato, o acervo do Museu Nacional de Belas Artes, pertence hoje a um colecionador de Rio de Janeiro. Em 1937, após executar décors para um balé de Villa-Lobos na versão de Serge Lifar, Cícero Dias embarcou para Paris, pretendendo ali permanecer alguns meses, o suficiente para se esquecer do Estado Novo recém-implantado por Getúlio Vargas. Terminaria por se radicar definitivamente na capital francesa, da qual só se ausentou durante os anos da II Guerra Mundial, entre 1939-45 (quando viveu em Lisboa), e nas rápidas escapadas ao Brasil, aliás cada vez mais freqüentes para os últimos anos.
Pode-se imaginar o impacto da pintura de Cícero, tão logo chegado a Paris, sobre os surrealistas aos quais logo se ligou! Não admira assim tivesse sido acolhido com efusão por artistas e intelectuais do porte de Picasso e de Éluard. No ano seguinte ao da chegada, 1938, efetua com sucesso duas exposições
De fato, o Cícero de meados da década de 1940 não é mais o das imagens da infância, mas alguém preocupado com problemas formais e de relacionamentos cromáticos. Um abstracionista, em suma, que reduz o mundo a um conjunto de abstrações coloridas da realidade, despreocupado com a duplicação das formas naturais e sobretudo com o conteúdo anedótico ou literário ainda tão marcante em obras anteriores. Integrado, portanto, ao grupo abstracionista, freqüentador da Galeria Denise René, membro do Grupo Espace em 1946, Cícero deixa de ser um pintor regionalista e se insere na arte internacional de seu tempo. Numa curta visita ao Brasil, em 1948, executa, em Recife, aquele que é geralmente tido como o primeiro mural abstrato sul-americano. E em 1952 é um dos artistas selecionados por Leon Degand para figurar em sua obra Temoignages pour l'Art Abstrait, ao lado de Arp, Calder, Poliakoff, Magnelli e tantos outros. No mesmo ano sua exposição
- Cícero acaba de expor
Se a temática regionalista do primeiro Cícero Dias esvaiu-se, substituída pelas relações matemáticas entre formas e cores, não há como deixar de perceber, mesmo aí, uma atmosfera que é Nordeste, Pernambuco, o Brasil: afinal, não escreveu com acuidade Gilberto Freyre, há quase 60 anos, que Cícero usava em seus quadros "o mais brasileiro dos azuis, o mais pernambucano dos encarnados"?
Cícero realizou diversas exposições individuais, não apenas no Rio de Janeiro e em Recife,
- Ele tem calungas que não são nem cachorro, nem boi, nem burro. Tem aves que não são bem pombas, nem urubus, nem galinhas. É o Animal. É a Ave.
Mulher e soldado, guache, 1928;
0,31 X 0,30, Instituto de Estudos Brasileiros da USP.
Estátua e o monstro, guache, 1928;
0,55 X 0,38, Instituto de Estudos Brasileiros da USP.
Eu vi o mundo, começava no Recife, detalhe, óleo s/ papel, 1929;
2,50 X 1,50.
Moça com sombrinha, óleo s/ tela, s/ data;
0,74 X 0,61, Palácio Bandeirantes, SP.
Ilustração para o livro Ciclo da Moura, água-forte, 1966-67;
0,34 X 0,26, Museus Castro Maya, RJ.
Sem título, óleo s/ tela, 1951;
0,80 X 0,53, Museu de Arte Contemporânea da USP.
Mas Djanira sobreviveu à doença. Mudando-se para o Rio de Janeiro e casada com Bartolomeu Gomes Pereira, maquinista do Loide Brasileiro, passa a residir
- Minha filha, você é uma pintora. Se necessitar de tintas, pincéis ou telas, não deixe de me procurar. Faço questão de lhe dar tudo.
Em contato com tais artistas, e com escritores e intelectuais como Murilo Mendes ou Rubem Navarra, Djanira aprimorou suas aptidões naturais para a pintura, desenvolvendo paralelamente a curiosidade intelectual e uma aguda inteligência. Rigorosamente falando, porém, pode e deve ser considerada uma autodidata, alguém que sozinha e a duras penas encontrou o próprio caminho. Por isso soam profundamente autênticas essas palavras de uma sua entrevista de 1962:
- Nunca voltei atrás nem fiz concessões. Apesar de tudo, das dificuldades de ordem econômica, de minha vida íntima, dos grupos de que participava com aparência feliz, eu estudava, observava o que se passava ao redor. O caos das bienais. Foi um período de maior solidão de minha vida, de maiores ponderações, de dias e noites trabalhando sozinha, estudando minha própria pintura, consultando minha consciência. Vi que só tinha um caminho a seguir: partir de mim mesma...
Dois acontecimentos marcaram a vida de Djanira em 1942: sua primeira aparição pública como pintora, expondo na Divisão Moderna do Salão Nacional de Belas Artes, e a morte do marido, quando seu navio, o Apaloide, foi torpedeado por um submarino nazista. No ano seguinte a artista realizou sua primeira individual, na Associação Brasileira de Imprensa do Rio de Janeiro, passando a viver exclusivamente da pintura. Nos Salões de 1943 e 1944 é premiada respectivamente com as medalhas de bronze e de prata, ao mesmo tempo em que começa a atrair as atenções da crítica. Com o dinheiro obtido com a venda de alguns quadros numa segunda individual, realizada também no Rio de Janeiro, embarca em 1945 para os Estados Unidos da América, na trilha de Milton Dacosta, com quem vivia então, e que um ano antes fora contemplado com o prêmio de viagem ao exterior da Divisão Moderna do Salão Nacional de Belas Artes. Sem falar uma única palavra de inglês, passará cerca de três anos naquele país, grandemente auxiliada pela escultora Maria Martins, na época embaixatriz brasileira
Regressando ao Brasil em 1947, Djanira efetua, no ano seguinte, nova exposição - dessa vez na sobreloja do edifício-sede do Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro, voltando a expor em 1949
Ganhadora, em 1955, do Salão Cristo Negro, realizado no Rio de Janeiro, merece em 1958 uma primeira retrospectiva no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, apresentada em texto consagratório por Mário Pedrosa; a mesma retrospectiva é levada a São Paulo, à Galeria de Arte das Folhas, depois de ser mostrada em Munique, na Haus der Kunst. Ainda em
É com uma individual de Djanira que se inaugura em 1960, no Rio de Janeiro, a Galeria Bonino - que vem dar nova orientação e estrutura ao comércio de arte brasileiro. Dois anos mais tarde, comemorando os vinte anos de carreira artística, Djanira expõe no Museu Nacional de Belas Artes, pintando igualmente em 1962 uma série de grandes painéis para os navios recém-adquiridos da Companhia Costeira de Navegação. Nova mostra retrospectiva terá lugar em 1967 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o qual, na ocasião, se metamorfoseia no ateliê da artista, por obra e graça de Martim Gonçalves, cabendo a José Roberto Teixeira Leite elencar as 130 pinturas e desenhos de várias técnicas então expostas. Contratada pela Loteria Federal do Brasil, realiza em 1968 uma série de guaches para as principais extrações do ano, enquanto dois anos mais tarde Julio Pacello edita, em tiragem de 100 exemplares, o Oratório de Djanira, dez gravuras iluminadas uma a uma, com texto introdutório de Odilo Costa Filho.
Na década de
Djanira que, ao lado de suas convicções políticas, manteve-se sempre extremamente religiosa, faleceu a 31 de maio de 1979 no Rio de Janeiro: na ocasião envergava o hábito de irmã leiga carmelita. Cinco anos mais tarde, o viúvo, José Shaw da Mota e Silva, fez à Fundação Nacional Pró-Memória, para o Museu Nacional de Belas Artes, importante doação de 57 pinturas, 27 gravuras com suas matrizes, cerca de 600 desenhos e todo o arquivo bibliográfico da artista.
Camponeses, pescadores, vaqueiros, operários, mineiros, índios, negros, mulatos e brancos são os personagens da vasta obra pictórica de Djanira, povoada também, por vezes, de santos católicos e orixás africanos. Seduziram-na igualmente as cidades coloniais e as variadas paisagens que in loco observou no Maranhão ou
O desenho de Djanira, tosco se observado desde um ponto de vista estritamente acadêmico, reflete diretamente e sem disfarces possíveis sua personalidade. É rude, sim, mas acima de tudo sintético, conquistado penosamente, ano após ano, num exercício de paciência e sensibilidade, até vir a ser tão tipicamente djaniriano quanto a própria assinatura da pintora. O desenho, na pintura de Djanira, é de grande importância, pois é pela linha, mais do que pela cor, que a artista estrutura suas obras, "amarrando-as" num arabesco significativo. Já a cor queda subordinada invariavelmente à cor ambiente, muito embora seja lícito falar numa cor Djanira. Esse é mesmo um dos segredos maiores da artista, cujos dotes de colorista foram sempre muito intensos. Assim, nos quadros realizados em Parati, o azul do mar diferencia-se nitidamente do azul do mar de São Luís do Maranhão, por exemplo: Djanira, embora subordinando-se ao real, transfigura-o, dá-lhe uma dimensão poética que na verdade não possui. Ainda com relação à cor, observe-se como a artista é parcimoniosa no emprego dos tons: jogando com umas poucas gamas, que alterna a terras e pretos, obtém não raro um efeito final multicolorido. Os tons frios ou terrosos parecem dominar sua pintura, quer porque os temas que persegue assim o exijam, quer porque correspondem melhor à sua íntima personalidade.
Não está entre as preocupações de Djanira a ilusão de matéria: assim, em certas pinturas de tema folclórico, o metal da espada dos figurantes não se diferencia, a rigor, de sua carnação. Em certos momentos, porém, talvez mais por instinto, Djanira empresta, ao que representa, a textura correta - a massa pegajosa do fubá, no moinho, o dorso pintalgado de uma vaca.
Djanira faz uso de pinceladas lisas, unidas, sem recurso ao empate: o toque do pincel teima em se conservar anônimo. A impressão de volume acha-se rigorosamente ausente: casas ou pessoas, animais, palmeiras ou embarcações não possuem plasticidade, dispensando a artista quase como regra geral o modelado, utilizando a cor sem sombras, num esquema eminentemente plano. Tais formas coloridas surgem aos olhos do espectador quase como colagens, elementos pespegados ao suporte. Do mesmo modo, a atmosfera está ausente: entre o primeiro plano e os subseqüentes não existem espaços intermediários, tudo ocorrendo num ar rarefeito - o ar da pintura, bem mais que o real.
Djanira retratou, já o dissemos, sua terra e sua gente; mas o fez enquanto pintora, e não como documentarista, evitando o pitoresco e o anedótico graças às suas qualidades de intérprete comovida de nossa realidade. Superando do mesmo modo o decorativo pelo expressivo, Djanira foi artista aparentemente mais sensível que vigorosa, e a rigor não se insere nesse ou naquele movimento, sendo antes independente e pessoal. Partindo de uma visão ingênua dos seres e das coisas, tendo estribado toda a sua experiência estética na tradição popular, Djanira chegaria a atingir, com o passar dos anos, uma depuração, uma sabedoria pictórica raras na arte nacional. E não sem uma ponta de malícia dizia:
- Posso ser ingênua, mas minha pintura não.
Surpreendentemente, para os últimos anos da vida, quando mais crítica era a sua saúde e mais difíceis as condições de trabalho, a pintora parecia achar-se na plenitude dos seus recursos expressivos e no apogeu de sua produção, como o atestam os três importantes murais de 1976 enfocando a extração do minério de ferro na cidade mineira de Itabira.
É importante reproduzir partes de um depoimento escrito por Djanira, em meados da década de 1960, para um álbum que então se publicou sobre seu trabalho, pois revela a artista em toda a sua lucidez a verdadeira dimensão:
- Desde minha primeira infância, nos latifúndios do café, não sei o que seja ociosidade, o denso enigma de viver sem propósitos. Criança ainda, trabalhando no campo, aprendi a separar os frutos da terra, a selecionar riquezas. Verifiquei, antes de saber o ABC, o quanto valem o amor e o preço da sobrevivência. Aprendi também o valor da dignidade humana, na vida simples que me cercava. E é no meio da gente humilde, nas horas de trabalho, de festas e tradições, que reencontro o melhor do meu sofrido coração. Como pintora, habito as ricas vertentes populares do Brasil, passando pelos sítios nacionalistas dos mestres Almeida Júnior, Teles Júnior, Di Cavalcanti, Luís Soares e Tarsila do Amaral. Tenho raízes plantadas na terra, não me envergonho de ser uma nativa. Confio no desenvolvimento de uma arte autenticamente nossa. Já fiz viagens de largo bordo, atravessei oceanos e cordilheiras, e nos caminhos vindos veio comigo a justa desconfiança das fáceis importações cosmopolitas. O cosmopolitismo desagrega os valores de uma nação, de um povo. Descreio na arte sem origens locais, embora seja internacionalista.
E logo em seguida:
- As prematuras e rudes atividades que exerci ensinaram-me a tranqüila compreensão da vida e das pessoas. Quero bem ao ser humano como quero bem às paisagens. Uma bela paisagem é tão confortante quanto um ser humano cheio de bondade. Uma jarra de flores na mesa pode ser a figura de um amigo. Um animal, o canto lírico de Francisco de Assis, santo de minha devoção católica. As cores das frutas podem ser uma verdade individual. Várias portas nos levam a participar da arte. Comecei desenhando o ambiente modesto do qual participava: a casa, minha varanda, meus animais, retratos de vizinhos. Tudo em elaboração lenta, porque nunca fui habilidosa, e a facilidade algumas vezes leva o artista a descuidar-se da disciplina, conduz à indolência, à auto-satisfação.
E numa profissão-de-fé prossegue:
- Minha visão de pintora procura o sentimento da vida, as motivações artísticas. Tema é razão para trabalho, é afeto e consciência nacional. A luta plástica é rigor artesanal, exigência criadora, é superação, porque o assunto não faz uma pintura ser válida. Um quadro não é uma superfície sentimental, e só vale quando importa numa meditada contribuição de cultura. Mantenho rigor nestes meus princípios, pois pintura não é um jogo gratuito, nem motivo para uma triste fuga a problemas individuais. Pintura não é uma palavra abstrata, ao sabor de momentâneas inspirações. É lealdade social e compromisso. Sou autodidata, meu ponto de partida fui eu mesma, tudo muito difícil, sozinha a abrir caminho. Com as minhas limitações, vou suportando sacrifícios para cumprir com meu dever. Sem cuidados formais não há obra de arte, é necessário critério com o desenho, a composição, a cor. Sou fundamentalmente humana e formalista.
Um colorido triste e soturno dominava os primeiros trabalhos de Djanira, na década de 1940. Pouco a pouco a cor foi se avivando, e o desenho, canhestro a princípio, ganhou
Vista de Congonhas, óleo s/ tela, 1962;
0,65 X 0,92, Museus Castro Maya, RJ.
Painel de azulejos, Túnel Santa Bárbara, Rio de Janeiro, 1964.
Três Orixás, óleo s/ tela, 1966;
1,29 X 1,93, Pinacoteca do Estado de São Paulo.
ECKHOUT, Albert (1610?-1665?). Nascido e falecido em Groningen (Países Baixos). Um dos pintores que trabalharam para o Conde Maurício de Nassau em Recife, entre 1637 e 1644. Era sobrinho do pintor Gheert Roeleffs, com quem pode ter estudado, mas faltam dados sobre data de nascimento e morte, acerca de sua formação e de sua produção anterior à vinda para o Brasil. Em fins de 1636 embarcou para Recife em companhia de Nassau e nessa cidade trabalhou até 1644, com possíveis viagens à Bahia (onde teria ido em 1641 para executar, por deferência do Conde, o retrato jamais localizado do Vice-Rei Jorge de Mascarenhas, Marquês de Montalvão), ao Chile e à costa africana (Ghana ou Angola). Regressando à Europa, em março de 1645 estava em Groningen e em 1647 em Amersfoort, onde se casou. Recomendado por Nassau, parte em 1653 para Dresden, trabalhando pelos próximos dez anos para o Eleitor João Jorge II. Em 1664 seu nome é mencionado num documento hoje conservado nos arquivos de Groningen, sendo essa a última referência histórica a seu respeito. Na verdade, e ao contrário de seu companheiro Frans Post, Eckhout caiu em quase total esquecimento, não sendo citado por exemplo nos velhos léxicos de pinturas, só sendo resgatado
Durante a permanência no Brasil, Eckhout incumbiu-se de pintar os habitantes, a fauna e a flora do país, enquanto Post se ocupava dos cenários naturais, que representou
As pinturas etnográficas de Eckhout, como Índio Tapuia, Mulato do Brasil etc., obedecem a um esquema composicional único, com predominância de elementos verticais em oposição a um horizonte baixo, geralmente a um terço da altura do quadro. Solitários, os personagens fitam face a face o espectador, destacando-se em meio à vegetação no exato centro do espaço pictórico. Acompanham-nos por vezes animais que sublinham a índole de cada retratado - domésticos, no caso dos Tupi já domesticados, peçonhentos, em se tratando dos indomáveis Tapuia. Um estudioso da obra de Eckhout, Enrico Schaeffer, observou com perspicácia que os personagens de suas pinturas "não possuem, com raras exceções, como por exemplo a Dança dos índios, geralmente considerada a sua obra-prima, aqueles movimentos dinâmicos do Barroco, mas sim a dureza estática de muitas obras dos pintores renascentistas, especialmente daqueles pintores menores da primeira metade do século anterior". De fato, inexiste na pintura de Eckhout a sugestão de movimento, tudo sendo representado em imobilidade, em meio a uma atmosfera rarefeita. Por outro lado, muito embora certas plantas e vegetais possam ser facilmente identificáveis, há espécies botânicas estilizadas, que por vezes chegam a lembrar as florestas imaginárias do Douanier Rousseau. Tal estilização contribui poderosamente para a aparência singularmente sinistra da Mulher Tapuia, que posa impassível tendo ainda nas mãos os restos de horrível banquete.
Muito mais modernas parecem-nos sem dúvida as naturezas-mortas, nas quais repercute longinquamente a lição de Caravaggio, se bem que lhes falte o que sobra nas do italiano - lirismo, aquela "elegance of every stalk, every vein, every twig" de que falou Berenson. Tanto às naturezas-mortas de Caravaggio quanto às de Eckhout falta a sugestão de espaço, tudo se desenvolvendo como que no vácuo, tal como ocorre (a comparação é ainda de Berenson) na pintura chinesa de flores. Mas nem seria necessário recorrer a Caravaggio para encontrar os precursores das naturezas-mortas de Eckhout: achamo-los na própria Holanda, com Pieter Aertsen, ou em Flandres, com Joachin Beuckelaer, um e outro de um prosaísmo que faria escola nos Países Baixos. De qualquer modo, não há como negar serem as naturezas-mortas de Eckhout uma inovação, ao tempo em que foram produzidas.
Entre os "presentes" que Nassau ofertou ao Eleitor de Brandeburgo em 1652 e ao Rei da França em 1678 achavam-se diversos originais de Eckhout pintados no Brasil. Outras obras suas podem ter ficado em poder do Conde e se perderam, quem sabe, nos incêndios que irromperam no Nassauischer em 1695 e na Mauritshuis em 1704, enquanto a Guerra de 1939-45 daria cabo de muitas, destruídas ou de paradeiro ignorado. Por isso mesmo reveste-se de grande importância a localização, em 1976, do Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae (que se julgava destruído em 1945, sob os escombros da Biblioteca de Berlim), na Biblioteca da Universidade Jaggielonska de Cracóvia, na Polônia. São centenas de pinturas a óleo e desenhos, a maioria podendo ser atribuída a Eckhout, embora talvez seja ainda cedo para conclusões. Quanto às pinturas de Eckhout feitas em Dresden entre 1653 e 1663, delas restaram as 80 representações de pássaros e aves brasileiros do pavilhão de Hoflössnitz em Radebeul, inteira ou parcialmente de sua autoria, tendo-se perdido ao fim da II Guerra Mundial as decorações do Castelo de Schwedt-a-d-Oder, entre elas uma cena brasileira de atmosfera tipicamente eckhoutiana.
Resta uma derradeira menção ao importante papel desempenhado pelas obras de Eckhout e dos demais pintores de Nassau para a eclosão e o posterior desenvolvimento do gosto pelo Exotismo nas artes decorativas européias do Séc. XVIII, graças ao enorme sucesso alcançado pelas Tapeçarias das Índias, nelas inspiradas.
Mulher tupinambá, 1641.
Mameluca, óleo s/ tela, 1641;
2,67 X 1,60.
Mestiço, óleo s/ tela, 1641;
2,65 X 1,63.
Negro, óleo s/ tela, 1641;
2,64 X 1,62, Museu de Copenhague.
Dança tapuia, óleo s/ madeira, s/ data;
1,68 X 2,94, Museu de Copenhague.
Composição com cocos, óleo s/ tela, s/ data;
0,90 X 0,90, Museu de Copenhague.
Mulher tapuia, óleo s/ tela, 1643;
2,66 X 1,59, Museu de Copenhague.
Homem tapuia, óleo s/ tela, 1643;
2,66 X 1,59, Museu de Copenhague.
A 14 de julho de 1817, com 23 anos, Ender chega ao Rio de Janeiro. Nos próximos dez meses retratou incansavelmente a paisagem, os tipos e os costumes do país, chegando a produzir cerca de 800 desenhos e aquarelas. A 1º de junho de 1818 retornou à Europa, onde deu prosseguimento à sua carreira. Assim, como pensionista da Academia viveu quatro anos na Itália, entre 1819 e 1822; em seguida, executou para Metternich uma série de doze vistas de Viena, e em 1826 passou quatro meses em Paris, ligando-se aos principais pintores da época na cidade. Voltando a Viena, tornou-se pintor privativo do Arquiduque Johann, irmão do Imperador Francisco I, executando para seu patrão as cerca de 800 cenas da Áustria
Thomas Ender cultivou a pintura a óleo e a aquarela, destacando-se principalmente nessa última técnica. Como paisagista, trabalhou não apenas em sua terra natal e no Brasil, mas também na Turquia, na Grécia e em outras regiões. Obviamente, a parte de sua produção que nos importa de perto é aquela feita no Brasil, no Rio de Janeiro e São Paulo e nas imediações de ambas as cidades. São desenhos e aquarelas de extrema sensibilidade, vazados num traço elegante e ágil e manchados com extraordinária habilidade e leveza; feitas de um jato, guardam, tais aquarelas, toda a emoção da primeira impressão sentida ante o motivo pelo artista. Nelas, Ender se revela um dos maiores pintores que estiveram no Brasil em princípios do Séc. XIX, e dos mais notáveis artistas austríacos de sua época.
A crônica da redescoberta do trabalho de Ender é curiosa e merece ser contada. As mais de 800 obras por ele produzidas no Brasil foram, como os demais materiais artísticos e científicos trazidos pela expedição de Spix e Von Martius, encaminhados pelo Imperador Francisco I ao Museu Brasileiro de Viena, criado por Von Schreibers e que se compunha de nada menos de 23 salas repletas de curiosidades. Com a morte do Imperador, o Museu foi fechado (1836), e os desenhos e aquarelas sumiram de circulação, menos aqueles que tinham sido reproduzidos em gravuras por Axman e Passini. Em 1950 o novo diretor do Gabinete Calcográfico da Academia de Belas Artes de Viena, Siegfried Freiberg, localizou as aquarelas brasileiras de Ender, organizando com elas uma exposição que teve boa repercussão no Brasil, tendo sido reapresentadas
A bordo da fragata Áustria, detalhe, aquarela, 1817;
0,44 X 0,40.
Paisagem, aquarela, 1818;
0,29 X 0,43, Museus Castro Maya, RJ.
Pão de Açúcar, aquarela, s/ data;
0,19 X 0,28, Biblioteca Nacional, RJ
F
FIGUEIREDO e Melo, Francisco Aurélio de (1854-1916). Nascido em Areia (PB) e falecido no Rio de Janeiro (RJ). Demonstrando desde cedo pendor para o desenho e a caricatura, a exemplo do irmão mais velho, o célebre Pedro Américo, foi enviado na adolescência para o Rio de Janeiro, a fim de cursar a Academia Imperial de Belas Artes, o que fez sob a orientação do próprio Pedro Américo e do eventual substituto desse, Julio Le Chevrel. Por volta de 1871, ainda estudante, publicou
Concluído o curso da Academia, Aurélio de Figueiredo parte para Florença, onde já se encontra o irmão mais velho: permanece na Europa de
Em fins de 1878 acha-se de novo no Brasil, dando início a curta colaboração
A década de 1890 será também de muita atividade: Aurélio de Figueiredo pinta, então, alguns de seus melhores trabalhos, como O Copo d'água (1894), além de se impor como autêntico líder de classe, tentando, embora em vão, congraçar os artistas em torno a uma Galeria Livre, um "centro de atividade e expansão artísticas" destinado a agitar o marasmo cultural da época.
Foi porém em 1905 que o artista pintou sua obra mais célebre, A Ilusão do Terceiro Reinado, feita com autorização do Congresso Federal e adquirida pelo Presidente Rodrigues Alves. Porque focaliza episódio desenvolvido durante o célebre Baile da Ilha Fiscal, último da Monarquia, a obra é mais conhecida, embora erroneamente, como O Último Baile da Ilha Fiscal, se bem que o próprio artista, em pelo menos uma ocasião, a tenha designado como O Advento da República (Renascença, nº 37, março de 1907).
Muitas outras composições históricas executou Aurélio, entre elas Abdicação de Pedro I, Tiradentes no Patíbulo, Redenção do Amazonas, Derradeira Sinfonia - obras de encomenda, ou que se destinavam a serem compradas por governos provinciais, com temas sugeridos por historiadores, e por isso mesmo mais preocupadas com aspectos documentais do que propriamente artísticos. Não será nessas grandes composições que encontraremos o melhor de Aurélio de Figueiredo, e sim nas obras de cavalete, "pequenas fantasias de pincel", como a algumas delas chamou Gonzaga Duque.
Aurélio foi também paisagista, pintou naturezas-mortas e flores, fez retratos e, para o Teatro Municipal do Rio de Janeiro, apresentou, em 1909, quatro deliciosos esbocetos; além do mais, praticou a escultura, foi poeta e romancista, tendo inclusive vencido um concurso instituído pela Folha Nova de São Paulo, com o romance Missionário. Deixou obra abundante, que expôs em numerosíssimos ensejos, não apenas no Rio e
Foi, como Pedro Américo, um romântico; mas sem os arroubos de teatralidade e grandiloqüência do irmão. Como artista, aliás, há quem o anteponha ao autor da Batalha do Avaí, pois foi sem dúvida maior colorista, dotado de maior emoção, e sobretudo, de uma visão mais atualizada, Faleceu a 9 de abril de 1916, deixando nas filhas o velho gosto musical da família, por elas concretizado na Escola Figueiredo, famosa na crônica do ensino de piano da antiga capital da República.
- Meu pai poderia ter comprado um diploma, mas se recusou, era homem escrupuloso. Fomos morar em Mogi das Cruzes, primeiro, onde trabalhamos nas plantações de chá de conhecidos. Depois, São Paulo, na Rua Bueno de Andrade e em seguida na Rua Augusta, onde abrimos uma quitanda. Eu era o entregador, colocava a cesta de verduras no meio do guidão da minha bicicleta e ia embora. Meu pai continuou numa atividade intelectual. Traduziu Monteiro Lobato para o japonês, fez ilustrações, escreveu artigos
Na Escola Profissional Getulio Vargas, que passou mais tarde a freqüentar, fez amizade com outros futuros artistas, como Otávio Araújo, Grassmann e Sacilotto. A partir de então sua vocação artística se define. Shiró comparece às sessões de modelo-vivo do Grupo Santa Helena e em pouco tempo surgem-lhe as primeiras pinturas. Tinha apenas 19 anos quando participou da mostra 19 Pintores, em 1947, expondo paisagens e naturezas-mortas expressionistas, de colorido ainda indeciso, mas vazadas num desenho já nervoso e dramático. Ao mesmo tempo, trabalhou sucessivamente como empregado numa fábrica de móveis e letrista da Metro Goldwyn Mayer, e ao se transferir para o Rio de Janeiro, torna-se ajudante na molduraria do grande pintor Kaminagai, a quem seu pai confiara sua educação artística.
Essa permanência de Shiró no Rio, embora curta, produziu frutos: primeiro, a medalha de bronze no Salão Nacional de Belas Artes, em 1949; no ano seguinte, a primeira exposição, no Diretório Acadêmico da Escola Nacional de Belas Artes, com apresentação generosa de Antônio Bento. Retornando em
Do ponto de vista do estilo, a arte de Flávio-Shiró tem atravessado vários estágios, começando, como já foi dito, pelo figurativismo expressionista dos quadros expostos em 1947 na mostra dos 19; veio em seguida uma fase de progressivo afastamento da representação, e no fim da década de 1950 Shiró foi um dos pioneiros, no Brasil, do Abstracionismo Informal, sem abandonar sua veia expressionista; em meados da década seguinte, Shiró seria igualmente dos primeiros adeptos da Nova Figuração, sempre, porém, sem abrir mão do seu expressionismo, por vezes mesclado a elementos fantásticos. Na verdade, Shiró sempre oscilou entre as vertentes figurativa e não-figurativa da arte, numa deliberada ambigüidade. Nos óleos mais recentes, por exemplo, por entre as grandes massas cromáticas e os violentos efeitos de textura ou grafismo, pode-se adivinhar sugestões e restos de formas orgânicas - não apenas os " dentes, maxilares e bocas" a que se referiu explicitamente, como também vísceras e aberrações anatômicas, torsos truncados, cabeças disformes, figuras de totens ou de seres ancestrais que traduzem um mundo-de-idéias sofrido e torturado, numa angústia existencial. O crítico Olívio Tavares de Araújo assim se referiu em
- Não é regra, entre os artistas visuais, aposse de uma mentalidade especulativa aguçada, se bem que haja Kandinskys e Mondrians como exceção. Mas Flávio-Shiró é, inelutavelmente, um homem de formas e de idéias. Contamina-o, nestas, um pessimismo existencial básico, a visão trágica da condição humana, atada a seu destino de Sísifo, erodida por princípio pela única certeza definitiva: a da morte. Mais ainda: como homem do seu tempo, à angústia da espécie Shiró acrescenta a angústia metafísica - a qual, como ele mesmo lembra, não existia para os grandes pintores do passado. Sob a constatação da morte inevitável do indivíduo surgem hoje, como sentimentos, a noção nietszcheana de que Deus também morreu - e de que o planeta e o universo correm o mesmo risco. Tudo isso é o que dá seiva e forma à pintura de Shiró.
Flávio-Shiró tem expostos freqüentemente, individual e coletivamente, no Brasil e em países como Japão, França, Bélgica, Estados Unidos, Reino Unido e Itália, e ainda em 1993 e 1994 o Hara Museum de Tóquio e o MAM do Rio de Janeiro dedicaram-lhe retrospectivas, o mesmo fazendo em 1998 o Museu de Arte Contemporânea de Niteroi.
Délfica, óleo s/ tela, 1963;
1,70 X 2,36, Museu de Arte Contemporânea da USP.
Máquina humana, óleo s/ tela, 1969;
1,26 X 2,03, Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Flexor começou a pintar sob a égide do Neo-impressionismo, e sua primeira especialidade seria a pintura de nus. Mais tarde sofreu o impacto do Cubismo, e em especial do grupo da Séction d'Or. Sua pintura, na década de 1930, envelopava um conteúdo expressionista numa forma que, em última análise, reportava-se aos postulados cubistas, com ênfase na construção do quadro. A Guerra de 1939 atingiu fundamente o artista, modificando-lhe a paleta - que se restringiu aos cinzas e pretos - e lhe aprofundando a temática religiosa, ocorrendo com freqüência crescente os temas da Via Sacra e da Paixão, tão condizentes, de resto, com o trágico momento político por que atravessava então a Europa. Seria já no Brasil e
Decorridos dois anos de fixação no Brasil, a linguagem plástica de Flexor principia a modificar-se, sob o impacto da cor brasileira e do barroquismo dos Trópicos: numa individual efetuada em 1948 em Paris, o pintor revela-se de posse de um colorido diferente e de uma nova temática, postando-se, estilisticamente, a meio caminho entre o Figurativismo e o Não-Figurativismo. Mais ou menos pela mesma época, motivado pela doutrinação do crítico Leon Degand - a quem conhecera ainda em Paris, e que na época dirigia,
Uma das séries mais notáveis de Flexor surgiria em 1954: os "vai-e-vem diagonais", nos quais ainda repercutem muito fortes os princípios colocados em circulação por Gleizes, Metzinger,
- Suas primeiras obras brasileiras consagradas às "abstrações tropicais", traduzem um lirismo formal e colorido. Segue-se um momento de serenidade, no qual, orientado por suas predileções religiosas, Samson Flexor atinge uma síntese de expressão. Vem depois um período de abstração fria e cristalina, próxima do Construtivismo e das preocupações óticas e ambíguas da Op Art. Finalmente, dá-se o alçar vôo para as pesquisas muito recentes em que o olho "escuta" as pulsações dos elementos e faz eclodir, na extensão da tela, estranhas crateras, flores venenosas, ondas indomadas, signos de uma totalidade plástica e poética, a que aspira Flexor.
Flexor (que em 1955 naturalizou-se brasileiro) efetuou em 1957 viagem aos Estados Unidos, tendo então exposto na Roland de Aenlle Gallery de Nova Iorque; e em 1963 retornou, pela última vez, a Paris, a fim de expor individualmente na Galerie Georges Bongers. Em meados da década de 1960, sua pintura, após atravessar curto interlúdio em que o artista deu prioridade ao gestual e à matéria, com belos efeitos de transparência e diafanização tonal, retomou o filão figurativista, surgindo então os bípedes, grandes superfícies tomadas de alto a baixo por configurações arquetípicas de seres humanos, monumentais e hieráticos.
Entre as individuais realizadas por Flexor no Brasil citem-se as de 1950, 1954 e 1961 no MAM de São Paulo, as de 1955, 1961 e 1968 (retrospectiva) no MAM do Rio de Janeiro e a de 1960 no Museu de Arte de Belo Horizonte. No que respeita a coletivas devem ser mencionados o Salão Nacional de Arte Moderna (
Aos pés da Cruz, óleo s/ tela, 1949;
1,30 X 0,95, Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Geométrico grande, óleo s/ tela, 1954;
1,60 X 1,80, Museu de Arte Contemporânea da USP.
Bípede, óleo s/ tela, 1967;
1,91 X 1,35, Pinacoteca do Estado de São Paulo.
II Bienal Nacional de Artes Plásticas,
Siron tem realizado inúmeras mostras individuais em cidades como Brasília, Goiânia, São Paulo, Recife, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Curitiba, Salvador e Belo Horizonte, culminando com a grande mostra que itinerou por vários museus brasileiros em 1997, para comemorar os seus 50 anos; também vem participando de um sem-número de coletivas dentro e fora do país, entre elas a Bienal de São Paulo (1975, 1977, 1989, 1991), a IV Bienal de Medellin e a V Bienal de Valparaíso ( 1981); Panorama de Arte Atual Brasileira (1983, MAM-SP), A Cor e o Desenho no Brasil, que percorreu várias cidades da Europa e do Japão em 1984; IV Bienal Ibero-Americana do Auto-Retrato (1984, México), Tradição e Ruptura (1984, São Paulo), Today’s Art of Brazil (1985, Tóquio), Expressionismo no Brasil: Heranças e Afinidades (1985, São Paulo), Brasilidade e Independência (1985, Brasília), Modernidade - Arte Brasileira do Século XX (1987, MAM de Paris e de São Paulo), Arte Fantástica (1987, Indianapolis, Nova York, Miami e México), Brasil Já (1988, Leverkusen, Stuttgart e Hannover), Figuración y Fabulación (1990, Caracas), Viva Brasil Viva (1991, Estocolmo), Bienal Brasil Século XX 1994, São Paulo), Grito (1996, MNBA) e I Bienal do Mercosul (1997, Porto Alegre).
Nascido numa cidade perdida no tempo e no espaço, era natural que Siron sentisse como artista a necessidade de exorcizar seus fantasmas pela prática de um tipo personalíssimo de arte que outra coisa não é senão a catarse de sombrias obsessões. Walmir Ayala contou como trouxe da infância "as raízes do grotesco e do irreal, histórias de fantasma contadas pela mãe, o livro sobre Bosch presenteado pelo avô, a vizinhança de um manicômio". Por sua vez Aline Figueiredo descreveu seu método de trabalho:
- Seu processo criativo começa na intenção de fazer uma crônica de suas impressões do cotidiano. Nessa tarefa ele quer captar especialmente o lado absurdo dos fatos corriqueiros. Trabalha por negociações. Diariamente está munido de um pequeno bloco onde faz rápidos desenhos enquanto conversa ao telefone ou bebe com amigos nos bares de Goiânia. Registra pessoas e animais, figuras toscas e deformadas, detalhes eróticos, cenas humoradas ou mórbidas, interpreta o que vê ou lê. Mais tarde, constata que seu caderno de bolso está repleto de registros grotescos e insólitos. Entretanto, Siron não fica preso a esses desenhos iniciais que lhe servem, antes de tudo, como exercício de indagação para ordenar seu raciocínio plástico. Ao trabalhar essas idéias na tela, ele as coloca num cenário rico de implicações, onde o efeito pictórico fala mais alto. Dono de um ótimo e particular domínio técnico, seu colorido de tons baixos, cinzas e marrons acrescenta uma atmosfera dramática aos seus enredos.
E prossegue a crítica matogrossense, sem dúvida de suas melhores intérpretes:
- Preferindo falar amplamente do homem e sua ferocidade, Siron desenvolveu muitas séries, tendo sempre em ara esse personagem como um animal perigoso. Na cabeça - o olhar perverso e o ranger de dentes - está o ponto principal de referência dessas implicações. Há um grande sarcasmo em toda a obra, povoada de criaturas grotescamente carcomidas e decrépitas. Agrupadas ou isoladas, suas personagens se entre-autodevoram num clima de agressividade. Na luta entre o racional e o irracional se evidencia o último, responsável pela degradação humana. E na luta pela sobrevivência, ele aponta o lado sórdido e cruel das tramas internas do poder. Assim, vem acrescentando à sua fileira de personagens os novos ricos, mandatários, executivos, panfletários, comerciantes, corruptos, loucos, bestas e vítimas, componentes do quadro capitalista.
Não abrindo mão da figura, principalmente humana, ou do assunto, praticando uma pintura fantástico-expressionista não sem afinidades com a dos grandes pintores visionários ou moralistas de todos os tempos, de Bosch a Grosz, de Bacon a Goya, Siron possui um universo pictórico pessoal, tanto tematicamente quanto pela qualidade de tudo quanto realiza. Seu mundo-de-idéias revela obsessão pela idéia do Mal, fascínio pelo disforme, desconfiança e sentimento de culpa em relação ao sexo, a pesada herança cristã da culpa, da queda e da perdição. Seus quadros não são exercícios gratuitos de pintura: são também libelo, denúncia, indignação - como o comprovam as cáusticas obras sobre o acidente com o césio 137 em Goiânia, o massacre dos ianomânis ou os escândalos da Era Collor, entre 1990 e 1993 -, pois a Siron também se aplicam as palavras que há mais de 400 anos o Frade Joseph Siguenza proferiu acerca de Jheronimus Bosch, ao ver as pinturas dele conservadas no Escorial: "A diferença que a meu ver existe entre as obras desse pintor e a dos demais pintores é que todos pintaram o homem tal como é por fora, só ele ousou pintá-lo como é por dentro".
Rainha, óleo s/ madeira, 1975;
0,89 X 0,89, Museu Nacional de Belas Artes, RJ.
Título proibido, óleo s/ tela, 1984;
1,80 X 1,70, Museu de Arte Contemporânea da USP.
sua cidade natal. Sentindo a aproximação da guerra, mudou-se para o Brasil em 1940, radicando-se inicialmente em Lins, onde, como Mabe - a quem conheceu nessa ocasião - trabalha como lavrador, ensaiando, nas horas de folga, os primeiros tímidos passos na arte da pintura. Em 1946 muda-se para o Rio de Janeiro, tornando-se aluno de Tadashi Kaminagai, que exercerá forte influência sobre os começos de sua pintura. Voltando a São Paulo, monta em 1948 uma oficina de molduras no Largo Guanabara, à qual acorrem pouco a pouco artistas de tendências afins. Surgirá assim, em 1948, o Grupo Guanabara, aglutinado em torno a Fukushima e formado por pintores como Takaoka, Tamaki, Handa, Tanaka, Suzuki, Higaki, Massuda e Mori, mais Arcangelo Ianelli, Alzira Pecorari e outros. De 1950 até 1959 o Grupo Guanabara realizou cinco exposições, deixando de existir nesse último ano, e pondo fim a uma tendência gregária que se manifestara na arte brasileira na década de 1930.
Fukushima participou de coletivas como a Bienal de São Paulo (
Sua pintura, a partir de primícias pós-impressionistas, foi adquirindo em começos da década de 1950 uma estruturação maior, sob a influência dos postulados cubistas. Por volta de 1957, porém, Fukushima adere ao abstracionismo informal (do qual seria um dos mais típicos representantes no Brasil), apaixonado pelos efeitos de matéria que iriam caracterizar doravante toda a sua produção. A tal respeito, vale a pena transcrever o que sobre ele escreveu Mario Pedrosa, em 1961:
- Para ele a matéria é tudo, o resto, nada. Nesse sentido, não há pintor mais clara e simpaticamente hedonista do que ele. Ama a pintura, e com que amor! porque ama a matéria, que na sensibilidade oriental só pode ser bela, já que é a matriz generosa, embora contraditória, da vida.
Os efeitos texturais, espargidos a espátula em largos gestos sobre o suporte, combinam-se a efeitos admiráveis de cor para, gradativamente, darem vida a uma série de massas que parecem brotadas de dentro da tela, "uma vida nova que jamais existiu nesse mundo", como se expressou o pintor ele mesmo. Paisagens abstratizadas em que os tons dourados, pretos, vermelhos, verdes e azuis parecem cantar, essa pintura de Fukushima evoca sem dúvida, sob roupagens ocidentais contemporâneas, a antiquíssima arte tradicional nipônica, representando portanto uma síntese de Oriente e Ocidente, de Antigo e de Novo a ponto de sobre ela ter-se assim externado Walter Zanini, em 1966:
- Reconhecemos na diafanidade de sua matéria eterizada as tradições figurativas da arte japonesa, como os célebres e aristocráticos fusuma da Época Momoyama.
Vento e mar, óleo s/ tela, 1960;
1,09 X 1,35, Museu de Arte Contemporânea da USP.
Premier regard, óleo s/ tela, 1969;
1,30 X 1,95, coleção particular.
G
GERCHMAN, Rubens (1942). Nascido no Rio de Janeiro. Iniciou sua aprendizagem artística em 1957, cursando as aulas noturnas de Desenho do Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, e já no ano seguinte começou a trabalhar como programador visual em revistas e casas editoras cariocas, o que fez até 1966. Em 1960 matriculou-se na Escola Nacional de Belas Artes, tendo sido aluno de Xilogravura de Adir Botelho, mas afastando-se do curso em
Também em 1965 participou de Opinião 65 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, tornando-se desde logo um dos principais representantes da vanguarda carioca - posição que sua presença em futuras coletivas de vanguarda, como Pare! (RJ, 1966), Opinião 66 (Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro) e Nova Objetividade Brasileira (Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1967) somente viria reforçar. Num depoimento publicado no mesmo ano de 1967 na revista GAM, Gerchman, com cerca de 25 anos, assim sintetizava sua carreira até então:
- A primeira exposição, em 1964, "quando descobri meu mundo interior"; a exposição na Galeria Relevo, em 1965, "onde conscientizando a multidão pela primeira vez, situei-me no mundo"; o quadro-cartaz do "Casal Fartura", exposto em Opinião 65, "primeira tentativa de utilizar o cartaz e a imagem de jornal ou revista em um novo contexto - a tela, este lugar sagrado"; a exposição Pare! na G-4, ao lado de Vergara e Escosteguy, cujo happening "foi a minha primeira experiência no sentido de colocar o espectador dentro de uma estrutura de madeira, revestida de plástico transparente, dentro do qual ficava preso (o plástico era grampeado depois) como em uma jaula. Pelo lado de fora, eu pintava o plástico com spray colorido, fazendo os espectadores desaparecerem paulatinamente por detrás das cores. Acabando a pintura, estava acabado o happening e os espectadores tinham de debater-se lá dentro para arrebentar a estrutura de madeira e libertar-se. Pregado por fora, havia um cartaz: Elevador Social; a filmagem de Ver e Ouvir, de Antonio Carlos Fontoura, cuja terceira parte, " Os Desconhecidos", " foi quase totalmente rodada na rua, com os quadros e objetos na calçada, no meio do tráfego, do povo, com entrevistas de som direto e usando a técnica do cinema-verdade. Para mim, essa experiência foi vital"; enfim, "A Marmita" - primeira tentativa de uma forma de participação maior por parte do espectador, ao sugerir que ele segurasse a alça do utensílio" - e as duas peças enviadas à IX Bienal de São Paulo, "Sempre Perto de Ti" e "A Cidade", "em que os espectadores, em número de dois, entram em cada casa-abrigo, totalmente de plástico e em número de quatro; de dentro do abrigo, de estrutura tão leve que pode ser deslocado com facilidade pelo casal, pode-se ver o mundo exterior, através de uma viseira de plástico".
E Gerchman concluía seu depoimento fazendo uma verdadeira profissão-de fé em versos:
- "Dar, realisticamente, imagens urbanas / Múltiplas, facetadas, simultâneas / Mural fotográfico para ser lido / Somar indefinidamente novas imagens/ Envolvido pelos acontecimentos / O artista testemunha / E faz-se presente".
Conquistando em 1967 o prêmio de viagem ao estrangeiro do Salão Nacional de Arte Moderna, em 1968 o artista parte para os Estados Unidos da América, vivendo até 1972
Rubens Gerchman, que em 1981 realizou um painel de azulejos para o edifício do SESC
A principio, nos anos iniciais da década de 1960, Gerchman praticou uma arte de cunho expressionista voltada para a realidade cotidiana, tal como refletida nas páginas dos jornais e das revistas populares. Foi o momento das "moradias coletivas", em que o espaço da tela via-se cumulado de rostos indefinidos, comprimindo-se, espremendo-se, anulando-se uns aos outros na rua, na praia, nos estádios - a multidão anônima, sonhadora, facilmente iludível pelos carnês fartura e outras promessas de felicidade nunca concretizadas. Suas pinturas e relevos de então representam a fauna pobre do subúrbios, "desaparecidos" e "professorinhas", "belas lindonéias" e torcedores de futebol, operários para os quais "não há vagas" ou meros passageiros enlatados em ônibus ou em elevadores, tudo extravasado com deliberado mau gosto, sintetizando o kítsch e o cafajestismo estético, e não raro acompanhado de palavras ou mesmo frases completas, do tipo "Assegure seu Futuro" ou "Vai Comer e Morar um Ano de Graça com Toda a Família", repisando a imagem, enfatizando o conceito que a figura expressa.
Após curto intervalo em que enfocava os elementos naturais ou produzia esculturas-palavras - "AR", "SOS", etc. -, Gerchman embarca para os Estados Unidos com o prêmio de viagem do Salão de 1967.
- Aqui no Brasil diziam que eu era Pop. Fui checar as fontes e nada vi igual ao que fazia, a não ser alguma semelhança temática em murais realizados em comunidades marginais, de porto-riquenhos e chicanos.
Por um momento pensou em ficar, em instalar-se definitivamente
- Digamos, para simplificar, que de início seu olhar estava voltado para o que acontecia do lado de fora, na urbs, nos meios de comunicação massiva. Anos 60 fase negra, imagens fortes, marcadamente sociais. Nos anos 70, mais reflexivos, Gerchman interiorizou estas imagens, ou melhor, buscou-as no seu circuito mais próximo e íntimo, como que trocou o jornal pelo álbum de família. No primeiro bloco, havia um certo tom de raiva, uma postura mais crítica, as imagens chegando a ser recortadas em madeira, como se ele quisesse carregá-las, como o operário carrega sua marmita. Recorte agressivo no estrato social brasileiro. No segundo bloco emerge a própria história do artista, sua biografia, um Mercury, o filho, Mira, o pai, imagens carregadas de lirismo e poesia. Hoje, todas estas imagens, já tão nossas, se confundem ou se diluem na própria matéria pictórica. O grande amor de Gerchman é, sempre foi, a pintura, que ele respira como o ar que o mantém vivo, que ele faz confundir integralmente com sua vida. Como se viver, para ele fosse produzir imagens, isto é, pinturas. Porque, hoje, mais livre, tudo nele vira pintura, de menino sentado no cocuruto da pedra como um pequeno monge a contemplar as irrigações gráficas no lago da tela, ou um petit tarzan engatinhando na selva da cidade grande, o menino no colo da mãe, entre as pernas do pai, jogando futebol de várzea num subúrbio qualquer do Rio, menino que some para reaparecer depois, já homem, no banco de trás, transando aquela que já foi Miss. Madura, a pintura de Gerchman explode generosa, farta, avassaladora mesmo, sem qualquer compromisso estilístico, ora crescendo como uma vegetação de arabescos, de grafitos, quase-letras, ora criando áreas compactadas, de cores surdas ou vibrantes. O coração vibra, é tempo de pintura. Gerchman está feliz, é isso o que diz sua pintura atual.
A bela Lindonéia, serigrafia,
0,50 X 0,50, Museu Nacional de Belas Artes, RJ.
Ar, técnica mista.
Após uma passagem por Espanha e Portugal, seguida de curta permanência no Brasil, Gomide achava-se de novo em Genebra em 1920, de onde ganharia em 1923 Paris. Na capital francesa conheceu Picasso, Braque, Picabia, Severini, Lhote e outros pintores ligados ao Cubismo e demais movimentos vanguardistas de arte, sofrendo-lhes o impacto, mesclado embora à influência ainda mais sensível do Art Déco, particularmente marcante em aquarelas e guaches dos começos da década de 1920. Datam de 1923 duas de suas mais características pinturas cubistas, Paisagem com barcos e Ponte St. Michel, ambas do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. A marca cubista iria abrandar-se nos próximos anos, mas é ainda visível em princípios da década de 1930, de vez que data de 1932 o admirável guache da Col. Gilberto Chateaubriand, do Rio de Janeiro, que combina um mostrador de relógio a signos tipográficos e musicais - obra essa não sem vinculação, também, com o Futurismo.
Durante o tempo em que viveu em França, Gomide expôs no Salon d'Automne e no Salon des Indépendants. Numa estada em Toulouse dedicou-se à aprendizagem do afresco com Marcel Lenoir, técnica que desde então iria tornar-se de sua predileção, e que foi dos primeiros a introduzir no Brasil. Como ajudante de Lenoir, trabalhou em alguns afrescos executados pelo mestre. Também aprendeu e se dedicou em França a técnicas como a criação de padrões têxteis e o vitralismo.
Em fins de 1926 Gomide veio outra vez rapidamente ao Brasil, expondo na ocasião
- Antonio Gomide conseguiu duas vitórias grandes: libertar-se de qualquer realismo objetivo, e ao mesmo tempo, não cair na estilização sentimental. Para mim, se há um senão nestes afrescos de inspiração brasílica, ele está no tipo dos índios. A isso Antonio Gomide ainda não conseguiu dar uma solução que satisfaça. Os nossos índios em geral são de uma feiúra aplicada e o pintor não conseguiu tirar-lhes da caratonha uma estilização plástica que fosse ao mesmo tempo característica e agradável. Pôs de lado o problema e se aproveitou das figuras de seu ideal, se contentando em lhes bronzear os volumes. As figuras do afresco saíram puras e bem ritmadas mas o problema não se resolveu.
Em 1928 Gomide de novo regressou à Europa, para só alguns meses depois voltar ao Brasil, agora em caráter definitivo, aos 34 anos, depois de uma ausência de cerca de 16 anos. Radicando-se
A década de 1930 é de fundamental importância na carreira do artista, que não somente se entrega à elaboração de uma série de grandes afrescos
- Pintor atraído de início pelas soluções formalistas, quando se aplica numa temática alternadamente sagrada e profana, tende mais tarde a dar vazão à sua mentalidade profundamente popular, expressa igualmente no modus vivendi. Se podemos registrar uma certa dispersão e inconstância nos objetivos de Gomide, forçoso é reconhecer as virtudes que dominam sua obra, do ponto de vista estilístico e psicológico, que a investem de um clima peculiar inconfundível e que na sua hora souberam trazer uma contribuição vital ao nosso desenvolvimento artístico.
Porto, óleo s/ tela, 1922;
0,41 X 0,33, Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Sem título, óleo s/ tela, cerca de 1923;
0,46 X 0,38, Museu de Arte Contemporânea da USP.
Composição com figura, tecido, 1925;
1,86 X 1,41, Palácio Bandeirantes, SP.
O desenho, que praticava autodidaticamente, será a sólida base sobre a qual construirá, desde então, sua carreira. Um colega de pensão que lhe viu alguns trabalhos aproximou-o de Portinari, e a conselhos desse Graciano passou a freqüentar o ateliê de Waldemar da Costa e a lhe absorver os ensinamentos (1935 -37). Do desenho logo passa à aquarela, e daí ao óleo. Segue também como aluno livre o curso de desenho da Escola Paulista de Belas Artes, até 1938.
Instalara-se, em 1937, no Palacete Santa Helena; ali, junto com Rebolo, Zanini, Bonadei e outros pintores que trabalhavam e pesquisavam em atmosfera de íntima cooperação, realizou avanços técnicos notáveis. Como diria, muitos anos mais tarde, "o Grupo Santa Helena poderia não ter uma tese. Era um grupo mais de pintores artesãos, que procuravam reformar a pintura acadêmica, e havia um trânsito de conhecimentos entre todos eles: Volpi, Rebolo, Bonadei, Pennacchi, Rosa e uma porção deles. Permutavam conhecimentos, permutavam técnicas, e acabaram fazendo uma coisa, para a época, muito importante".
Realizou sua primeira exposição em 1937, no Pará, com outros integrantes do Grupo Santa Helena. Do Grupo passara à Família Artística Paulista (da qual seria presidente, em 1939) e ao Sindicato dos Artistas Plásticos, participando regularmente de suas exposições. Mas só em 1941 fez uma individual, no Centro Paranaense
A partir de 1940, expondo no Salão Nacional de Belas Artes (Divisão Moderna), recebe sucessivamente menção honrosa em pintura (1940), medalha de prata em desenho (1941), medalha de ouro em pintura (1941) e prêmio de viagem ao estrangeiro (1948), com o qual embarca, em 1949, para uma permanência de dois anos em França, Itália, Bélgica e outros países. Ao retornar expôs 30 pinturas, lançando-se depois à execução de uma série enorme de painéis
- O painel é a forma mais democrática da pintura. O governo, se quisesse, poderia mandar pintar painéis em logradouros públicos, como estações, campos de esporte, etc. É uma forma de levar a arte ao povo, de imortalizar momentos históricos, de maneira a que todos tenham possibilidades de vê-los. A tela pertence a uma minoria. O painel a todos quantos queiram vê-lo.
Graciano, que também se dedicou à cenografia e fez costumes para teatro e balé, destacou-se como ilustrador de livros e também desempenhou alguns cargos públicos, como a direção da Pinacoteca do Estado de São Paulo (para a qual foi nomeado em 1971) e a função de adido cultural em Paris.
No decurso de toda a sua carreira, Graciano permaneceu fiel ao figurativismo, jamais tendo sequer de leve sentido a sedução do Abstracionismo. O artista, numa entrevista de 1972, explicaria, não sem certo orgulho:
- Meu negócio é a figura, que nunca abandonei.
Estudando essa aparente invulnerabilidade de Graciano ao Não-Figurativismo, José Geraldo Vieira explicou-a de modo engenhoso, num texto de 1957 publicado em Habitat:
- A quem porventura estranhar que Clovis Graciano, sempre tão arguto, haja permanecido renitentemente na figura humana e na natureza, se pode responder que, de início foi forçosamente um pintor abstrato por profissão. Pois pintando postes e porteiras, em eventuais itinerários de tabuletas e ramais duma estrada de ferro, deixou em cima de muita tora, com aspecto tabu de totem, cores concretas, sem gama, suficientemente densas; que em discos semafóricos de desvios e baldeações deixou muitas bolas cromáticas no gênero das de Sophie Tauber-Arp.
Figurativista, portanto, e antes de tudo, expressionista em seguida e por temperamento, de um Expressionismo comedido em certos momentos de sua evolução embora suficientemente forte para gerar, sobretudo na fase inicial de sua carreira, auto-retratos ciclópicos, figuras deformadas, personagens de braços erguidos e mãos crispadas, o filho morto aos pés. Veja-se como exemplo o Auto-Retrato de 1943, ou Bombardeio, desse mesmo ano.
Graciano é pintor freqüentemente confessional em obras como as acima citadas; até porque quando determinados temas repetem-se incessantemente na obra de um artista, é fora de dúvida que correspondem àquela textura da alma de que falou René Huyghe, a catarse de uma obsessão, traduzida, através de sutis mecanismos, em forma concreta e cor emotiva; foi Mario de Andrade quem primeiro observou, em 1944, "a insistência com que o artista persegue, pela negativa, o órgão visual das suas figuras, ora retirando francamente o olho delas, ora o embaçando apenas (constâncias que atravessam toda a obra dele), ora ferindo horrivelmente o olho - como numa das três telas da série Depois do Bombardeio, de 1942").
Mas, como tantos outros pintores brasileiros do seu tempo, Graciano sofreu por vezes a influência do Cubismo picassiano – e talvez seja lícito ver, nessas mesmas pinturas da série Bombardeio, um eco de Guernica, que a antecedeu somente em alguns anos. Mais do que Picasso, foi porém Cézanne que o marcou. Curiosamente, não é nas naturezas-mortas que a nota cézanniana repercute, ao contrário: as naturezas-mortas de Graciano permanecem fiéis à tradição, e numa, de cerca de 1942, é possível até mesmo ver insetos e larvas, as mesmas que pululam sorrateiras nas maravilhosas flores de Bruegel de Velours ou de Daniel Seghers, numa doentia alusão à morte e à destruição da matéria. Não: a lição de Cézanne assimilou-a Graciano ao ordenar, de modo racional, os grandes espaços de seus painéis, ao compor com preocupações de geômetra o espaço das suas paisagens bíblicas ou das cenas de músicos e passarinheiros, nas quais o partido figurativo do primeiro plano contrasta com a esquematização geométrica que lhe serve de cenário.
Retratando cavalos e cavaleiros, músicos e dançarinos que se contorcem em poses inusuais, passarinheiros e outros temas semelhantes, Graciano roçou por vezes no fantástico e no insólito. Assim, numa tela de 1969, Cavalos, não há como não pensar em Füssli ou em Ryder; e há algumas telas aparentemente singelas de passarinheiros e de dançarinos que, num exame mais profundo, revelam-se inquietantes ou fantasmagóricos, em seu aglomerado de braços e pernas, roupas esvoaçantes e pássaros noturnos.
Quando volta da Europa, após o prêmio de viagem, traz Graciano na bagagem diversas pinturas enfocando o tema de São Jorge e o Dragão, influência, por certo, do que viu nos museus da Itália e de outros países visitados. É possível ver, no tema, o eco de Paolo Ucello e de outros artistas peninsulares - o Ucello da Batalha de São Romano, com seus cavalos empinados e seus fundos montanhosos, ao longe. Ou dever-se-ia ver, ainda aqui, o eterno combate entre as forças positivas e as negativas da alma, como escreveu Renê Huyghe, aliás a respeito do São Jorge e o Dragão de Rafael?
Nenhuma influência superou contudo a de Portinari, companheiro mais velho, conselheiro e amigo, com quem chegou a trabalhar algum tempo durante sua permanência no Rio de Janeiro. Portinari marcou-o técnica, temática, estilisticamente: uma pintura como Família, de 1945, vincula-se às grandes composições de tema nordestino que Portinari realizara pouco antes, assim como os vários São Franciscos que Graciano pintou ao longo dos anos apontam, todos, para a Pampulha. Inversamente, há quem sustente que Portinari colheu nos Espantalhos de Graciano a motivação para os muitos que em seguida faria.
Todas essas influências não bastam para sufocar ou esconder as características pessoais do estilo de Graciano, resumidas por Almeida Sales num texto de 1972 como "presença saliente do desenho, composição solenemente cenográfica e, na temática, o afã de conferir dignidade à humildade". Sobretudo a cenografia parece marcar toda a obra de Graciano; mas também destacaríamos a tendência, que possui o artista, em congelar, em pleno ar, no meio de um movimento, massas e volumes, temporariamente desprovidos de gravidade; tendência mais de cineasta que de pintor, e da qual é exemplo o quadro O Domador, de 1974, no qual a perna do cavaleiro forma uma paralela com o dorso do animal, no instante anterior ao em que irá montá-lo. Essa tendência ao movimento, combinada talvez a algum resquício do Cubismo, é responsável também pelas pinturas em que os limites das formas se interpenetram, como numa justaposição de negativos fotográficos, formando o que chamamos de "o estilo raios-X", Mulher na Cadeira, 1942, O Violinista, 1945, etc.
Três homens, óleo s/ tela, 1936;
0,72 X 0,60, Palácio Bandeirantes, SP.
Dança das bandeirinhas, detalhe, têmpera s/ tela, 1943;
0,57 X 0,46, Museu de Arte Contemporânea da USP.
Impressionismo e cubismo, óleo s/ madeira, s/ data;
3,50 X 1,30, Palácio Bandeirantes, SP.
Em 1920 Graz vem ao Brasil, onde já se encontrava Regina Gomide, com quem se casa em julho do mesmo ano. Em artigo publicado em Papel e Tinta, em junho de 1920, escreve Ciro Mendes:
- John Graz, reputado na Europa pelos seus admiráveis vitrais e pela moderníssima composição de seus quadros é um elemento que a nossa capital devia aproveitar para a definitiva formação de nossa cultura. As nossas igrejas precisam de vitrais artísticos e não dos vitrais de bazar que têm, para vergonha de nossa cultura.
O artista tencionava passar apenas alguns meses no Brasil; ao contrário, foi-se deixando ficar, e terminou por se radicar definitivamente
A partir de 1923, trabalhando em sintonia com o arquiteto russo Gregori Warchavchik, então chegado ao Brasil, Graz vai se desincumbindo da decoração de bom número de mansões paulistanas, para as quais desenha desde maçanetas e luminárias a afrescos, vitrais e móveis, enquanto sua mulher Regina Gomide Graz se encarrega de almofadas a painéis e tapeçarias, dentro do estilo Art Déco que então fazia sua aparição entre nós. Até aproximadamente 1940 continuaria produzindo móveis tubulares, feitos de canos metálicos e laminados de madeira, que desenhava e fazia um a um; e ainda em 1969 prosseguia com decorações de interiores, uma atividade que alternava com a da pintura pura, na qual - infelizmente - não seria tão bem sucedido. É fato que realizou entre 1947 e 1980 numerosas individuais -
John Graz trabalhou a figura humana de modo geral - em retratos e composições históricas, ou em alegorias -, a paisagem e a vista citadina, a natureza-morta e a pintura de flores. Em Puente de Ronda - Paisagem de Espanha, de 1920, hoje na Pinacoteca do Estado de São Paulo, sente-se muito nítida a marca de Cézanne, na concepção do espaço e na riqueza da estruturação; em Pastoral, do Palácio dos Bandeirantes, a superfície pictórica como que freme, em modulações quase musicais, nas quais a forma e a cor se diluem sem se fragmentarem, em estilizações de nítida conotação abstratizante. Na década seguinte, em composições como Bahianas e Veleiros na série de guaches Sonho Grego, e em pinturas de temática religiosa ou histórica (Luta do Brasil contra os Holandeses, 1931), permanecem resquícios da estilização Art Déco, agora subordinada, a um maior realismo, a uma estruturação linear e cromática mais definidas.
A Fundação Armando Álvares Penteado, em 1970, e o Museu de Arte de São Paulo, em 1974 e 1996, dedicaram-lhe exposições retrospectivas, e o Paço das Artes, também
Diana caçadora, tapeçaria em colaboração com Regina Gomide Graz, cerca de 1920;
0,80 X 1,50, coleção particular.
Em 1947 foi um dos expositores do Grupo dos 19, conquistando o primeiro prêmio de pintura. No ano seguinte realizou sua primeira individual e passou a estudar gravura com Poty Lazarotto, ao mesmo tempo em que participava de uma série de exposições coletivas
Obtendo mais ou menos pela mesma época uma bolsa de estudos em França, para lá seguiu em
Durante uma permanência em Santiago, até onde fora em 1953 por ocasião de um Congresso Continental de Cultura, conheceu Diego Rivera, que o iniciou nas técnicas e materiais da pintura mural. Seu primeiro mural só surgiria porém em 1957, numa loja do Instituto Nacional do Mate situada na Galeria Califórnia,
De 1961 até 1964 Gruber lecionou novamente gravura, agora na Fundação Armando Álvares Penteado. De meados dessa década em diante tornou-se gradativamente um dos nomes mais conhecidos da arte contemporânea paulista, realizando inúmeras individuais quer de pinturas quer de gravuras. Em 1970 montou
Carnaval na rua, xilografia, 1953;
0,20 X 0,28, Museu de Arte Contemporânea da USP.
Árvore azul, óleo s/ tela, 1976;
1, 26 X 1,15, Palácio Bandeirantes, SP.
Fantasiado II, óleo e acrílica s/ tela, 1976;
0,73 X 0,64, Palácio Bandeirantes, SP.
Um ano após enviuvar, sua mãe Leonor da Veiga casou-se de novo, agora com um nobre alemão arruinado - o Barão Friedrich von Schilgen, partindo toda a família para a Europa em 1907. Ali, sucessivamente na Suíça, em França e na Alemanha, Guignard concluiria seus estudos preparatórios. Em 1910 hei-lo cursando Agronomia numa fazenda-escola de Freising, próximo a Munique:
- Eram 14º abaixo de zero, e eu espalhando adubo na planície. Coisa de alemão. É claro que adoeci.
Só em 1916 deu inicio a seus estudos artísticos, matriculando-se na Academia de Munique, como aluno de Adolf Hengeler e Hermann Groeber. Quando esteve rapidamente no Brasil em 1924, trazia consigo um documento, de fevereiro desse mesmo ano, no qual se dizia:
- O estudante da Academia de Artes Plásticas de Munique, Sr. Alberto da Veiga Guignard, do Rio de Janeiro, volta por algum tempo à sua pátria, para lá viver em sua profissão de artista. Durante seus nove semestres de estudos
Os dados relativos ao aprendizado de Guignard são aliás controvertidos: o próprio pintor afirmou, em 1952, ter estudado "na Alemanha, sob uma disciplina muito a rigor. Três anos de pintura e seis de desenho". Mas, segundo sua amiga e confidente Lúcia Machado de Almeida, o artista foi em
Em 1923 Guignard casou-se com uma jovem alemã, estudante de Música, Anna Döring. Esse é outro capítulo obscuro da biografia do artista: diz-se que o casal chegou a ter um filho, morto com apenas um ano de idade, e que depois disso, Anna abandonou o marido, durante a permanência
Esse regresso ao Brasil, em 1929, revelará a Guignard que o que aprendera na Europa "nada tinha a ver com as cores e paisagens brasileiras" - como disse depois, numa entrevista. Deu início então a longo processo de revisão de sua técnica e de seus conceitos, que adaptou às circunstâncias. Na verdade, teve dois choques, ao desembarcar: um, com o acanhado meio artístico, no Rio de Janeiro daquela época, conservador e reacionário; o outro, e bem mais profundo, com a própria natureza exuberante do país.
Dos pintores de orientação moderna ativos no Rio de Janeiro ao tempo do regresso de Guignard em 1929, um, Ismael Nery, chamaria desde logo a atenção do forasteiro por seu imenso talento. Era porém um caso isolado, incapaz de modificar, substancialmente, o meio que o cercava, e que terminaria inclusive por vitimá-lo. Mesmo assim, é justo falar-se numa breve influência de Nery sobre Guignard, em começos da década de 1930.
Expondo no Salão Nacional de Belas Artes desde 1924, conquistou, naquele ano, menção honrosa; sucessivamente ser-lhe-iam concedidas medalhas de bronze (1929), prata (1939) e ouro (1942), além do prêmio de viagem ao país (1940).
Em 1944 o então prefeito de Belo Horizonte, Juscelino Kubitschek, convidou Guignard para orientador de um curso livre de desenho e pintura que pretendia criar na capital mineira. Guignard, que já lecionava no Rio de Janeiro (Fundação Osório), aceitou o convite, e se transferiu definitivamente para Minas Gerais, onde transcorreria o resto de sua existência. Na Escola (cujo nome foi mudado, após 1962, para Escolinha de Guignard, em homenagem póstuma ao grande artista), coube-lhe orientar toda uma série de artistas mineiros, como Marília Gianetti Torres, Maria Helena Andrés, Mario Silésio, Wilde Lacerda, Heitor Coutinho, Farnese, Chanina, Estêvão etc.
Guignard realizou poucas exposições individuais (a mais importante em 1953, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro), mas participou de um sem-número de coletivas, dentro e fora do Brasil: em 1923 e 1928 expôs no Salon D'Automne, em Paris, e nesse último ano também na Bienal de Veneza: em 1951 esteve presente na I Bienal de São Paulo; e também integrou exposições de arte brasileira enviadas em 1945 e
Guignard, que faleceu a 26 de junho de 1962 no Hospital São Lucas, de Belo Horizonte, foi enterrado
Falando sobre si mesmo e de sua arte, cerca de um ano antes de morrer, Guignard esboçou uma curta autobiografia que a seguir transcrevemos, porquanto se trata de importante auto-retrato psicológico do grande pintor:
- Nasceu
Em sua singeleza, tal depoimento é básico a quantos desejem penetrar o mundo de idéias do artista, isso porque, mesmo contendo algumas inexatidões (o retorno ao Brasil, por exemplo, não se deu em 1930, mas um ano antes), põe em realce fatos e circunstâncias a que Guignard atribuía valor fundamental, omitindo outros aos quais não concedia senão relativo interesse.
Feio como todo recém-nascido... Todos os que conheceram Guignard de perto sabem como sofria com sua aparência física, mormente com o defeito congênito - fissura palatina - que lhe anasalava a voz, tornado-a um balbucio incompreensível. Fora seu breve casamento na Alemanha (com uma jovem estudante, Anna Döring, que logo o abandonou), Guignard viveu sempre solitário, apesar de "cercado pela juventude, principalmente moças bonitas". Freqüentemente apaixonado - em segredo - por essa ou aquela jovem, recorria, decepcionado, ao álcool, buscando assim refazer-se das desilusões. Raimundo Magalhães Júnior assim resumiu sua vida amorosa:
- Seu drama pessoal começara na Itália, para onde fora em lua-de-mel, depois de se ter casado com uma alemãzinha, que foi o grande amor de sua vida. Em Florença, ela deixou o pintor para sempre. E o golpe foi terrível. Nunca mais Guignard se refez. Não encontrou uma substituta para ela. Gostava de moças, prestava-lhes homenagens, mas todas lhe fugiam, como se o temessem.
Estudou em Munique, na Real Academia de Belas Artes, onde aprendeu desenho e amou... É sabido ter Guignard estudado em Munique, mas igualmente em outros grandes centros culturais; em sua curta autobiografia, refere-se porém somente à cidade alemã, omitindo por completo Florença e Paris. Por que tê-lo-á feito? Certamente porque considerava Munique a cidade em que se dera efetivamente sua formação artística, e o encontro, talvez, com a arte moderna alemã, que iria - segundo suas próprias palavras - mudá-lo de acadêmico
De acadêmico passou a moderno, após ter visto uma exposição de arte moderna alemã. Na verdade, a despeito do longo aprendizado na Academia, Guignard não terá sido nunca um puro acadêmico, um conservador, um repetidor de fórmulas herdadas do passado. Basta dizer que dois de seus mestres, Groeber e Hengeler, também nada tinham de acadêmicos, sendo que o primeiro participara da Sezession, um grupo de vanguarda surgido em 1892, e que abriria o caminho para o Expressionismo germânico. Quanto à mostra de arte moderna alemã presenciada por Guignard, ele próprio declarou, em depoimento a Celina Ferreira, acreditar que se tratava de uma exposição do grupo Die Brücke, liderado por Kirchner.
Da arte de Guignard anterior ao seu regresso ao Brasil pouco se sabe, a não ser que o artista, ele mesmo, considerava-se acadêmico, o que, como já foi dito, é bem relativo. Assim, é necessário julgá-lo pela série de numerosas obras que produziu em nosso país, de 1929 até vésperas de morrer, em 1962. O que caracteriza todas essas obras é a coerência e a fidelidade a um espírito de simplificação e de ingenuidade. Há, logicamente, evolução na arte de Guignard; mas uma evolução sem rupturas, sem desvios abruptos de rumo, lenta e progressiva. Guignard permaneceu sempre igual a si mesmo: e embora fosse obviamente pintor de sensibilidade moderna, nunca chegaria a ser um iconoclasta ou um extremado. Nós o aproximaríamos do espírito da Nova Objetividade, movimento artístico de origem germânica que, transpondo os limites do real, buscava impregná-lo de mágica poesia.
Guignard concedeu sempre ao desenho importância fundamental, e ao longo da existência irá a ele referir-se como base de toda a experiência artística. O estudo da linha como elemento primordial da arte de Guignard impõe-se, portanto, até porque o artista organiza seus quadros mais como desenhista do que como pintor, o que em alguns momentos, felizmente raros, de sua produção, ameaça transformar sua pintura em desenho colorido.
Paisagista acima de tudo, Guignard ordenava espacialmente seus quadros em camadas horizontais que se alteavam gradativamente em direção aos últimos planos. O predomínio da horizontalidade é porém interrompido a intervalos por elementos verticais, como árvores, uma torre de igreja, uma quina de muro. Esse ordenamento espacial em camadas horizontais evoca o procedimento análogo de certos pintores dos Séculos XV e XVI, como Memling e Patenier, certamente do conhecimento e da admiração de Guignard.
Preencher o espaço do quadro com uma série de pequeninos detalhes é outra das características da composição das pinturas de Guignard. Em algumas obras religiosas - faces do Cristo e da Virgem, por exemplo - as margens da pintura são subdivididas em pequenas reservas, preenchidas com cenas tiradas aos Testamentos, em procedimento que lembra o dos velhos pintores eslavos de ícones. Em diversas paisagens, por outro lado, apenas no primeiro plano, em exígua faixa próxima ao olho do espectador, acumulam-se tais elementos pitorescos, resolvidos aliás com mais realismo, quedando todo o resto do espaço pictórico para a representação do céu.
Guignard é fiel à cor natural: suas casas têm paredes brancas, as árvores têm copas verdes, o céu é azul, e assim por diante. A perspectiva aérea é também respeitada: cores quentes no primeiro plano, frias nos longes, e entre eles, toda uma bem observada gradação.
No que diz respeito à técnica, Guignard pintava em camadas fluidas, que se sucediam e sotopunham umas às outras, à maneira dos antigos que tão bem estudou. Seus trabalhos, por isso, guardam uma impressão de frescor dificilmente igualada. O artista é parcimonioso em sua escrita pictórica, preferindo a pincelada lisa aos empastamentos.
Quanto à produção de Guignard, compreende, além de paisagens, cenas da vida brasileira, retratos e auto-retratos, naturezas-mortas e pinturas de temática religiosa, além de curiosas experimentações a que denominou pinturas musicais, e que significariam a transposição, em termos visuais, de composições musicais, com soluções formais por vezes beirando o Abstracionismo. Cenas da vida brasileira são por exemplo a Família do Fuzileiro Naval, que pertenceu a Mario de Andrade, hoje no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo; ou Duas Gêmeas, do Ministério da Educação, ou até mesmo as incontáveis Noites de São João, que podem também ser incluídas entre as paisagens ou as vistas de cidades reais ou imaginárias, em que foi mestre. Foi aliás com suas paisagens imaginárias de antigas cidades mineiras, ocupando imensos espaços entre montanhas, que o artista mais se distinguiria, criando-se, nesse setor, um campo inesgotável. Sempre como paisagista, realcem-se principalmente as diversas obras em que fixou aspectos e recantos do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, e ainda de Itatiaia e Nova Friburgo, Parque Municipal de Belo Horizonte, Lagoa Santa e afinal Ouro Preto, Sabará, São João del Rei.
Excelente pintor de figuras, Guignard destacou-se ainda por seus retratos e numerosíssimos auto-retratos, e pode ser considerado um dos melhores pintores de naturezas-mortas de toda a pintura brasileira. De resto, num tempo em que era pouco comum praticá-la, reviveu a pintura religiosa, tendo sido autor de extraordinárias Vias Sacras, incursionando também, já quase ao fim da vida, pela pintura histórica.
Os noivos, óleo s/ madeira, 1927;
0,58 x 0,48, Museus Castro Maya, RJ
Família do fuzileiro naval, óleo s/ tela, 1935;
0,58 X 0,42, Instituto de Estudos Brasileiros da USP.
Léa e Maura, óleo s/ tela, 1940;
1,10 x 1,30, Museu Nacional de Belas Artes, RJ.
Ouro Preto, 1950;
0,60 X 1,00, Museu de Arte Contemporânea da USP.
Ouro Preto, óleo s/ madeira, 1951;
0,40 X 0,50, Museu de Arte Contemporânea da USP.
Vista de Ouro Preto, óleo s/ tela, 1960;
0,35 X 0,74, Palácio Bandeirantes, SP.