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DACOSTA, Milton (1915-1988). Nascido em Niterói (RJ) e falecido no Rio de Janeiro. Tendo começado a pintar com 12 anos de idade, fazendo paisagens, marinhas e cenas tiradas de folhinhas sobre caixas de sapatos e outros suportes pouco convencionais, em 1929 passou a estudar com o pintor alemão Augusto Hantz, que lhe dava a copiar retratos de artistas de cinema:
- Era um homem gozado, de rosto vermelho. Gostava muito de tomar a nossa "pinga". Quando ele se excedia no consumo desta bebida, suas aulas ficavam tumultuadas.
Em 1930 matriculou-se no curso livre da Escola Nacional de Belas Artes, como discípulo de Marques Júnior. Mais ou menos por essa época, nas travessias de barca para o Rio de Janeiro, conheceu Antônio Parreiras, septuagenário e celebérrimo, para quem chegou a posar, e que em uma ocasião lhe corrigiu uma pintura:
- Certa vez, mostrei-lhe o estudo de uma paisagem, com as sombras bem escuras e os tons luminosos menos quentes. Parreiras corrigiu a minha pintura. Substituiu as sombras pretas por sombras roxas. E colocou amarelos em todos os tons de luz. A correção era feita por um pintor não apenas conhecedor do Impressionismo, senão principalmente por um artista obediente à convenção tradicional, vinda já dos tempos de Delacroix.
Abandonando dentro de pouco tempo as aulas da Escola Nacional de Belas Artes, Dacosta seria, em 1931, um dos fundadores do Núcleo Bernardelli, ao lado de outros jovens pintores, como Edson Motta, Malagoli, Bustamante Sá, Rescala e Braulio Poiava (a quem conhecia de Niterói). Dois anos mais tarde, já se julgando apto a participar do Salão Nacional de Belas Artes, submeteu a júri algumas pinturas, que não lograram contudo aceitação:
- Uma delas, por sinal, era a pintura de umas botinas. Mas a tela não foi aceita pelo júri, composto geralmente na época pelos professores da ENBA. Imagine que cortaram o meu trabalho, dizendo que os sapatos pareciam um reclame da Casa Clark, que possuía uma loja na Avenida Rio Branco.
O ano de 1936 testemunha duas importantes vitórias: Dacosta realiza sua primeira individual, na Galeria Santo Antônio, do Rio de Janeiro, e expõe pela primeira vez no Salão Nacional de Belas Artes, onde obtém uma menção honrosa. No mesmo certame seria premiado, sucessivamente, com medalha de bronze (1939), medalha de prata (1941) e a viagem ao estrangeiro (1944), as duas últimas distinções já na vigência da Divisão Moderna.
Com o prêmio de viagem, o artista partiu para os Estados Unidos da América (1945), freqüentando em Nova Iorque a Artist's League of America; dali seguiu, em 1946, para a Europa, tocando em Lisboa e percorrendo vários países antes de se fixar em Paris, cuja Academia da Grande Chaumière cursou; retornaria em 1947 ao Brasil, casando-se dois anos mais tarde com a pintora Maria Leontina, e em 1950 seria um dos pintores selecionados para integrarem a primeira representação do Brasil à Bienal de Veneza.
Em 1952, depois de ter tomado parte, no ano anterior, na I Bienal de São Paulo, Dacosta embarcou novamente para a Europa, regressando em 1954 para já no próximo ano receber, na III Bienal de São Paulo, o prêmio de Melhor Pintor Nacional. Na VI Bienal de São Paulo, em 1961, teve sala especial, tal como ocorreria, cinco anos mais tarde, na I Bienal da Bahia. Retrospectivas de sua obra foram realizadas em 1959, pelo Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, e em 1981, pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo.
As primeiras pinturas de Milton Dacosta, de começos da década de 1930, eram simples exercícios de um adolescente de pouco mais de 15 anos, exercícios nos quais é lícito porém surpreender algumas das características que mais tarde iriam marcar-lhe em definitivo o estilo: agudo senso de construção, a tendência a captar somente o essencial de cada forma, seres e coisas utilizados em função de seus valores exclusivamente pictóricos, nenhuma concessão ao pitoresco ou ao anedótico, e horror ao regional, ao folclórico, ao episódico.
Tivesse acaso ficado nessas primícias, e ainda assim mereceria um lugar destacado na evolução de nossa pintura moderna, mesmo porque, à medida que a década se aproxima do fim, surgem-lhe da paleta obras de maior fôlego e mais intenso poder expressivo, se bem que ainda influenciadas pelas de outros artistas, ecos da Escola de Paris, num momento em que Montmartre e Montparnasse eram os pontos de referência máximos de nossos melhores artistas.
No que respeita aliás a influências, Dacosta jamais escondeu quanto devem seus anos de aprendizado e aprimoramento a Modigliani, Cézanne e De Chirico, ou - para citar gente de casa - a Cândido Portinari. Certas pinturas feitas por exemplo em 1937, reproduzindo telhados e casario das imediações do Campo de Santana e de outros sítios do Rio de Janeiro, evocam, em sua estruturação geométrica, o Mestre de Aix-en-Provence; ao passo que a atmosfera rarefeita de alguns quadros de começos da década de 1940, com suas perspectivas exatas, seus manequins, seus ambíguos espaços metafísicos, remetem diretamente a De Chirico. E não seria possível ver a marca de Modigliani nos pescoços e vultos alongados de seus Banhistas, e a de Morandi na severidade elementar de umas poucas naturezas-mortas de fins da década de 1940?
Mas a influência mais funda e permanente que repercutiu sobre a produção de Milton Dacosta foi a do Cubismo, um Cubismo decerto adaptado às circunstâncias brasileiras. Foi essa admiração pelo Cubismo que iria gradativamente fazer com que Dacosta substituísse o Impressionismo de suas composições juvenis - a cor tonal, o primado das texturas -, pelo predomínio de uma forma perfeitamente estruturada. Em pinturas de fins da década de 1940 é possível inclusive surpreender recursos tradicionais cubistas, como a parcimoniosa utilização da cor - a paleta reduzida a três ou quatro tonalidades apenas -, e a visão simultânea de um rosto, de face e de perfil. Em tais momentos, repercute bem forte a lição de Picasso, que continuará visível mesmo nas Figuras de Alexandre e nos Cabeçudos, nas Meninas e em outras composições de fins dos anos 40 e começos da década seguinte, frutos de um artista preocupado com a redução de planos, formas e cores a uma síntese cada vez mais econômica.
A fase final dessa produção de cunho pós-cubista acha-se representada numa série de naturezas-mortas e de Cidades ou Castelos, nas quais se observa um progressivo aprofundamento expressivo, ao mesmo tempo em que as referências ao mundo natural se reduzem ao mínimo - discos, cilindros, retângulos que apenas sugerem objetos. De posse, finalmente, de todos os seus recursos expressivos, e tendo atingido um estado de autêntica sabedoria pictórica, a personalidade de Dacosta cristaliza-se. E se é verdade, como queria Schopenhauer, que toda arte aspira à condição de música, força é reconhecer que nunca, como em tais obras, alçou-se o artista a tão elevado nível de realização. Isso mesmo, aliás, parece ter sentido o júri da III Bienal de São Paulo, ao lhe atribuir, em 1955, o Prêmio de Melhor Pintor Nacional justamente por uma série de Castelos ou Cidades.
O intervalo puramente abstrato que iria seguir-se, e que até certo ponto era preludiado por algumas naturezas-mortas e Cidades, nada tem de estranhável: afinal, oriunda de Cézanne e do Cubismo, a pintura de Dacosta concebe a Natureza antes de mais nada como um esquema abstrato que fosse, ao mesmo tempo, desafio ao intelecto e estímulo à emoção. Fazendo então uso de linhas retas, que delimitam campos monocromáticos, Dacosta passa a construir espaços nos quais a vibração dessa ou daquela tonalidade não chega a destruir a sensação predominante de um deliberado ascetismo, de uma austeridade quase mondrianesca. Nessas obras de fins da década de 1950 e princípios da de 1960 repercute sem dúvida, se não a lição, ao menos a presença do Concretismo, identicamente ao que se passava, pela mesma época, com a pintura de Volpi.
Mas já em 1963 o artista abandona esse despojamento, como explicaria numa entrevista a Frederico de Morais, anos depois:
- Aquela fase dos quadrados significou a necessidade de uma certa disciplina. Eu pintava como uma dona-de-casa que quer manter sua casa sempre arrumada. Isto exige muito esforço. Naquele tempo, acredito, era um jeito, um modo de ser. Mas acho que o ciclo da construção acabou. Cheguei ao extremo e queriam que eu continuasse. Não via como. Hoje concluí pela importância do "humano" na arte. Desci à terra. A disciplina não pode ir contra a liberdade.
Expressando-se por antíteses, Dacosta entrega-se a partir daquele ano à elaboração de nova série - Vênus e Pássaros -, constituída por pinturas em que formas femininas opulentas, às vezes em atitudes e posturas lascivas, são resolvidas com o emprego de linhas sensualmente recurvas, cantantes de tão puras. Nessas obras, próximas do imaterial - a camada de pigmentos, de tão rala, mal se percebe -, quase não se pode dizer onde acaba o desenho e começa a pintura, ou vice-versa. Geometrizada, reduzida a um arabesco, a uma síntese visual que é o próprio avesso da forma feminina naturalisticamente observada, a Vênus de Dacosta é obra de um virtuose consumado. Vibra, em suas formas voluptuosas de leve colorido, qualquer coisa de oriental.
Por duas décadas, até morrer, Dacosta dedicou-se à temática das Vênus e Pássaros, numa sucessão de imagens que chegam a sugerir a catarse de alguma obsessão - como se o artista quisesse expulsar, de dentro de si, todas as infinitas variações de um tema aparentemente inesgotável.

Sobre o fundo negro, óleo s/ tela, 1954;
Museu de Arte Contemporânea da USP.

Natureza morta, óleo s/ tela, 1949;
0,73 X 0,92, Museu de Arte Contemporânea da USP.

Composição sobre marron, óleo s/ tela, 1955;
0,65 X 0,92, Museu de Arte Contemporânea da USP.

Vênus e pássaros, óleo s/ tela, 1971;
0,54 X 0,81, Pinacoteca do Estado de São Paulo.

DE FIORI, Ernesto (1884-1945). Nascido em Roma (Itália) e falecido em São Paulo (SP). Aos 19 anos desloca-se a Munique, matriculando-se na Academia de Belas Artes, que cursa por um ano. Aluno de Otto Greiner, é por esse desencorajado, e em 1904 acha-se de novo em Roma, onde tem início uma fase fundamente influenciada pela obra do pintor expressionista suíço Ferdinand Hodler.
Após uma permanência de mais de ano em Londres, em 1909-10, visita Paris pela primeira vez, ali se deixando ficar até 1914. Ligando-se aos círculos de vanguarda, amigo de Matisse e Picasso, tem porém um abalo ao tomar contato com a pintura de Renoir e principalmente com a de Cézanne, passando dois dias fechado em seu quarto "com o rosto virado para a parede, decidido a não mais pintar", Após quatro meses de total apatia, volta a trabalhar, agora como escultor, e como escultor é que, nos próximos anos, conhecerá sucesso internacional, sofrendo sucessivamente a influência de Maillol, Degas e do Cubismo, até adotar o estilo vigoroso e pessoal que iria caracterizá-lo por volta de meados da década de 1920.
Cidadão alemão naturalizado, De Fiori é convocado em 1916 e luta no front francês. Desmobilizado, transfere-se para a Suíça, e em 1919 casa-se com uma jovem escultora, com a qual viverá sete anos. Famoso, presença obrigatória em todas as grandes manifestações de arte contemporânea levadas a efeito na Europa ao longo de mais de duas décadas de ativo labor, em 1936 De Fiori decide-se a abandonar a Alemanha, pressentindo a aproximação da tragédia iminente, e após curta temporada em Paris dirige-se ao Brasil, fixando-se em São Paulo, onde já residiam seu irmão Mario De Fiori e sua mãe, Maria De Fiori Unger. Pouco após a chegada, realizou uma exposição de esculturas, pinturas e desenhos na Galeria Guatapará, passando desapercebido.
Apaixonado pela paisagem brasileira, em nosso país não deixa de esculpir, mas pratica com assiduidade cada vez maior a pintura, que assim retomava após um intervalo de mais de 20 anos. Pretendendo embora regressar à Europa tão logo as circunstâncias o permitissem, e tendo ainda a intenção de viajar aos Estados Unidos, não logrou concretizar nem uma coisa nem outra, deixando-se ficar no Brasil em definitivo, e aqui se ligando de amizade a intelectuais e artistas como Menotti del Picchia e Paulo Rossi Osir. Desportista, adepto da vela e vencedor de inúmeras regatas, deu seqüência no Brasil à sua ilustre carreira, expondo nos três Salões de Maio (1937-39), no III Salão da Família Artística Paulista (Rio de Janeiro, 1940), no 1 Salão de Arte da Feira Nacional de Indústrias (1941) e nos Salões do Sindicato dos Artistas Plásticos de 1942 e 1944, ao mesmo tempo em que realizava mais três individuais: em 1937, na Nova Galeria de Arte de Theodor Heuberger, no Rio de Janeiro; em 1939, na Casa e Jardim, de São Paulo, e em 1944 na Galeria Itá, também de São Paulo. Foi a partir da mostra de 1941 em Casa e Jardim que seu prestigio no Brasil começou a aumentar, diversos críticos e intelectuais tendo-lhe dedicado, na ocasião, artigos encomiásticos.
A obra pictórica de De Fiori compreende retratos, paisagens, figuras, sucessivas representações do tema de São Jorge e o Dragão, que assumia a seus olhos conotações simbólicas, e inúmeras vistas da represa de Santo Amaro, iniciadas por volta de 1939. É uma pintura alegre, extravasada em pinceladas largas, de cromatismo intenso, sem preocupações com o fini, e estilisticamente ligada ao expressionismo germânico, a cuja sombra se desenvolvera. O crítico de arte Walter Zanini, que lhe estudou a obra em profundidade, divide sua pintura brasileira em duas fases: a primeira, a partir de 1936, mais subordinada à realidade objetiva, e a segunda, que surge por volta de 1939 e atinge seu apogeu em 1942-43, marcada por forte expressionismo, o qual se reflete "não apenas na vitalidade de sua cor, nos acidentes de matéria, mas em detalhes ponderáveis como os arrependimentos freqüentes na disposição dos tons, os refazimentos propositadamente não dissimulados dos motivos, o inacabado, os escorrimentos de tinta (antecipação às coulées informalistas), o avanço das cores pelas molduras".
Violentamente antiabstracionista, comprazendo-se com freqüência na representação de cenas urbanas de São Paulo - que descrevia pouco após sua chegada como " uma grande e inacabada cidade, uma pequena Nova Iorque, meio titânica, meio nanica, habitada por estranha mistura de raças, uma pequena Babel" -, de figuras isoladas ou em grupo e de naturezas-mortas ou interiores, De Fiori chegaria a influenciar a, entre outros, Alfredo Volpi, Mario Zanini e Joaquim Figueira, como pintor, enquanto o mesmo Figueira e principalmente Bruno Giorgi iriam sofrer seu impacto como escultor. Foi porém Zanini quem mais fundamente sentiu o influxo da arte de De Fiori, a ponto de lhe assimilar processos e maneiras, até o esquema colorístico.
Para os últimos anos de vida, acabrunhado com o rumo da guerra na Europa e decidido a emprestar sua colaboração à luta contra o Nazismo, propõe sem sucesso a criação, em São Paulo, de uma Liga de Resistência Espiritual contra o Hitlerismo, ao mesmo tempo em que desenha armas antitorpedos que oferece ao governo norte-americano, e tenta induzir as autoridades diplomáticas inglesas em São Paulo a aproveitá-lo numa missão secreta junto a Goering. Em 1997 a Pinacoteca de Estado, em São Paulo, dedicou-lhe importantíssima retrospectiva.

Arlequim dançando, detalhe, óleo s/ tela, 1942;
1,10 X 0,90, Museu de Arte Contemporânea da USP.

São Jorge, azulejo, década de 40;
feito para Osirarte, SP.

Batalha, têmpera s/ tela, s/ data;
0,48 X 0,61, Palácio Bandeirantes, SP.

São Jorge, óleo s/ tela, 1943;
0,95 X 0,65, Pinacoteca do Estado de São Paulo.

DEBRET, Jean-Baptiste (1768-1848). Nascido e falecido em Paris (França). Muito jovem acompanhou Louis David (de quem era primo) à Itália, onde o célebre pintor iria pintar sua famosa tela Juramento dos Horácios. Aliás, ligava-se também por vínculos de família a outro grande pintor - François Boucher. Retornando a Paris em 1785, matriculou-se na Academia de Belas Artes, tendo conquistado em 1791, com Régulo voltando a Cartago, um segundo prêmio de Roma. Ao estourar a Revolução viu-se forçado a abandonar a pintura e a se matricular no curso de Engenharia Civil da Escola de Pontes e Calçadas, dali passando à Escola Politécnica, da qual em pouco tempo se tornaria professor de Desenho. Em 1798 expôs novamente no Salon, obtendo um prêmio com sua imensa composição O General Messênio Aristodemo Liberto por uma Jovem. Tornou-se depois colaborador dos arquitetos Percier e Fontaine em trabalhos de decoração em edifícios públicos e mansões particulares.
Após 1806, Debret voltou-se para os grandes quadros de assunto napoleônico, muitos deles feitos por encomenda oficial, como Napoleão prestando homenagem à bravura infeliz, ou Napoleão em Tilsit condecorando com a Legião de Honra um bravo do Exército Russo. A queda do Imperador e a morte de seu único filho, em 1815, foram duras provações para o artista, o qual decidiu afastar-se para bem longe de França. Tencionava seguir, juntamente com o arquiteto Grandjean de Montigny, para a Rússia, mas ambos acabaram tomando o rumo de Brasil, engajados na Missão Artística organizada por Lebreton para criar, no Rio de Janeiro, uma Academia de Belas Artes. Debret desembarcou nessa cidade a 26 de março de 1816, e ali permaneceu até 1831, quando retornou à França,
Tão logo chegado, Debret passou a desenvolver intensa atividade, pintando retratos da Família Real e obras como a grande tela Desembarque de Dona Leopoldina em 1817. Realizou ainda trabalhos de cenografia para o Teatro São João e decorações e serviços de ornamentação pública do Rio de Janeiro, para grandes festas como a Aclamação de Dom João VI, a 6 de fevereiro de 1818, como Rei de Portugal, Brasil e Algarve, e como o bailado histórico e representação de gala concebidos por Louis Lacombe, diretor do Teatro São João, levados à cena a 15 de maio do mesmo ano, ainda como homenagem a Dom João VI. No entanto, a principal finalidade da vinda de Debret e dos demais artistas franceses de Lebreton ao Brasil - a organização do ensino artístico no país - demorava a se concretizar. Pensionário real em 1816, encarregado da aula de Pintura Histórica da Escola Real de Artes e Ofícios criada naquele mesmo ano, lente dessa mesma disciplina em novembro de 1820, na nova Academia e Escola Real das Artes (em que se transformara a Escola Real), Debret teve de enfrentar todo tipo de dificuldade burocrática, levantada pelo novo diretor da Academia - o português Henrique José da Silva, adversário ostensivo ou dissimulado dos franceses -, para finalmente começar a lecionar a apenas cinco alunos, em 1823! Só em 1826, com a abertura da Academia Imperial de Belas Artes, disporia de espaço suficiente para reunir um número apreciável de discípulos, embora ainda não estivesse terminada a construção da sede projetada por Grandjean de Montigny. Mas em 1827 a Academia funcionava normalmente, e 38 alunos achavam-se matriculados, 21 no curso de pintura.
Coube a Debret organizar a primeira exposição pública de arte realizada no Brasil, aberta a 2 de dezembro de 1829 na Academia, com catálogo financiado pelo artista. Achavam-se expostos 115 trabalhos, sendo que 33 de autoria dos professores. Debret apresentava-se com seus alunos: Simplício de Sá, José de Cristo Moreira, Francisco de Souza Lobo, Manuel de Araújo Porto-alegre, José dos Reis Carvalho, José da Silva Arruda, Alphonse Falcoz, João Clímaco, Augusto Goulart e Francisco Pedro do Amaral. Segunda exposição seria realizada em 1830 mas, retirando-se Debret no ano seguinte para a França, só em dezembro de 1840 teria lugar a terceira; quando partiu, levou em sua companhia o discípulo favorito, Porto-alegre, a fim de que se aperfeiçoasse em Paris.
Como pintor, Debret não chega a entusiasmar: sua pintura é dura, convencional ao extremo, até porque nascida ao léu das circunstâncias, de fora para dentro, por assim dizer. O Museu Nacional de Belas Artes possui um razoável núcleo de tais pinturas, como Retrato de Dom João VI, Desembarque de Dona Leopoldina, Sagração de Dom Pedro I, Aclamação de Dom Pedro I, conservando o Museu de Arte de São Paulo e o Museu Imperial de Petrópolis outros originais. Na verdade, a maior fonte do prestígio de que desfruta Debret na atualidade deriva do fato de ter sido autor da Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, publicada por Firmin Didot Frères em Paris. São três volumes: o primeiro, aparecido em 1834, traz 46 litografias de temas indígenas; no segundo, de 1835, Debret descreve a sociedade da época em 41 estampas; no terceiro e último tomo (1839), 50 gravuras abordam reproduções de quadros, estudos de insígnias e de condecorações, paisagens do Rio de Janeiro e retratos imperiais. Se o texto é valioso pela quantidade de informações, nem sempre fidedignas, pela veracidade histórica e mesmo pela elegância literária, são as estampas (feitas a partir dos desenhos originais do autor, muitos deles litografados em Paris por Thierry Frères) que suscitam maior interesse e admiração. Vários desses desenhos originais encontram-se hoje novamente no Brasil, depois que Raimundo Ottoni de Castro Maya, em pacientes buscas pela Europa, conseguiu reagrupá-los. São cerca de 350 peças, cheias de vivacidade e elegantemente desenhadas num traço rápido e sintético, formando o retrato delicioso da sociedade brasileira de princípios do Séc. XIX. Podem ser vistas nos Museus Castro Maya, no Rio de Janeiro.

Oficial da corte, aquarela, 1822;
0,16 X 0,21, Museus Castro Maya, RJ.

Botica, aquarela, 1823;
0,15 X 0,21, Museus Castro Maya, RJ.

Embarque das tropas para Montevidéu, óleo s/ papel, 1826;
0,64 X 0,42, Museu Imperial, Petrópolis.

DI CAVALCANTI, Emiliano (1897-1976). Nascido e falecido no Rio de Janeiro (RJ). Chamava-se Emiliano Augusto Cavalcanti de Albuquerque e Melo, tendo adotado o nome Di Cavalcanti em homenagem a uma prima, cujo apelido, Didi, viu-se assim simplificado. Nasceu na Rua do Riachuelo, no velho centro do Rio, na casa do célebre abolicionista José do Patrocínio, que se casara com sua tia Maria Henriqueta vencendo todos os preconceitos da família dessa, pelo fato de ser negro. Menino ainda, conheceu na casa do tio gente famosa, como Machado de Assis, Joaquim Nabuco e Olavo Bilac - o qual aliás fora noivo, ou quase isso, da mãe do artista, Rosália de Sena. Essa presença constante de escritores e poetas em torno a Di Cavalcanti na infância explica decerto porque, pela vida inteira, ele devotaria às letras um amor quase tão profundo quanto à pintura. Seus primeiros desenhos, como os primeiros versos, surgiram em São Cristóvão, bairro de classe média para onde sua família se mudara em 1908. Vendo-o de certa feita a desenhar, o pintor Gaspar Puga Garcia, que era seu vizinho, vaticinou certeiramente:
- Você será pintor.
Poucos anos mais tarde, em 1914, tem início a carreira de caricaturista de Di, que nesse ano publica seu primeiro trabalho em Fon-Fon. Dois anos depois participou do I Salão dos Humoristas, organizado por Luís Peixoto e Olegário Mariano no Rio de Janeiro. No Jornal do Commercio de 19 de novembro de 1916, comentando o Salão, aberto uma semana antes, escrevia um anônimo comentarista de arte:
- São dignos de exame alguns trabalhos de um jovem que se estréia com o pseudônimo de Di.
No mesmo ano de 1916, Di Cavalcanti matriculou-se na Escola Livre de Direito. Logo depois mudava-se para São Paulo, levando uma carta de apresentação de Olavo Bilac para o jornalista Nestor Rangel Pestana. Emprega-se como arquivista em O Estado de São Paulo - após ter sido marcador e vendedor de dormentes em Ribeirão Preto -, freqüenta as aulas no Largo de São Francisco mas, sobretudo, desenha, e descobre a vida:
- Eu, que deveria continuar meu curso de Direito, fiquei entre as aulas do vetusto casarão, as redações dos jornais, os cafés boêmios, as livrarias, as pensões de mulheres.
Nessa fase inicial de sua existência, Di Cavalcanti atravessa dificuldades, mas vai-se tornando pouco a pouco um homem. Em 1917 tem a revelação do Socialismo pelos ecos que aqui chegam da Revolução Russa; presencia a exposição de Anita Malfatti e a grande greve operária deflagrada em São Paulo, e num arroubo lírico quer alistar-se como voluntário em defesa da França, deixando-se porém ficar nos braços das francesas (como escreveria mais tarde em seu livro de memórias), já que o alistamento não fora possível...
Freqüentador de livrarias, numa delas - a Editora do Livro -, sempre naquele fecundo ano de 1917, efetuará sua primeira individual. Havia bem pouco tempo que começara a pintar, e era ainda aquele "menestrel dos tons velados" ao qual se referira, na dedicatória de um livro, Mário de Andrade. Seu veículo predileto era então o pastel, do qual se utilizava para retratar figuras femininas, "da angelitude então em voga". Lado a lado, porém, com essas "místicas fugas da realidade", o futuro grande pintor "punha já em valor certos caracteres depreciativos do corpo feminino, denunciava nos seus tipos uma psicologia mais propriamente safada que extravagante, com uma admirável acuidade crítica de desenho" (Mário de Andrade). Passando a freqüentar, em 1918, o ateliê de Georg Fischer Elpons, dentro em breve estava substituindo pelo impressionismo desse artista alemão radicado em São Paulo o decadentismo de conotação mais literária que propriamente pictórica que o norteara até então. Trocando constantemente São Paulo pelo Rio de Janeiro, e vice-versa, Di Cavalcanti era habítué, em ambas as cidades, dos círculos artísticos de vanguarda e das rodas boêmias. Em 1919 ilustrou A Balada do Enforcado, de Oscar Wilde, na tradução de Elisio de Carvalho, e em 1921 apareceu seu álbum Fantoches da Meia-Noite, com prefácio de Ribeiro Couto: num e noutro trabalhos é flagrante a filiação estilística a Aubrey Beardsley, o ilustrador original de Wilde.
O ano de 1922 é de importância fundamental tanto para a arte moderna brasileira quanto para a carreira do pintor, de quem partiria inclusive a idéia, dada a Paulo Prado, para a realização de uma Semana de Arte Moderna:
- Eu sugeri a Paulo Prado a nossa semana, que seria uma semana de escândalos literários e artísticos.
Realizada a Semana, Di Cavalcanti fica por algum tempo desnorteado:
- Eu era um esnobe, não posso negar. Me considerava o tal, porque ilustrava as obras de Oscar Wilde, sabia mais literatura que os outros, tinha contato com os intelectuais, e ainda possuía uma amante italiana que abandonara o teatro por minha causa. A Semana - coitada - só veio agravar meu quadro geral. Fiquei muito pior, e fugir disso, então, passou a ser uma necessidade. O próprio Brasil, para mim, passara a ser apenas uma multiforme nação irreal, que me levava a rir, às gargalhadas, de tudo, principalmente da velha Academia de Direito. Larguei tudo e fui para Paris.
Fascinado por Paris, que até então só conhecia de conversas, para lá embarcou com efeito em 1923, com um ralo dinheiro obtido com a venda de alguns quadros e um trato, com Edmundo Bittencourt, para a remessa de crônicas para o Correio da Manhã:
- Lá andava eu, em Paris, para um lado e para outro; trabalhava na pintura no meu pequenino ateliê de Montparnasse e rodava pelas ruas procurando reportagens para o Correio.
Em breve escapada à Itália, descobre os Velhos Mestres, que lhe causam tremendo impacto:
- Quando volto a Paris quero abandonar para sempre a pintura. Sinto em mim a ressonância do colorido do Ticiano, a força teatral de Michelangelo. Da Vinci! Todos me destruindo, empurrando-me para um anonimato, para uma pobreza moral infinita!
Por algum tempo cursa a Academia Ranson, conhecendo em seguida intelectuais como Jean Cocteau, Blaise Cendrars, Paul Eluard, André Breton, Leon Paul Fargue e Miguel de Unamuno; músicos como Darius Milhaud, Poulenc, Auric e Satie; e artistas como Léger, Marx Ernst, De Chirico, Matisse, Braque e principalmente Picasso. Por volta de 1924, segundo Sergio Milliet, Di Cavalcanti "dedicava-se conscienciosamente ao estudo da maneira monumental de Picasso, que tanto o enriqueceu e que foi o primeiro a transpor através de uma originalidade indiscutível para o assunto brasileiro. Essa influência picassiana fez-se sentir de modo tão intenso e, por outro lado, tão duradouro, na obra de Di, que críticas ferinas e mesmo acusações de plágio foram volta e meia assacadas contra o pintor brasileiro, muito embora o crítico Luís Martins, estudando esse delicado capítulo das relações estilísticas entre Di e Picasso, tenha aparentemente esclarecido a questão:
- Compreende-se que se sentisse impressionado, quando em sua primeira viagem à Europa, em 1923, deparou com as mulheres monumentais de Picasso - o Picasso que se evadia das linhas frias, severas e angulosas do cubismo, para as curvas sensuais e exuberantes de sua fase neoclássica. Mas, se esse encontro com o grande pintor espanhol constitui provavelmente, para o brasileiro, uma revelação do seu próprio temperamento, sugerindo-lhe uma forma de exprimir plasticamente o que há de ondulante, macio, cálido e maternal no corpo feminino, força é confessar que a personalidade do nosso artista não se deixou subjugar pela outra, mais amadurecida, do mestre consagrado. O que há em Di Cavalcanti de intrinsecamente brasileiro, ou melhor, de carioca, levou-o a uma interpretação pessoal, a uma espécie de tradução para o mulato das mulheres clássicas e um pouco olímpicas de Picasso, dando-lhes um frêmito, uma languidez e uma indolência que elas não tinham.
Di Cavalcanti, ele próprio, não escondeu jamais o que devia a Picasso, e referindo-se ao seu conhecimento com o artista, assim declarou numa entrevista:
- Conheci-o fazendo uma reportagem para o Correio da Manhã. Ficamos camaradas, mas eu não quis saber dele porque o achava muito sério. Aliás, não gosto de conviver com pintores. São uns chatos, os maiores chatos que conheço. No entanto, fui amigo de Picasso até a morte dele. Mas em matéria de mulher, por exemplo, modéstia à parte, sou mais eu, anti-picassiano. Nunca soube o que se passava na cabeça dele, daquele cigano magnífico, mas o fato é que ele não servia para fazer mulher bonita. Era sempre mulher com um olho a mais ou a menos, um nariz de lado. Saía sempre um Picasso bonito, mas nunca uma mulher bonita.
Com a Revolução de 1924, o Correio da Manhã foi fechado e Di Cavalcanti viu-se forçado a regressar ao Brasil. Ei-lo novamente no Rio de Janeiro, em 1925, renovando um contato que se revelaria indispensável ao amadurecimento de sua produção - ele que, um dia, escreveria:
- A nossa arte tem de ser como a nossa comida, o nosso ar, o nosso mar. Tem de ser reveladora de nossa cultura, pois a boa arte é sempre cultural, e sua dimensão própria é a de antecipar um momento cultural.
Mesmo afirmando em suas memórias que entre 1925 e 1935 não se lembrava de ter feito muita coisa importante, o fato é que datam de 1929 os dois admiráveis murais que realizou para o Teatro João Caetano, do Rio de Janeiro - obras poderosas, nas quais seu talento se afirma de modo pessoal e vigoroso. Já em 1928 ingressara no Partido Comunista, levado por sua fé na justiça social. Mas em 1931 verificava, aturdido, não poder ser jamais "um bravo comunista: entre a minha liberdade individual e as regras partidárias abriam-se abismos".
Retornando em 1935 a Paris, ali permaneceu até 1940, quando, com a queda da capital francesa em poder dos nazistas, vê-se novamente forçado a voltar para o Brasil. Perigosamente afastado, durante mais esses cinco anos, da realidade brasileira, das mulatas que ama, do carnaval de que se nutre a sua pintura, com suas cores e odores fortes de negros fantasiados de príncipes russos e de índios sarará, mesmo assim Di Cavalcanti permaneceria autenticamente brasileiro e, mais ainda, carioca, já que levava dentro de si todas essas cores, cheiros e memórias. Durante essa nova estada parisiense, algumas de suas pinturas são adquiridas para os museus do Jeu de Paume, em Paris, de Haia e de Grenoble.
A partir da década de 1940 a personalidade de Di Cavalcanti atinge finalmente sua plena maturidade: aos 43 anos, em 1940, quando volta definitivamente ao Brasil, o artista é já um nome conhecido e respeitado dentro e até fora do País. Mas é também a partir da década de 1940 que Di começa a se repetir, conforme observação de José Mindlin:
- A partir daí (1940) deve-se reconhecer que sua obra passou a ser bastante repetitiva, e seu lançamento e valorização no mercado, por marchands habilidosos, resultou numa produção comercializada, em que a despeito de muitos trabalhos bons, a qualidade freqüentemente não correspondia ao talento. Sendo um de nossos grandes pintores, com Portinari, Segall e Volpi, sua obra é desigual, especialmente a partir de 1950, o que sua personalidade explica, mas não deixa de ser lastimável.
Di negava essa tendência à comercialização do seu talento:
- Dizem que me tornei mais comerciante que artista. Bobagens. Sou um artista... mas um homem também. Preciso de dinheiro para o homem e tempo livre para o artista. Preciso de dinheiro para minha alegria e minha tristeza.
Seja como for, era natural que, num artista cuja produção pictórica já foi estimada em aproximadamente cinco mil obras, nem tudo lhe tivesse saído de primeiríssima qualidade, até porque não era do seu temperamento essa preocupação para com a qualidade de seus quadros, como de certa feita confiou a Mário de Andrade, numa carta de 1930:
- Mário, felizmente eu não me apresso, não quero nunca realizar obras-primas como quis o Brecheret, o Villa e mesmo já o Celso Antonio, o que acontece é que eles sem autocrítica já estão paus. E eu me sinto de uma mocidade comovente. Não é orgulho, é vaidade. Eles não amam a vida. Amam a arte como a um mito. E eu amo sobretudo a vida, esta vida que vem como os calores sexuais de baixo para cima…
Vivendo alternadamente entre São Paulo e Rio de Janeiro - "eu não poderia viver sem o Rio de Janeiro, porque tudo o que vejo como pintor se integra na paisagem carioca" -, expondo constantemente no Brasil, mas também no Uruguai, na Argentina, no México e nos Estados Unidos, Di Cavalcanti recebeu importantes premiações ao longo de sua carreira, destacando-se a medalha de ouro conquistada em 1937 na Exposição de Paris (com a decoração do pavilhão da Companhia Franco-Brasileira), o prêmio Melhor Pintor Brasileiro, que dividiu com Volpi na II Bienal de São Paulo, em 1953, o primeiro prêmio da Mostra de Arte Sacra de Trieste, Itália, em 1956 e a medalha de ouro da II Bienal Interamericana do México, em 1960 - na qual teve aliás sala especial. O Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1954, a VII Bienal de São Paulo, em 1963, e o Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1971, dedicaram-lhe retrospectivas, destacando-se por sua importância essa última, na qual foram expostas 476 obras de todas as fases. No entretempo de toda essa atividade, Di Cavalcanti ama, desenha, pinta, escreve poemas, lê, casa, descasa, viaja sempre a Paris, realiza desenhos para jóias e tapeçarias, ilustra em 1969 os bilhetes para as quatro extrações principais da Loteria Federal do Brasil, quando não simplesmente vagabundeia por bares e restaurantes, boêmio que foi até o fim da vida. Publicou dois livros de memórias, entremeados de poemas: Viagem da Minha Vida - O Testamento da Alvorada (1955) e Reminiscências Líricas de um Perfeito Carioca (1964). Ilustrou numerosos livros (Carnaval, de Manuel Bandeira, 1919; Losango Cáqui, de Mario de Andrade, 1926; A Noite na Taverna e Macário, de Alvares de Azevedo, 1941; etc.), executou murais em Belo Horizonte, Brasília (Câmara dos Deputados), Rio de Janeiro (Banco do Estado do Rio de Janeiro, Banco Lar Brasileiro, etc.) e São Paulo (Aeroporto de Congonhas, O Estado de São Paulo) e editou também álbuns de gravuras, embora ele mesmo não as gravasse (Lapa, xilogravuras, 1956; Cinco Serigrafias, 1969, Sete Flores, com texto de Carlos Drumond de Andrade, 1969).
Sobre a arte de Di Cavalcanti, já Mário de Andrade se pronunciara, há cinqüenta anos, de maneira extraordinariamente lúcida, ao dizer:
- Di Cavalcanti conquistou uma posição única em nossa pintura contemporânea. Em nossa pintura brasileira. Sem se prender a nenhuma tese nacionalista, é sempre o mais exato pintor das coisas nacionais. Não confundiu o Brasil com paisagens; e em vez do Pão-de-Açúcar nos dá sambas, em vez de coqueiros, mulatas, pretos e carnavais. Analista do Rio de Janeiro noturno, satirizador odioso e pragmatista das nossas taras sociais, amoroso contador das nossas festinhas, mulatista-mor da pintura, este é o Di Cavalcanti de agora, mais permanente e completado.
Mulatista-mor da pintura... Será que Di Cavalcanti aceitava de bom grado a denominação, que lhe foi dada, de "Pintor das Mulatas"? É provável que sim:
- A mulata, para mim, é um símbolo do Brasil, Ela não é preta nem branca. Nem rica nem pobre. Gosta de dança, gosta de música, gosta do futebol, como o nosso povo. Imagino ela deitada em cama pobre como imagino o país deitado em berço esplêndido. A mulata é o feminino e o Brasil é um dos países mais femininos do mundo. Não temos o machismo do México, o Brasil gira em torno das mulheres...
Estilisticamente, Di Cavalcanti sofreu, desde o início de sua longa carreira, numerosas influências, confessadas ou não: marcaram-no por exemplo Beardsley, Picasso, os renascentistas italianos, Gauguin, Rivera e os mexicanos, Delacroix, Matisse, Braque, Dufy e muitos, muitos outros. Todas essas influências foram analisadas, sopesadas, assimiladas, deglutidas e digeridas, incorporando-se definitivamente ao mundo formal do artista, que lhes imprimiu a marca de sua personalidade - tão forte, tão acentuadamente hedonista. Embora de base clássica (o que explica sua fidelidade, por exemplo, ao cubismo), a arte de Di Cavalcanti é expressionista e romântica, e a despeito de seu realismo, toca por vezes também no mágico e no fantástico. Quanto ao mulatismo de sua pintura, não existe somente nos temas, mas sim num jeito tropical e dengoso de os desenvolver, numa malemolência que nem é branca nem negra, mas deriva da mescla de ambas as raças - sem falar na pincelada gorda e despreocupada, na matéria por vezes suja e empastada.
Pioneiro do Modernismo no Brasil, idealizador da Semana de Arte Moderna de 1922, Emiliano Di Cavalcanti produziu, em cerca de seis décadas de carreira, uma quantidade prodigiosa de óleos e de desenhos, muitos de altíssima qualidade. Só sua atividade como desenhista daria para consagrar um artista - como se pode ver pelo exame da admirável coleção por ele doada em 1963 ao Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. Sem ter sido paisagista, pintor de história ou religioso - a não ser circunstancialmente -, foi seduzido sempre, ao contrário, pela figura humana, observada em si mesma ou em meio a opulentos cenários tropicais - a festa popular; a gafieira onde os corpos se abraçam; as pensões de mulheres; os interiores modestos de subúrbio. Também demonstrou predileção especial pela natureza-morta, tendo deixado uma quantidade considerável delas, nas quais com evidente ciência de composição dá vazas a seu intenso cromatismo, servindo-se de um desenho espontâneo e bem lançado.
Partiu do crítico Frederico Morais, por ocasião da retrospectiva de 1971 no Museu de Arte Moderna de São Paulo, uma das análises mais perspicazes da arte de Di Cavalcanti, razão pela qual a seguir a transcrevemos:
- Di Cavalcanti tem um espírito gordo e exuberante e faz um expressionismo de raízes barrocas e tropicais. A arte de Di tem o aspecto roliço, satisfeito e exultante do barroco rubenista. Di é romântico como Delacroix e Matisse, os quais buscaram a aventura do longínquo e do desconhecido: o Magreb, as odaliscas marroquinas, os arabescos. Seus pescadores, cercados de mulatas, atravessam com os olhos o Atlântico e querem outros continentes, outras regiões, outras histórias. A pintura de Di Cavalcanti tem, curiosamente, algo da aventura marítima portuguesa - é litorânea, praiana, fica entre o mar e o "bas-fond", entre o porto e o "dancing", não adentra o território brasileiro, nem quer ser interiorana ou regional. Aqui, no Rio, permanece na Lapa ou avança até o Mangue, perambula, erradia, nos subúrbios. O Rio de outrora. Di é carioca, um pouco à antiga, e sua arte é o carioquismo na arte brasileira. Como Di, o Rio é gordo, barroco, sensual, lascivo. Como de resto, e finalmente, a mulata. Ah, a mulata. Algumas são calipígias e esteatopígias, como as vênus pré-históricas, outras, menos gordas, são esvoaçantes e aéreas, como as mulheres rubenistas. Mas gordas, sobretudo, no espírito e no comportamento. Em nenhum outro artista brasileiro, a mulata recebeu tratamento pictórico tão alto e tão digno. Sem paternalismos, sem menosprezo. Di deu-lhe a dignidade da madona renascentista, madonizou a nossa mulata, o que não é o mesmo que mulatizar a madona, como o fez Athayde no céu barroco de Minas. Altaneiras, monumentais quase sempre, alegres ou sonhadoras, em devaneios - o gato no colo, a flor sobre o busto - apenas por alguns momentos o olhar parece triste ou vago. Porque, hedonista nato, amoroso da vida e das pessoas, Di não se deixa abater pelos problemas existenciais, pela inquietação política ou social. Coisas mais próprias para os espíritos magros.
Em 1997, por ocasião do centenário de nascimento do artista, diversas exposições importantes foram-lhe consagradas no Rio de Janeiro e em São Paulo.

Mulher e paisagem, óleo s/ cartão, 1931;
0,40 X 0,50, Palácio Bandeirantes, SP.

Vaso com flores, óleo s/ tela, 1936;
0,62 X 0,60, Palácio Bandeirantes, SP.

Pescadores, óleo s/ tela, 1942;
0,81 X 1,00, Palácio Bandeirantes, SP.

Flores, óleo s/ tela, 1946;
0,70 X 0,57, Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Mocinha com gato na janela, óleo s/ tela, s/ data;
0,78 X 0,62, Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Casa de mulheres, óleo s/ tela, 1962;
0,38 X 0,55, Museus Castro Maya, RJ.

Natureza morta, óleo s/ madeira, 1966;
1,00 X 0,54, Palácio Bandeirantes, SP.

DI PRETE, Danilo (1911-84). Nascido em Zambra (Itália) e falecido em São Paulo. Autodidata, iniciou sua carreira aos 20 anos, participando de diversas coletivas na Itália. Também trabalhou anos seguidos preparando carros alegóricos e bonecos em "papier maché" para os desfiles carnavalescos de Viareggio, uma experiência que, no seu entender, muito iria ajudá-lo décadas mais tarde, quando adotou como linguagem a arte cinética, porquanto naqueles carros - cheios de luzes, cores e sons -, utilizava recursos de marceneiro, eletricista, mecânico e ferramenteiro:
- A meu modo de ver, a arte deve ter alma, vida e movimento. Hoje me parece que um quadro apenas pintado é um objeto morto numa parede. Pois os meus quadros têm luz, som, ruídos, movimentação eletrônica, vida. Uma arte não só cinética, mas com som, também.
Durante a II Guerra Mundial foi telegrafista e participou do Grupo de Artistas Italianos em Armas com trabalhos que representavam cenas da guerra na Albânia, Grécia e Iugoslávia. Findo o conflito, embarcou para o Brasil, onde chegou em setembro de 1946, logo se radicando em São Paulo, onde exerceu por quatro anos consecutivos, a profissão de programador visual. Amigo de Francisco Ciccilo Matarazzo Sobrinho, foi quem lhe sugeriu a criação, em São Paulo, de uma Bienal de Arte, à semelhança da que se fazia em Veneza. Concretizando-se essa sua idéia participou, entre 1951 e 1967, de todas as Bienais de São Paulo, tornando-se nacionalmente conhecido e discutido depois que o seu quadro Limões conquistou, na I Bienal, em 1951, o prêmio nacional de pintura.
Di Prete figurou ainda em diversos certames artísticos importantes, dentro e fora do Brasil - como o Salão Nacional de Arte Moderna de 1952, o Salão de Maio parisiense desse mesmo ano, a XXVI e a XXX Bienais de Veneza, em 1952 e 1960, a 1 Bienal Americana de Córdoba, na Argentina, em 1962, e a mostra itinerante Arte Atual Brasileira, que em 1965 percorreu vários países da Europa; também expôs em diversas ocasiões individualmente, a partir de 1962.
Partindo de uma arte figurativa intimista, regida por suaves contrastes de forma e cor, a pintura de Di Prete atravessaria diversos estágios a partir da década de 1960, sentindo sucessivamente a sedução do abstracionismo informal e, abandonada a bidimensionalidade, encontrando na arte cinética talvez sua mais forte expressão. Numa entrevista concedida ao jornalista Luís Ernesto Machado Kawall em 1972, assim se referiu o artista ao tipo de arte que então produzia:
- Mesmo quando fazia arte figurativa, sempre me preocupei com o cósmico, o segredo espacial, o universo indecifrável. Isso até hoje, quando procuro integrar à arte cinética essa relação fantástica com o mundo irreal, misterioso, imprevisível em que vivemos. E também estou pensando em introduzir nos meus objetos, além de movimento e luz, música eletrônica e poemas falados. Na vida de hoje, desumana, burocratizada, mercantilista, todo mundo só pensa em se "desligar". Então, os objetos que vou fazer doravante servirão ao homem moderno, serão utilitários, ele ficará em sua casa, depois de chegar "arrasado" da cidade, muitas horas, diante deles, escutando seus sons, vendo seus movimentos coloridos e eletrônicos.
Grande experimentalista, utilizando com idêntica desenvoltura suportes e materiais tradicionais lado a lado com telas de arame, nailon, sucata, lâmpadas, tubos galvanizados, acrílico e motores elétricos, Di Prete imprimiu a todos esses elementos a marca de sua inquieta lucidez, merecendo essas palavras consagratórias de José Geraldo Vieira:
- Como se não lhe bastassem os estratagemas do trompe l'oeil, Danilo vai mais longe do que Le Parc e Schoeffer. Associa aos recursos plásticos o movimento pendular de lâmpadas acesas mas invisíveis que, indo e vindo, desvendam um espaço interior, uma nova dimensão pulsátil, despertam no bojo e na periferia dos quadros misteriosos fulgores de diamantes, ágatas, rubis, safiras, topázios, opalas, esmeraldas, ametistas, turquesas, sílicas, quartzos, granadas, coridons e berilos, obrigam aquelas maçanetas, aqueles fundos de garrafas, aquelas lascas, aqueles seixos a se transformarem em gemas, em grutas de Capri, em torsos siderais, enquanto as redes de náilon se põem a vibrar em ondas moirées. Trata-se de arrojado sincretismo de recursos que, renovando a obra de Di Prete, a elevam ao mais alto gabarito da arte contemporânea universal.

Abstracionismo, óleo s/ madeira, 1959;
3,50 X 1,30, Palácio dos Bandeirantes, SP.

Paisagem cosmica, óleo s/ tela, creca de 1967;
1,50 X 1,50, Pinacoteca do Estado de São Paulo.

DIAS, Antonio (1944). Nascido em Campina Grande (PB). Autodidata, transferiu-se em 1960 para o Rio de Janeiro, e dois anos mais tarde participava pela primeira vez do Salão Nacional de Arte Moderna. Praticava então uma pintura de tonalidades cavas, utilizando-se de suportes em relevo (obtido pela adição de camadas de gesso), e sobre a superfície assim criada traçava incisões de motivos indígenas. O crítico Walter Zanini, analisando essa primeira fase de sua carreira, fala pertinentemente na "influência da materialidade de Tapiès" - artista de sua admiração juvenil. Já no ano seguinte, porém, após ter sido contemplado com medalha de ouro e prêmio de aquisição em desenho no XX Salão Paranaense de Belas Artes, Dias imprimia violenta guinada à sua orientação artística, abandonando de vez a pintura em sua conceituação tradicional e passando a usar o espaço compartimentado à maneira dos comics, distribuindo os planos em duas superfícies amarradas entre si por canos e tubos. Sua figuração de então evocava a de artistas como Francis Bacon, Roy Lichtenstein e provavelmente Baj (ainda no dizer de Zanini), mas em breve o artista chegaria à tipicidade, enveredando então pela fase personalíssima das vísceras, mundo dilacerado de feridas abertas e de tortura, tão condizente, de resto, com a trágica realidade político-social por que o Brasil atravessava. É o momento de sua destacada participação na IV Bienal de Paris (na qual obteve o prêmio de pintura) e na mostra Opinião 65, do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (ambas em 1965), bem como já nos anos seguintes, nas mostras Opinião 66 (1966, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro), Pare! (1966, Galeria G. 4, Rio de Janeiro), Vanguarda Brasileira (Reitoria da Universidade Federal de Minas Gerais em Belo Horizonte, 1966) e Nova Objetividade Brasileira (1967, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro). Num depoimento escrito especialmente para o catálogo da mostra belorizontina de 1966, Antonio Dias traça uma lúcida síntese de sua evolução artística até então, documento esse válido não apenas em função do seu próprio trabalho, como, de modo mais amplo, em relação ao trabalho e ao mundo-de-idéias de toda a sua geração:
- "As feridas, a relação que tenho com a carne maltratada, por exemplo, me acompanham desde os oito anos. Não sei o que são, se traem um acento sádico ou se são lembranças de um sofrimento. Poderia tentar uma explicação qualquer, da realidade da carne sob as aparências, mas não o quero fazer porque não seria verdade. Através da pintura, das minhas coisas transferidas para o quadro, existe uma atitude profundamente fetichista. Posso notar isso de uma maneira clara, até mesmo nos elementos que me cercam em minha casa, no meu ateliê, nas pessoas que escolho para mim.
- Parei de fazer arte no sentido que está nos livros em 1963. Não era possível continuar. Senti que não era apenas o produto do meu trabalho, mas a própria intenção que era medíocre. Larguei tudo e parti para conhecer gente da minha idade. Até então só havia andado com gente mais velha do que eu - era um contido. Meu trabalho durante esta temporada foi acumular choques. Sentia-me preso e descobri de repente que milhares de jovens lutavam para a libertação, lutavam para fazer alguma coisa que fosse resultante de suas idéias, de suas relações com o mundo. Foi a conscientização dessa luta que me fez voltar ao ateliê e tentar, através do desenho, me situar, isto é, deixar claro para mim mesmo o que eu era.
- Se no início trabalhei desenfreadamente, isso foi por que estivera parado durante muito tempo, havia verdades acumuladas. Precisei de muita disciplina. Porque fazer um desenho, uma pintura, é contar a verdade e não se tem verdades para contar a toda hora; mentiras sim, se tem muitas.
- Hoje trabalho de vez em quando. Não me interessa o ato de pintar em si. Pintar me chateia. Só pinto por necessidade de dizer. Considero a pintura uma profissão. Mas se quiserem afirmar a pintura como um trabalho diário, então não sou profissional.
- Os jovens são propósitos em andamento. E se um jovem exerce o cinema ou a pintura, é quase inevitável que ele pense que através de denúncia conseguirá extirpar os males do mundo. Estou sempre pensando, por intermédio do meu trabalho, em levar as coisas para a frente, mas é preciso armar um sistema permanente de crítica contra um otimismo vulgar. As coisas mudam constantemente e é preciso estar sempre atento, fazer as reformulações no momento exato. Só assim conseguiremos uma ação efetiva mínima, já que é impossível controlar todas as coisas do mundo. Se eu conseguir dizer o que penso no meu trabalho, as pessoas o entenderão. Mas as idéias subvertem dentro de campos paralelos: só posso subverter aqueles que consomem pinturas. Mesmo assim, se dez pessoas entenderem o que faço, se apenas dez se aproximarem do meu trabalho e disserem: "Compreendo o que este cara está dizendo", esta corrente de dez pessoas irá engrossando tremendamente até se diluir no sentido geral da vida".
Em 1967, quando já era um dos mais importantes artistas de sua geração, e após ter sido tema - ao lado de Gerchman e de Roberto Magalhães - do curta-metragem Ver e Ouvir, de Antonio Carlos Fontoura, Antonio Dias transferiu-se para Paris, cidade onde já em 1965 havia efetuado uma individual e participado da mostra A Figuração Narrativa na Arte Contemporânea. Também em 1967 expôs, com sucesso, na Galeria Delta, de Rotterdam. No ano seguinte, após os acontecimentos de Maio de 1968 na capital francesa, o artista brasileiro mudou-se para Milão, onde tem residido desde então, com periódicas viagens ao Brasil, Colônia e Nova Iorque, além de curtas escapadas a outras cidades da Europa, para expor. Ao radicar-se contudo em Milão, a arte de Antonio Dias passou por nova transformação substancial, substituindo a figuração Pop até então seguida pela tendência conceptualista. Sem abandonar de todo o gesto de pintar, Dias voltou-se, ali, para novos recursos expressivos, como o vídeo e a fotografia, e abriu-se a novas tendências, como a arte condizionata, a arte política e a arte sistêmica, de cujas mostras antológicas em Milão, Karlsruhe e Buenos Aires participou sucessivamente em 1969, 1970 e 1971. Ao mesmo tempo, em princípios dos anos de 1970 sua arte passava a questionar a própria arte e se tornava uma reflexão sobre sua essência e limitações (série The Illustration of Art, Milão e Nova Iorque). Por outro lado, numa viagem ao Nepal, em 1977, surgiram-lhe os despojados discos desenhados sobre esplêndido papel artesanal fibroso, objeto de exposições na Europa e no Brasil, em anos subseqüentes.
Figura exponencial da jovem arte brasileira na segunda metade da década de 1960, quando tocou-lhe desempenhar, no Rio de Janeiro, papel de autêntico chefe de escola, Antonio Dias insere-se hoje na corrente da arte internacional de vanguarda, e seu espírito inquiridor não pára de pesquisar novas formas de expressão, novas media, novos universos visuais. A relação de suas individuais e de sua participação em coletivas e mostras panorâmicas, na Europa, na América do Norte e no Brasil, é extensa, como são numerosos os museus de arte contemporânea que conservam originais de sua mão. Em 1994 uma grande retrospectiva de sua produção, desde 1964, teve lugar no Instituto Mathildenhöhe de Darmstadt, na Alemanha.

The american death, vinil s/ tela, 1967;
0,97 X 1,90, Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Nota sobre a morte imprevista, técnica mista, 1965;
1,50 X 1,22, coleção particular.

DIAS, Cícero (1908). Nascido em Jundiá (PE). Em 1925 achava-se no Rio de Janeiro, matriculado no curso de Arquitetura da Escola Nacional de Belas Artes, que cedo trocou pelo de Pintura. Inconformado porém com o tipo de ensinamento acadêmico ali ministrado, abandonou em 1928 a Escola. Nesse mesmo ano, realizou sua primeira individual, não sem superar diversas dificuldades:
- Fui procurar o Graça, e o Graça me disse que eu fosse, com uma carta dele, procurar o Moura Brasil, que havia um salão da Policlínica defronte da Galeria Cruzeiro. Não encontrava o Moura Brasil, aí o Graça conhecia muito bem o Juliano Moreira, psiquiatra muito importante, e fui procurar Juliano Moreira lá no hospital, mostrei o desenho e ele me disse: "Está muito bem, porque lá no hospício está havendo um congresso de Psiquiatria mundial"... Fiz a exposição no salão da Politécnica, quando houve esse congresso. Foi um escândalo. Até consegui vender quadros. O público não aceitava aquilo de maneira nenhuma, só professores alemães, franceses, estrangeiros que naturalmente já estavam senhores de tudo aquilo.
Interrompido o curso de Belas Artes, Cícero partiu de volta ao Nordeste, expondo em 1928 em Recife e logo depois em três cidades do interior de Pernambuco:
- Em 1928, fiz uma exposição em Recife, depois fiz três exposições no interior do Estado, para justamente sentir a receptividade do povo para a pintura moderna, diante da expressão moderna. O povo não estranha; quem estranha o novo é o mal instruído, o burguês, mas o povo não. Em Recife, a repercussão foi horrível, fui perseguido pelo ambiente cultural, apesar da apresentação de Gilberto Freire.
Nessa apresentação, o grande sociólogo dizia, entre outras coisas:
- Das novas relações e proporções é que sai avivado pelo mais brasileiro dos azuis, pelo mais pernambucano dos encarnados, o lirismo profundo como em nenhum outro pintor que eu conheço, de Cícero Santos Dias. Esse pintor não tem requintes de colorido nem luxos, mas quase só azul e encarnado como os pintorezinhos pobres - de barcaças e de ex-votos e de casas de porta e janela.
Esse lirismo de base popular e autenticamente brasileiro nutriria de então por diante as melhores obras de Cícero, ao tempo em que praticava uma pintura ingenuamente surrealista, quando, rústico Chagall dos Trópicos, externava com simploriedade suas reminiscências e sensações de menino de engenho impregnado de fortes odores de frutas e do colorido dos canaviais, com medo de assombração e despertando para a sexualidade. "Pintura é poesia, qual técnica!" costumava dizer então aos que lhe censuravam o desleixo no acabamento das aquarelas e dos óleos. Desleixo que aliás não passou desapercebido a um crítico como Rubem Navarra, o qual assim caracterizou sua produção entre 1928 e 1937:
- Ele se dava a todas as liberdades no terreno da técnica. Tinha horror à virtuosidade linear e à lógica do espaço natural - a composição era uma montagem de símbolos e imagens - poemas e não arquiteturas. De maneira que não havia questão de exercitar nem forma nem matéria: o que importava era figurar um determinado sentido de evocação, por meio de imagens em geral soltas e mal construídas, onde tudo se encontrava na idéia de produzir um choque poético, através de uma linguagem como a dos primitivos ou a das crianças.
Esse desleixado, muito mais artista do que artesão, paradoxalmente chegaria a lecionar Técnica da Pintura em 1935, do mesmo modo como, desorganizado sempre, foi um dos organizadores do Congresso Afro-Brasileiro de Recife, em 1929...
Em 1931, no Salão Nacional de Belas Artes que Lúcio Costa pela primeira vez franqueava a artistas de orientação não-acadêmica, Cícero expôs um enorme quadro, Eu vi o mundo, ele começava no Recife, que causaria sensação:
- Eu expus um quadro enorme, esse meu quadro hoje tem 15 metros por dois metros e pouco. Mas ele era maior, ele devia ter mais ou menos vinte e tantos metros, e toda parte do quadro que tinha cenas eróticas desapareceu. Rasgaram o quadro, tiraram tudo isso, desapareceu...
O quadro, devidamente restaurado, e após ter integrado durante anos, em comodato, o acervo do Museu Nacional de Belas Artes, pertence hoje a um colecionador de Rio de Janeiro. Em 1937, após executar décors para um balé de Villa-Lobos na versão de Serge Lifar, Cícero Dias embarcou para Paris, pretendendo ali permanecer alguns meses, o suficiente para se esquecer do Estado Novo recém-implantado por Getúlio Vargas. Terminaria por se radicar definitivamente na capital francesa, da qual só se ausentou durante os anos da II Guerra Mundial, entre 1939-45 (quando viveu em Lisboa), e nas rápidas escapadas ao Brasil, aliás cada vez mais freqüentes para os últimos anos.
Pode-se imaginar o impacto da pintura de Cícero, tão logo chegado a Paris, sobre os surrealistas aos quais logo se ligou! Não admira assim tivesse sido acolhido com efusão por artistas e intelectuais do porte de Picasso e de Éluard. No ano seguinte ao da chegada, 1938, efetua com sucesso duas exposições em Paris. Mas é tempo de guerra, e após curta prisão sob os nazistas, nosso artista decide prudentemente fixar-se em Lisboa. Só retornará em 1945, deixando para trás não apenas o doce exílio lisboeta como toda uma fase pictórica marcada pelo improviso e pelo lirismo.
De fato, o Cícero de meados da década de 1940 não é mais o das imagens da infância, mas alguém preocupado com problemas formais e de relacionamentos cromáticos. Um abstracionista, em suma, que reduz o mundo a um conjunto de abstrações coloridas da realidade, despreocupado com a duplicação das formas naturais e sobretudo com o conteúdo anedótico ou literário ainda tão marcante em obras anteriores. Integrado, portanto, ao grupo abstracionista, freqüentador da Galeria Denise René, membro do Grupo Espace em 1946, Cícero deixa de ser um pintor regionalista e se insere na arte internacional de seu tempo. Numa curta visita ao Brasil, em 1948, executa, em Recife, aquele que é geralmente tido como o primeiro mural abstrato sul-americano. E em 1952 é um dos artistas selecionados por Leon Degand para figurar em sua obra Temoignages pour l'Art Abstrait, ao lado de Arp, Calder, Poliakoff, Magnelli e tantos outros. No mesmo ano sua exposição em São Paulo desperta em Oswald de Andrade o seguinte comentário inesperado:
- Cícero acaba de expor em São Paulo e entusiasmou-me. Julgo-o o maior pintor brasileiro de todos os tempos. Sim, o maior, digo e repito. E ninguém poderá imaginar que estou falando isso por camaradagem, uma vez que as minhas relações com Cícero são geladas.
Se a temática regionalista do primeiro Cícero Dias esvaiu-se, substituída pelas relações matemáticas entre formas e cores, não há como deixar de perceber, mesmo aí, uma atmosfera que é Nordeste, Pernambuco, o Brasil: afinal, não escreveu com acuidade Gilberto Freyre, há quase 60 anos, que Cícero usava em seus quadros "o mais brasileiro dos azuis, o mais pernambucano dos encarnados"?
Cícero realizou diversas exposições individuais, não apenas no Rio de Janeiro e em Recife, em São Paulo e Paris, como também em Lisboa (1942, com prefácio de Paul Eluard), Londres (1945), Bruxelas (1966) etc; também participou de importantes coletivas, como a XXV Bienal de Veneza (1950), o Salão de Maio, de Paris (1951, 1958), Jovens Pintores Abstratos da Escola de Paris (Bruxelas, 1951), Klar Form (Dinamarca, Suécia e Finlândia, 1952), e um sem-número de outras. Em 1965, a VIII Bienal de São Paulo dedicou-lhe uma sala retrospectiva, tornando a fazê-lo em 1994, no âmbito da exposição "Brasil Bienal Século XX". Desde aquele ano tem vindo assiduamente ao Brasil, para realizar individuais em São Paulo e Rio de Janeiro, Salvador e Recife, sempre com grande sucesso de vendas. É bem verdade que os quadros mais recentes, e que tentam reproduzir a antiga temática das evocações infantis em Jundiá, já agora vazada num desenho e num colorido nada espontâneos, não sustentam o cotejo quer com as aquarelas da primeira fase, quer com os grandes esquemas abstratos que se lhe seguiram. Na verdade, o grande Cícero Dias, aquele que se incorporou em definitivo à história da pintura brasileira, é o dos anos que medeiam entre a primeira individual e a partida para a França - 1927 e 1937 -, quando dele podia dizer Mário de Andrade, num artigo escrito em 1929:
- Ele tem calungas que não são nem cachorro, nem boi, nem burro. Tem aves que não são bem pombas, nem urubus, nem galinhas. É o Animal. É a Ave.

Mulher e soldado, guache, 1928;
0,31 X 0,30, Instituto de Estudos Brasileiros da USP.

Estátua e o monstro, guache, 1928;
0,55 X 0,38, Instituto de Estudos Brasileiros da USP.

Eu vi o mundo, começava no Recife, detalhe, óleo s/ papel, 1929;
2,50 X 1,50.

Moça com sombrinha, óleo s/ tela, s/ data;
0,74 X 0,61, Palácio Bandeirantes, SP.

Ilustração para o livro Ciclo da Moura, água-forte, 1966-67;
0,34 X 0,26, Museus Castro Maya, RJ.

Sem título, óleo s/ tela, 1951;
0,80 X 0,53, Museu de Arte Contemporânea da USP.

DJANIRA da Mota e Silva (1914-79). Nascida em Avaré (SP) e falecida no Rio de Janeiro. Descendente de austríacos e de guaranis, aos quatro anos foi morar na cidade catarinense de Porto União, de onde retornou mocinha a Avaré. Pouco depois mudou-se para São Paulo, ganhando a vida como vendedora ambulante. Morava então num cubículo da Avenida São João, e como diria anos depois numa entrevista, "no fim do dia caía estourada; nem dava para pensar em comer qualquer coisa". Essa existência de privações levou-a logicamente à doença: aos 23 anos, tuberculosa, é internada no Sanatório Dória, de São José dos Campos, não lhe dando os médicos senão alguns meses de vida. Foi no pavilhão dos desenganados que executou seu primeiro trabalho: o desenho de um Cristo crucificado, feio e sofredor. Outros desenhos iriam surgir desde então, no intervalo permitido pelas crises.
Mas Djanira sobreviveu à doença. Mudando-se para o Rio de Janeiro e casada com Bartolomeu Gomes Pereira, maquinista do Loide Brasileiro, passa a residir em Santa Teresa, ganhando a vida como modista. Na Pensão Mauá, onde sublocava alguns cômodos, instalou uma espécie de pensão familiar, fornecendo também comida a seus hóspedes, até porque era ótima cozinheira. Um desses hóspedes foi o jovem pintor romeno Emeric Marcier, recém-chegado ao Brasil. Segundo o crítico Flávio de Aquino, Djanira e Marcier fizeram um trato: "ela lhe daria casa e comida em troca de lições de pintura". No dizer da própria artista, "durante cinco ou seis meses aprendi com ele a cozinha da pintura, aquela que não se aprende na escola". Freqüentava também as aulas noturnas de desenho do Liceu de Artes e Ofícios, fazendo cópias do gesso. Ao mesmo tempo, ia aos poucos conhecendo a comunidade artística de Santa Teresa, que na ocasião incluía Vieira da Silva, Arpad Szenes e vários outros notáveis pintores estrangeiros, além de se relacionar com artistas nacionais como Milton Dacosta, Pancetti e Segall. Este, visitando-lhe um dia o modesto ateliê, disse-lhe comovido:
- Minha filha, você é uma pintora. Se necessitar de tintas, pincéis ou telas, não deixe de me procurar. Faço questão de lhe dar tudo.
Em contato com tais artistas, e com escritores e intelectuais como Murilo Mendes ou Rubem Navarra, Djanira aprimorou suas aptidões naturais para a pintura, desenvolvendo paralelamente a curiosidade intelectual e uma aguda inteligência. Rigorosamente falando, porém, pode e deve ser considerada uma autodidata, alguém que sozinha e a duras penas encontrou o próprio caminho. Por isso soam profundamente autênticas essas palavras de uma sua entrevista de 1962:
- Nunca voltei atrás nem fiz concessões. Apesar de tudo, das dificuldades de ordem econômica, de minha vida íntima, dos grupos de que participava com aparência feliz, eu estudava, observava o que se passava ao redor. O caos das bienais. Foi um período de maior solidão de minha vida, de maiores ponderações, de dias e noites trabalhando sozinha, estudando minha própria pintura, consultando minha consciência. Vi que só tinha um caminho a seguir: partir de mim mesma...
Dois acontecimentos marcaram a vida de Djanira em 1942: sua primeira aparição pública como pintora, expondo na Divisão Moderna do Salão Nacional de Belas Artes, e a morte do marido, quando seu navio, o Apaloide, foi torpedeado por um submarino nazista. No ano seguinte a artista realizou sua primeira individual, na Associação Brasileira de Imprensa do Rio de Janeiro, passando a viver exclusivamente da pintura. Nos Salões de 1943 e 1944 é premiada respectivamente com as medalhas de bronze e de prata, ao mesmo tempo em que começa a atrair as atenções da crítica. Com o dinheiro obtido com a venda de alguns quadros numa segunda individual, realizada também no Rio de Janeiro, embarca em 1945 para os Estados Unidos da América, na trilha de Milton Dacosta, com quem vivia então, e que um ano antes fora contemplado com o prêmio de viagem ao exterior da Divisão Moderna do Salão Nacional de Belas Artes. Sem falar uma única palavra de inglês, passará cerca de três anos naquele país, grandemente auxiliada pela escultora Maria Martins, na época embaixatriz brasileira em Washington. Nessa capital expõe individualmente, merecendo elogios de Eleonor Roosevelt, viúva do Presidente Franklin Delano Roosevelt. Durante a permanência norte-americana conhece pessoalmente Fernand Léger, Joan Mirò, Marc Chagall e outros célebres pintores, e trava contato, nos museus, com obras-primas de todos os tempos, declarando-se profundamente impressionada com a pintura de Pieter Bruegel, em quem admira além das qualidades puramente estéticas a fidelidade às raízes populares. Chega a receber do mestre renascentista flamengo curiosa influência, retemperada aliás alguns anos mais tarde, durante uma visita a Viena e ao seu Museu de História da Arte.
Regressando ao Brasil em 1947, Djanira efetua, no ano seguinte, nova exposição - dessa vez na sobreloja do edifício-sede do Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro, voltando a expor em 1949 em São Paulo e no Museu Imperial de Petrópolis, e em 1950 em Salvador. Não deixa, no entretempo, de tomar parte em coletivas como o Salão Nacional de Belas Artes (Divisão Moderna) e o Salão Paulista, recebendo em ambos premiações. Com o prêmio de viagem ao País obtido em 1952 no Salão Nacional excursiona pelo interior, e em 1953 viaja, a convite, para a União Soviética. No ano seguinte visita o Planalto Central e o Norte do Brasil, vai ao Chile e ainda participa de coletivas efetuadas na Tchecoslováquia e na Polônia, tendo sido também jurada do IV Salão Baiano de Belas Artes.
Ganhadora, em 1955, do Salão Cristo Negro, realizado no Rio de Janeiro, merece em 1958 uma primeira retrospectiva no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, apresentada em texto consagratório por Mário Pedrosa; a mesma retrospectiva é levada a São Paulo, à Galeria de Arte das Folhas, depois de ser mostrada em Munique, na Haus der Kunst. Ainda em 1958 a pintora realiza, a convite do Governador Carlos Lacerda, grande painel de azulejos no túnel Catumbi-Laranjeiras, no Rio de Janeiro (Santa Bárbara, 160 metros quadrados), ganha o Prêmio Nacional Guggenheim e tem um seu cartão de tapeçaria - Trabalhadores de Cacau - executado por Jean Lurçat em Paris.
É com uma individual de Djanira que se inaugura em 1960, no Rio de Janeiro, a Galeria Bonino - que vem dar nova orientação e estrutura ao comércio de arte brasileiro. Dois anos mais tarde, comemorando os vinte anos de carreira artística, Djanira expõe no Museu Nacional de Belas Artes, pintando igualmente em 1962 uma série de grandes painéis para os navios recém-adquiridos da Companhia Costeira de Navegação. Nova mostra retrospectiva terá lugar em 1967 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o qual, na ocasião, se metamorfoseia no ateliê da artista, por obra e graça de Martim Gonçalves, cabendo a José Roberto Teixeira Leite elencar as 130 pinturas e desenhos de várias técnicas então expostas. Contratada pela Loteria Federal do Brasil, realiza em 1968 uma série de guaches para as principais extrações do ano, enquanto dois anos mais tarde Julio Pacello edita, em tiragem de 100 exemplares, o Oratório de Djanira, dez gravuras iluminadas uma a uma, com texto introdutório de Odilo Costa Filho.
Na década de 1970 a atividade artística de Djanira viu-se consideravelmente reduzida em face de suas condições precárias de saúde, que com freqüência incomum forçaram-na a se submeter a delicadas intervenções cirúrgicas. Além de algumas participações em coletivas, devem ser destacadas nessa fase final de sua carreira a doação em 1971 ao Museu do Vaticano - foi a primeira artista latino-americana a ter aceita uma sua obra pelo famoso museu - e a grande retrospectiva de 1976 no Museu Nacional de Belas Artes.
Djanira que, ao lado de suas convicções políticas, manteve-se sempre extremamente religiosa, faleceu a 31 de maio de 1979 no Rio de Janeiro: na ocasião envergava o hábito de irmã leiga carmelita. Cinco anos mais tarde, o viúvo, José Shaw da Mota e Silva, fez à Fundação Nacional Pró-Memória, para o Museu Nacional de Belas Artes, importante doação de 57 pinturas, 27 gravuras com suas matrizes, cerca de 600 desenhos e todo o arquivo bibliográfico da artista.
Camponeses, pescadores, vaqueiros, operários, mineiros, índios, negros, mulatos e brancos são os personagens da vasta obra pictórica de Djanira, povoada também, por vezes, de santos católicos e orixás africanos. Seduziram-na igualmente as cidades coloniais e as variadas paisagens que in loco observou no Maranhão ou em Santa Catarina, nas praias fluminenses ou nas montanhas de Minas Gerais. Tudo isso ela viu amorosamente, e a tudo retratou, achando para cada assunto a forma exata e o tom preciso, fosse em pinturas a óleo, fosse em aquarelas ou guaches, desenhos a lápis de cor ou creiom, gravuras em madeira ou metal, quando não em tapeçarias e painéis de azulejos.
O desenho de Djanira, tosco se observado desde um ponto de vista estritamente acadêmico, reflete diretamente e sem disfarces possíveis sua personalidade. É rude, sim, mas acima de tudo sintético, conquistado penosamente, ano após ano, num exercício de paciência e sensibilidade, até vir a ser tão tipicamente djaniriano quanto a própria assinatura da pintora. O desenho, na pintura de Djanira, é de grande importância, pois é pela linha, mais do que pela cor, que a artista estrutura suas obras, "amarrando-as" num arabesco significativo. Já a cor queda subordinada invariavelmente à cor ambiente, muito embora seja lícito falar numa cor Djanira. Esse é mesmo um dos segredos maiores da artista, cujos dotes de colorista foram sempre muito intensos. Assim, nos quadros realizados em Parati, o azul do mar diferencia-se nitidamente do azul do mar de São Luís do Maranhão, por exemplo: Djanira, embora subordinando-se ao real, transfigura-o, dá-lhe uma dimensão poética que na verdade não possui. Ainda com relação à cor, observe-se como a artista é parcimoniosa no emprego dos tons: jogando com umas poucas gamas, que alterna a terras e pretos, obtém não raro um efeito final multicolorido. Os tons frios ou terrosos parecem dominar sua pintura, quer porque os temas que persegue assim o exijam, quer porque correspondem melhor à sua íntima personalidade.
Não está entre as preocupações de Djanira a ilusão de matéria: assim, em certas pinturas de tema folclórico, o metal da espada dos figurantes não se diferencia, a rigor, de sua carnação. Em certos momentos, porém, talvez mais por instinto, Djanira empresta, ao que representa, a textura correta - a massa pegajosa do fubá, no moinho, o dorso pintalgado de uma vaca.
Djanira faz uso de pinceladas lisas, unidas, sem recurso ao empate: o toque do pincel teima em se conservar anônimo. A impressão de volume acha-se rigorosamente ausente: casas ou pessoas, animais, palmeiras ou embarcações não possuem plasticidade, dispensando a artista quase como regra geral o modelado, utilizando a cor sem sombras, num esquema eminentemente plano. Tais formas coloridas surgem aos olhos do espectador quase como colagens, elementos pespegados ao suporte. Do mesmo modo, a atmosfera está ausente: entre o primeiro plano e os subseqüentes não existem espaços intermediários, tudo ocorrendo num ar rarefeito - o ar da pintura, bem mais que o real.
Djanira retratou, já o dissemos, sua terra e sua gente; mas o fez enquanto pintora, e não como documentarista, evitando o pitoresco e o anedótico graças às suas qualidades de intérprete comovida de nossa realidade. Superando do mesmo modo o decorativo pelo expressivo, Djanira foi artista aparentemente mais sensível que vigorosa, e a rigor não se insere nesse ou naquele movimento, sendo antes independente e pessoal. Partindo de uma visão ingênua dos seres e das coisas, tendo estribado toda a sua experiência estética na tradição popular, Djanira chegaria a atingir, com o passar dos anos, uma depuração, uma sabedoria pictórica raras na arte nacional. E não sem uma ponta de malícia dizia:
- Posso ser ingênua, mas minha pintura não.
Surpreendentemente, para os últimos anos da vida, quando mais crítica era a sua saúde e mais difíceis as condições de trabalho, a pintora parecia achar-se na plenitude dos seus recursos expressivos e no apogeu de sua produção, como o atestam os três importantes murais de 1976 enfocando a extração do minério de ferro na cidade mineira de Itabira.
É importante reproduzir partes de um depoimento escrito por Djanira, em meados da década de 1960, para um álbum que então se publicou sobre seu trabalho, pois revela a artista em toda a sua lucidez a verdadeira dimensão:
- Desde minha primeira infância, nos latifúndios do café, não sei o que seja ociosidade, o denso enigma de viver sem propósitos. Criança ainda, trabalhando no campo, aprendi a separar os frutos da terra, a selecionar riquezas. Verifiquei, antes de saber o ABC, o quanto valem o amor e o preço da sobrevivência. Aprendi também o valor da dignidade humana, na vida simples que me cercava. E é no meio da gente humilde, nas horas de trabalho, de festas e tradições, que reencontro o melhor do meu sofrido coração. Como pintora, habito as ricas vertentes populares do Brasil, passando pelos sítios nacionalistas dos mestres Almeida Júnior, Teles Júnior, Di Cavalcanti, Luís Soares e Tarsila do Amaral. Tenho raízes plantadas na terra, não me envergonho de ser uma nativa. Confio no desenvolvimento de uma arte autenticamente nossa. Já fiz viagens de largo bordo, atravessei oceanos e cordilheiras, e nos caminhos vindos veio comigo a justa desconfiança das fáceis importações cosmopolitas. O cosmopolitismo desagrega os valores de uma nação, de um povo. Descreio na arte sem origens locais, embora seja internacionalista.
E logo em seguida:
- As prematuras e rudes atividades que exerci ensinaram-me a tranqüila compreensão da vida e das pessoas. Quero bem ao ser humano como quero bem às paisagens. Uma bela paisagem é tão confortante quanto um ser humano cheio de bondade. Uma jarra de flores na mesa pode ser a figura de um amigo. Um animal, o canto lírico de Francisco de Assis, santo de minha devoção católica. As cores das frutas podem ser uma verdade individual. Várias portas nos levam a participar da arte. Comecei desenhando o ambiente modesto do qual participava: a casa, minha varanda, meus animais, retratos de vizinhos. Tudo em elaboração lenta, porque nunca fui habilidosa, e a facilidade algumas vezes leva o artista a descuidar-se da disciplina, conduz à indolência, à auto-satisfação.
E numa profissão-de-fé prossegue:
- Minha visão de pintora procura o sentimento da vida, as motivações artísticas. Tema é razão para trabalho, é afeto e consciência nacional. A luta plástica é rigor artesanal, exigência criadora, é superação, porque o assunto não faz uma pintura ser válida. Um quadro não é uma superfície sentimental, e só vale quando importa numa meditada contribuição de cultura. Mantenho rigor nestes meus princípios, pois pintura não é um jogo gratuito, nem motivo para uma triste fuga a problemas individuais. Pintura não é uma palavra abstrata, ao sabor de momentâneas inspirações. É lealdade social e compromisso. Sou autodidata, meu ponto de partida fui eu mesma, tudo muito difícil, sozinha a abrir caminho. Com as minhas limitações, vou suportando sacrifícios para cumprir com meu dever. Sem cuidados formais não há obra de arte, é necessário critério com o desenho, a composição, a cor. Sou fundamentalmente humana e formalista.
Um colorido triste e soturno dominava os primeiros trabalhos de Djanira, na década de 1940. Pouco a pouco a cor foi se avivando, e o desenho, canhestro a princípio, ganhou em apuro. Mas o que parece caracterizar em definitivo a arte de Djanira é justamente esse seu formalismo, um agudo senso de composição que, ocorrendo já nos primeiros quadros, para os últimos se aguçaria de modo extraordinário, a ponto de alguns deles se abeirarem do abstracionismo, sem todavia deixarem de representar formas e cores naturais. Na verdade, na arte de Djanira, mais talvez que na de qualquer outro pintor brasileiro moderno, repercute o encontro harmônico entre o influxo internacional e a tradição brasileira: sua pintura, se aproveitou a lição dos grandes mestres do Séc. XX e mesmo do passado, jamais deixou de se nutrir basicamente de ingredientes nacionais, flagrantes em seus quadros não apenas temática, como sobretudo atmosfericamente. Isso justamente é o que lhes dá grandeza e consistência.

Vista de Congonhas, óleo s/ tela, 1962;
0,65 X 0,92, Museus Castro Maya, RJ.

Painel de azulejos, Túnel Santa Bárbara, Rio de Janeiro, 1964.

Três Orixás, óleo s/ tela, 1966;
1,29 X 1,93, Pinacoteca do Estado de São Paulo.

E

ECKHOUT, Albert (1610?-1665?). Nascido e falecido em Groningen (Países Baixos). Um dos pintores que trabalharam para o Conde Maurício de Nassau em Recife, entre 1637 e 1644. Era sobrinho do pintor Gheert Roeleffs, com quem pode ter estudado, mas faltam dados sobre data de nascimento e morte, acerca de sua formação e de sua produção anterior à vinda para o Brasil. Em fins de 1636 embarcou para Recife em companhia de Nassau e nessa cidade trabalhou até 1644, com possíveis viagens à Bahia (onde teria ido em 1641 para executar, por deferência do Conde, o retrato jamais localizado do Vice-Rei Jorge de Mascarenhas, Marquês de Montalvão), ao Chile e à costa africana (Ghana ou Angola). Regressando à Europa, em março de 1645 estava em Groningen e em 1647 em Amersfoort, onde se casou. Recomendado por Nassau, parte em 1653 para Dresden, trabalhando pelos próximos dez anos para o Eleitor João Jorge II. Em 1664 seu nome é mencionado num documento hoje conservado nos arquivos de Groningen, sendo essa a última referência histórica a seu respeito. Na verdade, e ao contrário de seu companheiro Frans Post, Eckhout caiu em quase total esquecimento, não sendo citado por exemplo nos velhos léxicos de pinturas, só sendo resgatado em pleno Séc. XX, graças principalmente a estudiosos como Argeu Guimarães e Thomas Thomsen.
Durante a permanência no Brasil, Eckhout incumbiu-se de pintar os habitantes, a fauna e a flora do país, enquanto Post se ocupava dos cenários naturais, que representou em paisagens. Há quem admita uma colaboração entre ambos, Post incumbindo-se de fazer as paisagens que ocupam os últimos planos das pinturas de tipos étnicos de Eckhout, embora tal cooperação nunca tenha sido comprovada. Em 1654, em retribuição à Ordem do Elefante Branco que recebera um ano antes do Rei da Dinamarca, Nassau presenteou-o com 26 pinturas, entre elas 23 originais de Nassau: dois retratos do próprio Conde, "oito peças grandes, brasileiras, com figuras, e doze com frutas das Índias, mais uma com brasileiros". Perderam-se num incêndio os retratos do Conde, mas as demais obras de Eckhout ainda hoje podem ser vistas no Museu de Copenhague, sem falar em que em 1967, 1994 e 1998 estiveram expostas no Rio de Janeiro e em São Paulo. Muito embora sobre tais obras diversos autores tenham já se manifestado, até bem pouco eram elas encaradas mais como documentos do que como obras de arte, chegando Ribeiro Couto a afirmar, em 1942, que "não nasceram da emoção"... apenas informam e instruem". Na verdade, hoje a tendência é se considerar Albert Eckhout como pintor mais importante até do que o tão mais conhecido Frans Post, levando em conta não apenas a qualidade do que produziu como a modernidade dessa produção, sendo Post artista tão mais conservador.
As pinturas etnográficas de Eckhout, como Índio Tapuia, Mulato do Brasil etc., obedecem a um esquema composicional único, com predominância de elementos verticais em oposição a um horizonte baixo, geralmente a um terço da altura do quadro. Solitários, os personagens fitam face a face o espectador, destacando-se em meio à vegetação no exato centro do espaço pictórico. Acompanham-nos por vezes animais que sublinham a índole de cada retratado - domésticos, no caso dos Tupi já domesticados, peçonhentos, em se tratando dos indomáveis Tapuia. Um estudioso da obra de Eckhout, Enrico Schaeffer, observou com perspicácia que os personagens de suas pinturas "não possuem, com raras exceções, como por exemplo a Dança dos índios, geralmente considerada a sua obra-prima, aqueles movimentos dinâmicos do Barroco, mas sim a dureza estática de muitas obras dos pintores renascentistas, especialmente daqueles pintores menores da primeira metade do século anterior". De fato, inexiste na pintura de Eckhout a sugestão de movimento, tudo sendo representado em imobilidade, em meio a uma atmosfera rarefeita. Por outro lado, muito embora certas plantas e vegetais possam ser facilmente identificáveis, há espécies botânicas estilizadas, que por vezes chegam a lembrar as florestas imaginárias do Douanier Rousseau. Tal estilização contribui poderosamente para a aparência singularmente sinistra da Mulher Tapuia, que posa impassível tendo ainda nas mãos os restos de horrível banquete.
Muito mais modernas parecem-nos sem dúvida as naturezas-mortas, nas quais repercute longinquamente a lição de Caravaggio, se bem que lhes falte o que sobra nas do italiano - lirismo, aquela "elegance of every stalk, every vein, every twig" de que falou Berenson. Tanto às naturezas-mortas de Caravaggio quanto às de Eckhout falta a sugestão de espaço, tudo se desenvolvendo como que no vácuo, tal como ocorre (a comparação é ainda de Berenson) na pintura chinesa de flores. Mas nem seria necessário recorrer a Caravaggio para encontrar os precursores das naturezas-mortas de Eckhout: achamo-los na própria Holanda, com Pieter Aertsen, ou em Flandres, com Joachin Beuckelaer, um e outro de um prosaísmo que faria escola nos Países Baixos. De qualquer modo, não há como negar serem as naturezas-mortas de Eckhout uma inovação, ao tempo em que foram produzidas.
Entre os "presentes" que Nassau ofertou ao Eleitor de Brandeburgo em 1652 e ao Rei da França em 1678 achavam-se diversos originais de Eckhout pintados no Brasil. Outras obras suas podem ter ficado em poder do Conde e se perderam, quem sabe, nos incêndios que irromperam no Nassauischer em 1695 e na Mauritshuis em 1704, enquanto a Guerra de 1939-45 daria cabo de muitas, destruídas ou de paradeiro ignorado. Por isso mesmo reveste-se de grande importância a localização, em 1976, do Theatrum Rerum Naturalium Brasiliae (que se julgava destruído em 1945, sob os escombros da Biblioteca de Berlim), na Biblioteca da Universidade Jaggielonska de Cracóvia, na Polônia. São centenas de pinturas a óleo e desenhos, a maioria podendo ser atribuída a Eckhout, embora talvez seja ainda cedo para conclusões. Quanto às pinturas de Eckhout feitas em Dresden entre 1653 e 1663, delas restaram as 80 representações de pássaros e aves brasileiros do pavilhão de Hoflössnitz em Radebeul, inteira ou parcialmente de sua autoria, tendo-se perdido ao fim da II Guerra Mundial as decorações do Castelo de Schwedt-a-d-Oder, entre elas uma cena brasileira de atmosfera tipicamente eckhoutiana.
Resta uma derradeira menção ao importante papel desempenhado pelas obras de Eckhout e dos demais pintores de Nassau para a eclosão e o posterior desenvolvimento do gosto pelo Exotismo nas artes decorativas européias do Séc. XVIII, graças ao enorme sucesso alcançado pelas Tapeçarias das Índias, nelas inspiradas.

Mulher tupinambá, 1641.

Mameluca, óleo s/ tela, 1641;
2,67 X 1,60.

Mestiço, óleo s/ tela, 1641;
2,65 X 1,63.

Negro, óleo s/ tela, 1641;
2,64 X 1,62, Museu de Copenhague.

Dança tapuia, óleo s/ madeira, s/ data;
1,68 X 2,94, Museu de Copenhague.

Composição com cocos, óleo s/ tela, s/ data;
0,90 X 0,90, Museu de Copenhague.

Mulher tapuia, óleo s/ tela, 1643;
2,66 X 1,59, Museu de Copenhague.

Homem tapuia, óleo s/ tela, 1643;
2,66 X 1,59, Museu de Copenhague.

ENDER, Thomas (1793-1875). Nascido e falecido em Viena (Áustria). Filho de um belchior, tinha 12 anos quando se matriculou na Academia de Belas Artes, onde foi aluno de Maurer, Steifel e Mösme. Custeava seus estudos tocando violino, à noite, no café Zum Renhuhn, de Viena. Especializou-se na pintura de paisagens, tendo sentido a influência dos antigos paisagistas austríacos, como Schütz e Ziegler. Em 1817 recebeu o primeiro prêmio de paisagem da Academia, datando desse momento a proteção que lhe concedeu o todo-poderoso Metternich. Graças a esse protetor, no mesmo ano embarcou a bordo do Áustria com destino ao Brasil, na comitiva da Arquiduquesa Leopoldina, filha do Imperador Francisco I e futura Imperatriz do Brasil. Foram seus colegas, na expedição, os pintores Franz Frühbeck e Johann Buchberger, e os cientistas Spix e Von Martius.
A 14 de julho de 1817, com 23 anos, Ender chega ao Rio de Janeiro. Nos próximos dez meses retratou incansavelmente a paisagem, os tipos e os costumes do país, chegando a produzir cerca de 800 desenhos e aquarelas. A 1º de junho de 1818 retornou à Europa, onde deu prosseguimento à sua carreira. Assim, como pensionista da Academia viveu quatro anos na Itália, entre 1819 e 1822; em seguida, executou para Metternich uma série de doze vistas de Viena, e em 1826 passou quatro meses em Paris, ligando-se aos principais pintores da época na cidade. Voltando a Viena, tornou-se pintor privativo do Arquiduque Johann, irmão do Imperador Francisco I, executando para seu patrão as cerca de 800 cenas da Áustria em aquarelas. De 1836 a 1851 lecionou na Academia, falecendo aos 82 anos, rico e altamente considerado por seu compatriotas.
Thomas Ender cultivou a pintura a óleo e a aquarela, destacando-se principalmente nessa última técnica. Como paisagista, trabalhou não apenas em sua terra natal e no Brasil, mas também na Turquia, na Grécia e em outras regiões. Obviamente, a parte de sua produção que nos importa de perto é aquela feita no Brasil, no Rio de Janeiro e São Paulo e nas imediações de ambas as cidades. São desenhos e aquarelas de extrema sensibilidade, vazados num traço elegante e ágil e manchados com extraordinária habilidade e leveza; feitas de um jato, guardam, tais aquarelas, toda a emoção da primeira impressão sentida ante o motivo pelo artista. Nelas, Ender se revela um dos maiores pintores que estiveram no Brasil em princípios do Séc. XIX, e dos mais notáveis artistas austríacos de sua época.
A crônica da redescoberta do trabalho de Ender é curiosa e merece ser contada. As mais de 800 obras por ele produzidas no Brasil foram, como os demais materiais artísticos e científicos trazidos pela expedição de Spix e Von Martius, encaminhados pelo Imperador Francisco I ao Museu Brasileiro de Viena, criado por Von Schreibers e que se compunha de nada menos de 23 salas repletas de curiosidades. Com a morte do Imperador, o Museu foi fechado (1836), e os desenhos e aquarelas sumiram de circulação, menos aqueles que tinham sido reproduzidos em gravuras por Axman e Passini. Em 1950 o novo diretor do Gabinete Calcográfico da Academia de Belas Artes de Viena, Siegfried Freiberg, localizou as aquarelas brasileiras de Ender, organizando com elas uma exposição que teve boa repercussão no Brasil, tendo sido reapresentadas em São Paulo, por ocasião do IV Centenário da cidade, em 1954. Em 1997 o Museu da Cidade, o Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro, e o Museu de Artes Assis Chateaubriand, em São Paulo, dedicaram importantes exposições a Ender.

A bordo da fragata Áustria, detalhe, aquarela, 1817;
0,44 X 0,40.

Paisagem, aquarela, 1818;
0,29 X 0,43, Museus Castro Maya, RJ.

Pão de Açúcar, aquarela, s/ data;
0,19 X 0,28, Biblioteca Nacional, RJ


F

FIGUEIREDO e Melo, Francisco Aurélio de (1854-1916). Nascido em Areia (PB) e falecido no Rio de Janeiro (RJ). Demonstrando desde cedo pendor para o desenho e a caricatura, a exemplo do irmão mais velho, o célebre Pedro Américo, foi enviado na adolescência para o Rio de Janeiro, a fim de cursar a Academia Imperial de Belas Artes, o que fez sob a orientação do próprio Pedro Américo e do eventual substituto desse, Julio Le Chevrel. Por volta de 1871, ainda estudante, publicou em A Comédia Social suas primeiras caricaturas. Colaborou também na Semana Ilustrada, entre 1873 e 1875, sempre com caricaturas, nas quais se destacam, no dizer de Herman Lima, "o traço vigoroso e elegante, o desenho correto e limpo, a composição harmônica".
Concluído o curso da Academia, Aurélio de Figueiredo parte para Florença, onde já se encontra o irmão mais velho: permanece na Europa de 1876 a 1878, tendo sido aluno, na Itália, de Antonio Ciseri, Nicolo Barabino e Stefano Ossi, todos eles pintores de história, gênero e retratos.
Em fins de 1878 acha-se de novo no Brasil, dando início a curta colaboração em O Diabo Coxo, de Recife, encerrada em 1879 quando o periódico deixou de circular. De novo no Rio, mas com algumas viagens à Europa, Aurélio de Figueiredo inicia em 1880 intensa atividade, produzindo abundantemente, expondo com freqüência. Gonzaga Duque, em fins da década de 1880, acentua-lhe a predileção pelas alegorias e pela pintura decorativa, a facilidade do pintor e o seu talento. A obra mais notável dessa fase é sem dúvida a grande composição Paulo e Francesca de Rimini, de 1883, em que se destacam a composição e o tratamento das texturas.
A década de 1890 será também de muita atividade: Aurélio de Figueiredo pinta, então, alguns de seus melhores trabalhos, como O Copo d'água (1894), além de se impor como autêntico líder de classe, tentando, embora em vão, congraçar os artistas em torno a uma Galeria Livre, um "centro de atividade e expansão artísticas" destinado a agitar o marasmo cultural da época.
Foi porém em 1905 que o artista pintou sua obra mais célebre, A Ilusão do Terceiro Reinado, feita com autorização do Congresso Federal e adquirida pelo Presidente Rodrigues Alves. Porque focaliza episódio desenvolvido durante o célebre Baile da Ilha Fiscal, último da Monarquia, a obra é mais conhecida, embora erroneamente, como O Último Baile da Ilha Fiscal, se bem que o próprio artista, em pelo menos uma ocasião, a tenha designado como O Advento da República (Renascença, nº 37, março de 1907).
Muitas outras composições históricas executou Aurélio, entre elas Abdicação de Pedro I, Tiradentes no Patíbulo, Redenção do Amazonas, Derradeira Sinfonia - obras de encomenda, ou que se destinavam a serem compradas por governos provinciais, com temas sugeridos por historiadores, e por isso mesmo mais preocupadas com aspectos documentais do que propriamente artísticos. Não será nessas grandes composições que encontraremos o melhor de Aurélio de Figueiredo, e sim nas obras de cavalete, "pequenas fantasias de pincel", como a algumas delas chamou Gonzaga Duque.
Aurélio foi também paisagista, pintou naturezas-mortas e flores, fez retratos e, para o Teatro Municipal do Rio de Janeiro, apresentou, em 1909, quatro deliciosos esbocetos; além do mais, praticou a escultura, foi poeta e romancista, tendo inclusive vencido um concurso instituído pela Folha Nova de São Paulo, com o romance Missionário. Deixou obra abundante, que expôs em numerosíssimos ensejos, não apenas no Rio e em São Paulo, como em várias outras cidades brasileiras. Pequena parcela dessa sua produção foi mostrada no Museu Nacional de Belas Artes em 1956, por ocasião do centenário do seu nascimento.
Foi, como Pedro Américo, um romântico; mas sem os arroubos de teatralidade e grandiloqüência do irmão. Como artista, aliás, há quem o anteponha ao autor da Batalha do Avaí, pois foi sem dúvida maior colorista, dotado de maior emoção, e sobretudo, de uma visão mais atualizada, Faleceu a 9 de abril de 1916, deixando nas filhas o velho gosto musical da família, por elas concretizado na Escola Figueiredo, famosa na crônica do ensino de piano da antiga capital da República.

FLÁVIO-SHIRÓ Tanaka (1928). Nascido em Sapporo (Japão). De família tradicional, era filho de um dentista e intelectual dotado de habilidades artísticas que em 1932 emigrou com a família para o Brasil, fixando-se numa colônia de japoneses fundada em Tomé Açu (PA). Ali os Tanaka permaneceriam sete anos, entregando-se o chefe à sua profissão e, nas horas vagas, pintando retratos ("Ele reproduzia os rostos com uma perfeição inigualável. Tinha uma paciência infinita. Desenhava cabelo por cabelo, era meticuloso nos traços"); quanto à mãe, musicista, tocava koto e shamissen, e mais tarde, ao se transferir para São Paulo, chegou a dar concertos desses dois dificílimos instrumentos nipônicos. A morte de uma irmã de Shiró, aos 18 anos, de apendicite, fez com que a família abandonasse Tomé Açu e procurasse São Paulo, por volta de 1940.
Em São Paulo, a situação agravou-se: não apenas o diploma de Odontologia do pai não era reconhecido, como os cidadãos japoneses passaram a ser encarados de modo hostil após 1941:
- Meu pai poderia ter comprado um diploma, mas se recusou, era homem escrupuloso. Fomos morar em Mogi das Cruzes, primeiro, onde trabalhamos nas plantações de chá de conhecidos. Depois, São Paulo, na Rua Bueno de Andrade e em seguida na Rua Augusta, onde abrimos uma quitanda. Eu era o entregador, colocava a cesta de verduras no meio do guidão da minha bicicleta e ia embora. Meu pai continuou numa atividade intelectual. Traduziu Monteiro Lobato para o japonês, fez ilustrações, escreveu artigos em jornais. Trabalhava esporadicamente, como dentista, para pessoas conhecidas. Preparava as dentaduras, moldando dente a dente. Era mesmo um artista. Eu costumava observar esse trabalho, vendo as dentaduras serem moldadas e colocadas no forno. Quem olhar minha obra vai encontrar, às vezes, este referencial dos dentes, dos maxilares, da boca.
Na Escola Profissional Getulio Vargas, que passou mais tarde a freqüentar, fez amizade com outros futuros artistas, como Otávio Araújo, Grassmann e Sacilotto. A partir de então sua vocação artística se define. Shiró comparece às sessões de modelo-vivo do Grupo Santa Helena e em pouco tempo surgem-lhe as primeiras pinturas. Tinha apenas 19 anos quando participou da mostra 19 Pintores, em 1947, expondo paisagens e naturezas-mortas expressionistas, de colorido ainda indeciso, mas vazadas num desenho já nervoso e dramático. Ao mesmo tempo, trabalhou sucessivamente como empregado numa fábrica de móveis e letrista da Metro Goldwyn Mayer, e ao se transferir para o Rio de Janeiro, torna-se ajudante na molduraria do grande pintor Kaminagai, a quem seu pai confiara sua educação artística.
Essa permanência de Shiró no Rio, embora curta, produziu frutos: primeiro, a medalha de bronze no Salão Nacional de Belas Artes, em 1949; no ano seguinte, a primeira exposição, no Diretório Acadêmico da Escola Nacional de Belas Artes, com apresentação generosa de Antônio Bento. Retornando em 1951 a São Paulo, dois anos mais tarde seguia para a França, com bolsa de estudo em Paris, ali se aperfeiçoando com Gino Severini (mosaico), Friedlaender (gravura em metal) e na Escola Superior de Belas Artes (litografia). No começo com a magra pensão da bolsa, depois com a problemática venda de seus quadros, Shiró foi-se mantendo durante longos anos na capital francesa, onde terminou por se impor e por conquistar o seu lugar; tudo isso, porém, sem deixar de participar do movimento artístico brasileiro. Entre os prêmios mais importantes que obteve figuram o Internacional de Pintura, na II Bienal de Paris, em 1961, e o Nacional de Pintura do Festival Internacional de Peinture de Cagnes-sur-Mer. Desde então vem alternando sua carreira entre o Brasil e a França.
Do ponto de vista do estilo, a arte de Flávio-Shiró tem atravessado vários estágios, começando, como já foi dito, pelo figurativismo expressionista dos quadros expostos em 1947 na mostra dos 19; veio em seguida uma fase de progressivo afastamento da representação, e no fim da década de 1950 Shiró foi um dos pioneiros, no Brasil, do Abstracionismo Informal, sem abandonar sua veia expressionista; em meados da década seguinte, Shiró seria igualmente dos primeiros adeptos da Nova Figuração, sempre, porém, sem abrir mão do seu expressionismo, por vezes mesclado a elementos fantásticos. Na verdade, Shiró sempre oscilou entre as vertentes figurativa e não-figurativa da arte, numa deliberada ambigüidade. Nos óleos mais recentes, por exemplo, por entre as grandes massas cromáticas e os violentos efeitos de textura ou grafismo, pode-se adivinhar sugestões e restos de formas orgânicas - não apenas os " dentes, maxilares e bocas" a que se referiu explicitamente, como também vísceras e aberrações anatômicas, torsos truncados, cabeças disformes, figuras de totens ou de seres ancestrais que traduzem um mundo-de-idéias sofrido e torturado, numa angústia existencial. O crítico Olívio Tavares de Araújo assim se referiu em 1985 a esse aspecto da arte de Shiró:
- Não é regra, entre os artistas visuais, aposse de uma mentalidade especulativa aguçada, se bem que haja Kandinskys e Mondrians como exceção. Mas Flávio-Shiró é, inelutavelmente, um homem de formas e de idéias. Contamina-o, nestas, um pessimismo existencial básico, a visão trágica da condição humana, atada a seu destino de Sísifo, erodida por princípio pela única certeza definitiva: a da morte. Mais ainda: como homem do seu tempo, à angústia da espécie Shiró acrescenta a angústia metafísica - a qual, como ele mesmo lembra, não existia para os grandes pintores do passado. Sob a constatação da morte inevitável do indivíduo surgem hoje, como sentimentos, a noção nietszcheana de que Deus também morreu - e de que o planeta e o universo correm o mesmo risco. Tudo isso é o que dá seiva e forma à pintura de Shiró.
Flávio-Shiró tem expostos freqüentemente, individual e coletivamente, no Brasil e em países como Japão, França, Bélgica, Estados Unidos, Reino Unido e Itália, e ainda em 1993 e 1994 o Hara Museum de Tóquio e o MAM do Rio de Janeiro dedicaram-lhe retrospectivas, o mesmo fazendo em 1998 o Museu de Arte Contemporânea de Niteroi.

Délfica, óleo s/ tela, 1963;
1,70 X 2,36, Museu de Arte Contemporânea da USP.

Máquina humana, óleo s/ tela, 1969;
1,26 X 2,03, Pinacoteca do Estado de São Paulo.

FLEXOR, Samson (1907-71). Nascido em Soroca (Romênia) e falecido em São Paulo (SP). Filho de um engenheiro-agrônomo da Bessarábia, abandonou em 1924 seu país natal para se fixar em França, cuja cidadania adotaria, e em Paris realizou toda a sua aprendizagem, cursando sucessivamente a École Supérieure des Beaux Arts e as Academias Ranson e da Grande Chaumière. Tomou parte pela primeira vez numa exposição pública em 1926, quando expôs no Salon d'Automne um nu e algumas flores. No ano seguinte efetuava sua primeira individual, efusivamente saudada pelo crítico André Salmon. A partir de então levou a vida típica dos artistas da École de Paris, ligando-se a pintores como Lhote, Léger e Matisse, participando de salões como o dos Indépendants (1928-35), o das Tuilleries (1936-39) e o dos Surindépendants (do qual seria um dos fundadores, em 1929), e realizando diversas mostras individuais, não apenas em Paris como ainda em Bruxelas, Lisboa, Stuttgart, Nova Iorque, Montevidéu, etc. Na capital francesa pintou também uma série de murais, nos quais deu vazas ao seu mundo de idéias, mais místico do que propriamente religioso.
Flexor começou a pintar sob a égide do Neo-impressionismo, e sua primeira especialidade seria a pintura de nus. Mais tarde sofreu o impacto do Cubismo, e em especial do grupo da Séction d'Or. Sua pintura, na década de 1930, envelopava um conteúdo expressionista numa forma que, em última análise, reportava-se aos postulados cubistas, com ênfase na construção do quadro. A Guerra de 1939 atingiu fundamente o artista, modificando-lhe a paleta - que se restringiu aos cinzas e pretos - e lhe aprofundando a temática religiosa, ocorrendo com freqüência crescente os temas da Via Sacra e da Paixão, tão condizentes, de resto, com o trágico momento político por que atravessava então a Europa. Seria já no Brasil e em São Paulo - para onde se transferiu em 1946 - que Flexor daria por concluída essa extensa série de composições relacionadas com a Paixão de Cristo, nas quais repercute a índole de um autêntico pintor expressionista.
Decorridos dois anos de fixação no Brasil, a linguagem plástica de Flexor principia a modificar-se, sob o impacto da cor brasileira e do barroquismo dos Trópicos: numa individual efetuada em 1948 em Paris, o pintor revela-se de posse de um colorido diferente e de uma nova temática, postando-se, estilisticamente, a meio caminho entre o Figurativismo e o Não-Figurativismo. Mais ou menos pela mesma época, motivado pela doutrinação do crítico Leon Degand - a quem conhecera ainda em Paris, e que na época dirigia, em São Paulo, o Museu de Arte Moderna -, adota abertamente o Abstracionismo, afastando-se de vez da representação das formas e cores naturais. Seria, inclusive, um dos precursores da nova tendência entre nós, tanto mais que, sempre estimulado por Degand, criaria em 1952 em São Paulo o Ateliê Abstração, núcleo a partir do qual o Abstracionismo brasileiro iria desenvolver-se, e no qual estudaram, entre outros, Jacques Douchez, Nicola, Raimo, Wega Nery e Alberto Teixeira.
Uma das séries mais notáveis de Flexor surgiria em 1954: os "vai-e-vem diagonais", nos quais ainda repercutem muito fortes os princípios colocados em circulação por Gleizes, Metzinger, La Fresnaye e outros componentes do Grupo Section d'Or. O artista compraz-se, então, em construir suas pinturas com rigor matemático, atenuando-o, porém pelo sensível colorido, de fortes matizes. Nesse mesmo ano de 1954 integra a representação do Brasil na XXVII Bienal de Veneza, e em 1955 sua obra é objeto de importante retrospectiva no Museu de Arte e de História de Genebra. Na ocasião, o prefaciador da mostra, Charles Goerg, traça a evolução estilística de Flexor, dizendo entre outras coisas:
- Suas primeiras obras brasileiras consagradas às "abstrações tropicais", traduzem um lirismo formal e colorido. Segue-se um momento de serenidade, no qual, orientado por suas predileções religiosas, Samson Flexor atinge uma síntese de expressão. Vem depois um período de abstração fria e cristalina, próxima do Construtivismo e das preocupações óticas e ambíguas da Op Art. Finalmente, dá-se o alçar vôo para as pesquisas muito recentes em que o olho "escuta" as pulsações dos elementos e faz eclodir, na extensão da tela, estranhas crateras, flores venenosas, ondas indomadas, signos de uma totalidade plástica e poética, a que aspira Flexor.
Flexor (que em 1955 naturalizou-se brasileiro) efetuou em 1957 viagem aos Estados Unidos, tendo então exposto na Roland de Aenlle Gallery de Nova Iorque; e em 1963 retornou, pela última vez, a Paris, a fim de expor individualmente na Galerie Georges Bongers. Em meados da década de 1960, sua pintura, após atravessar curto interlúdio em que o artista deu prioridade ao gestual e à matéria, com belos efeitos de transparência e diafanização tonal, retomou o filão figurativista, surgindo então os bípedes, grandes superfícies tomadas de alto a baixo por configurações arquetípicas de seres humanos, monumentais e hieráticos.
Entre as individuais realizadas por Flexor no Brasil citem-se as de 1950, 1954 e 1961 no MAM de São Paulo, as de 1955, 1961 e 1968 (retrospectiva) no MAM do Rio de Janeiro e a de 1960 no Museu de Arte de Belo Horizonte. No que respeita a coletivas devem ser mencionados o Salão Nacional de Arte Moderna (1952 a 1961), a Bienal de São Paulo (1953 a 1967), Cinqüenta Anos de Pintura Abstrata (Paris, 1957), Salon Comparaisons (Paris, 1964) e Premissas 3 (São Paulo, 1966). As igrejas de Nossa Senhora de Fátima e Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, o Clube Atlético Paulistano e várias residências particulares de São Paulo possuem murais de sua autoria. Entre os museus que têm obras suas acham-se, no Brasil, os de Arte Moderna de São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia, e no estrangeiro, o Museu Puschkin, de Moscou, o Museu de Arte Moderna de Paris e o Museu de Arte e História de Genebra.

Aos pés da Cruz, óleo s/ tela, 1949;
1,30 X 0,95, Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Geométrico grande, óleo s/ tela, 1954;
1,60 X 1,80, Museu de Arte Contemporânea da USP.

Bípede, óleo s/ tela, 1967;
1,91 X 1,35, Pinacoteca do Estado de São Paulo.

FRANCO, Gessiron, dito Siron (1947). Nascido em Goiás Velho (GO). Mudando-se criança ainda para Goiânia, nessa cidade deu início em 1959 à sua aprendizagem artística como aluno ouvinte da Escola Goiana de Belas Artes, passando a freqüentar no ano seguinte os ateliês de D. J. Oliveira e Cléber Gouvêa, que o incentivaram. Em 1967 realizou sua primeira individual, de desenhos, no Hotel Bandeirantes da capital goiana, e já no ano seguinte um seu desenho obtinha prêmio de aquisição na
II Bienal Nacional de Artes Plásticas, em Salvador. Mudando-se em 1969 para São Paulo, freqüentou nessa cidade os ateliês de Walter Levy e Bernardo Cid, e nesse mesmo ano participou de uma coletiva de arte fantástica na Galeria Seta. Em 1973 regressou a Goiânia, recebendo dois anos depois o primeiro prêmio, de viagem ao México, do I Salão Global da Primavera, realizado em Brasília pela Rede Globo. Seria o começo de uma consagração que incluiria vários outros prêmios, inclusive o de viagem ao estrangeiro no XXIV Salão Nacional de Arte Moderna e o Internacional de Pintura na XIII Bienal de São Paulo, ambos em 1975. Com o prêmio de viagem do Salão Moderno residiu de 1976 a 1978 na Europa, com permanências mais duradouras em Madrid, Paris, Londres, Roma e Estocolmo. De regresso ao Brasil e de novo fixado em Goiânia deu início em 1979 ao projeto Ver-a-Cidade, uma série de interferências no espaço urbano. Entre essas interferências urbanas merece atenção especial a série com a bandeira nacional que iniciou em 1986, quando dispôs 60 antas em gesso formando o pavilhão brasileiro diante da Esplanada dos Ministérios em Brasília; a série continuaria com as cabeças, o cemitério dos inocentinhos em 1990 e, no ano seguinte, os milhares de carrinhos de plástico soldados uns aos outros em simulação de um imenso acidente de trânsito, com cacos de vidro, cruzes negras etc., expostos na 21ª Bienal de São Paulo.

Siron tem realizado inúmeras mostras individuais em cidades como Brasília, Goiânia, São Paulo, Recife, Porto Alegre, Rio de Janeiro, Curitiba, Salvador e Belo Horizonte, culminando com a grande mostra que itinerou por vários museus brasileiros em 1997, para comemorar os seus 50 anos; também vem participando de um sem-número de coletivas dentro e fora do país, entre elas a Bienal de São Paulo (1975, 1977, 1989, 1991), a IV Bienal de Medellin e a V Bienal de Valparaíso ( 1981); Panorama de Arte Atual Brasileira (1983, MAM-SP), A Cor e o Desenho no Brasil, que percorreu várias cidades da Europa e do Japão em 1984; IV Bienal Ibero-Americana do Auto-Retrato (1984, México), Tradição e Ruptura (1984, São Paulo), Today’s Art of Brazil (1985, Tóquio), Expressionismo no Brasil: Heranças e Afinidades (1985, São Paulo), Brasilidade e Independência (1985, Brasília), Modernidade - Arte Brasileira do Século XX (1987, MAM de Paris e de São Paulo), Arte Fantástica (1987, Indianapolis, Nova York, Miami e México), Brasil Já (1988, Leverkusen, Stuttgart e Hannover), Figuración y Fabulación (1990, Caracas), Viva Brasil Viva (1991, Estocolmo), Bienal Brasil Século XX 1994, São Paulo), Grito (1996, MNBA) e I Bienal do Mercosul (1997, Porto Alegre).
Nascido numa cidade perdida no tempo e no espaço, era natural que Siron sentisse como artista a necessidade de exorcizar seus fantasmas pela prática de um tipo personalíssimo de arte que outra coisa não é senão a catarse de sombrias obsessões. Walmir Ayala contou como trouxe da infância "as raízes do grotesco e do irreal, histórias de fantasma contadas pela mãe, o livro sobre Bosch presenteado pelo avô, a vizinhança de um manicômio". Por sua vez Aline Figueiredo descreveu seu método de trabalho:
- Seu processo criativo começa na intenção de fazer uma crônica de suas impressões do cotidiano. Nessa tarefa ele quer captar especialmente o lado absurdo dos fatos corriqueiros. Trabalha por negociações. Diariamente está munido de um pequeno bloco onde faz rápidos desenhos enquanto conversa ao telefone ou bebe com amigos nos bares de Goiânia. Registra pessoas e animais, figuras toscas e deformadas, detalhes eróticos, cenas humoradas ou mórbidas, interpreta o que vê ou lê. Mais tarde, constata que seu caderno de bolso está repleto de registros grotescos e insólitos. Entretanto, Siron não fica preso a esses desenhos iniciais que lhe servem, antes de tudo, como exercício de indagação para ordenar seu raciocínio plástico. Ao trabalhar essas idéias na tela, ele as coloca num cenário rico de implicações, onde o efeito pictórico fala mais alto. Dono de um ótimo e particular domínio técnico, seu colorido de tons baixos, cinzas e marrons acrescenta uma atmosfera dramática aos seus enredos.
E prossegue a crítica matogrossense, sem dúvida de suas melhores intérpretes:
- Preferindo falar amplamente do homem e sua ferocidade, Siron desenvolveu muitas séries, tendo sempre em ara esse personagem como um animal perigoso. Na cabeça - o olhar perverso e o ranger de dentes - está o ponto principal de referência dessas implicações. Há um grande sarcasmo em toda a obra, povoada de criaturas grotescamente carcomidas e decrépitas. Agrupadas ou isoladas, suas personagens se entre-autodevoram num clima de agressividade. Na luta entre o racional e o irracional se evidencia o último, responsável pela degradação humana. E na luta pela sobrevivência, ele aponta o lado sórdido e cruel das tramas internas do poder. Assim, vem acrescentando à sua fileira de personagens os novos ricos, mandatários, executivos, panfletários, comerciantes, corruptos, loucos, bestas e vítimas, componentes do quadro capitalista.
Não abrindo mão da figura, principalmente humana, ou do assunto, praticando uma pintura fantástico-expressionista não sem afinidades com a dos grandes pintores visionários ou moralistas de todos os tempos, de Bosch a Grosz, de Bacon a Goya, Siron possui um universo pictórico pessoal, tanto tematicamente quanto pela qualidade de tudo quanto realiza. Seu mundo-de-idéias revela obsessão pela idéia do Mal, fascínio pelo disforme, desconfiança e sentimento de culpa em relação ao sexo, a pesada herança cristã da culpa, da queda e da perdição. Seus quadros não são exercícios gratuitos de pintura: são também libelo, denúncia, indignação - como o comprovam as cáusticas obras sobre o acidente com o césio 137 em Goiânia, o massacre dos ianomânis ou os escândalos da Era Collor, entre 1990 e 1993 -, pois a Siron também se aplicam as palavras que há mais de 400 anos o Frade Joseph Siguenza proferiu acerca de Jheronimus Bosch, ao ver as pinturas dele conservadas no Escorial: "A diferença que a meu ver existe entre as obras desse pintor e a dos demais pintores é que todos pintaram o homem tal como é por fora, só ele ousou pintá-lo como é por dentro".

Rainha, óleo s/ madeira, 1975;
0,89 X 0,89, Museu Nacional de Belas Artes, RJ.

Título proibido, óleo s/ tela, 1984;
1,80 X 1,70, Museu de Arte Contemporânea da USP.

FUKUSHIMA, Tikashi (1920). Nascido em Fukushima(Japão). Muito jovem, foi desenhista numa fábrica de aviões em
sua cidade natal. Sentindo a aproximação da guerra, mudou-se para o Brasil em 1940, radicando-se inicialmente em Lins, onde, como Mabe - a quem conheceu nessa ocasião - trabalha como lavrador, ensaiando, nas horas de folga, os primeiros tímidos passos na arte da pintura. Em 1946 muda-se para o Rio de Janeiro, tornando-se aluno de Tadashi Kaminagai, que exercerá forte influência sobre os começos de sua pintura. Voltando a São Paulo, monta em 1948 uma oficina de molduras no Largo Guanabara, à qual acorrem pouco a pouco artistas de tendências afins. Surgirá assim, em 1948, o Grupo Guanabara, aglutinado em torno a Fukushima e formado por pintores como Takaoka, Tamaki, Handa, Tanaka, Suzuki, Higaki, Massuda e Mori, mais Arcangelo Ianelli, Alzira Pecorari e outros. De 1950 até 1959 o Grupo Guanabara realizou cinco exposições, deixando de existir nesse último ano, e pondo fim a uma tendência gregária que se manifestara na arte brasileira na década de 1930.
Fukushima participou de coletivas como a Bienal de São Paulo (1951 a 1969), o Salão Nacional de Arte Moderna (1952 a 1966; prêmio de viagem ao Brasil em 1963) e o Salão Paulista de Arte Moderna (1958 a 1962; pequena medalha de prata em 1958, grande medalha de prata em 1959, pequena medalha de ouro em 1960 e prêmio Governador do Estado em 1962), além de tomar parte, muitas vezes, em salões estaduais como os de Belo Horizonte e Curitiba, nos salões anualmente organizados pelo Grupo Seibi (1958, medalha de ouro) e ainda em manifestações como a Bienal Nacional de Artes Plásticas da Bahia, em 1966, e, no exterior, a Bienal de Tóquio de 1963, a exposição Arte Latino-Americana no Museu Guggenheim de Nova Iorque em 1965, a mostra Pintura Nipo-Brasileira Atual em Washington, Oakland e Tóquio em 1965, a itinerante Grandes Mestres do Abstracionismo Brasileiro, que entre 1984 e 1985 foi levada a várias cidades européias e norte-americanas, etc. Quanto a individuais, desde 1961, quando expôs no Museu de Arte Moderna de São Paulo, vem expondo com freqüência em São Paulo, e mais raramente em outras cidades do país.
Sua pintura, a partir de primícias pós-impressionistas, foi adquirindo em começos da década de 1950 uma estruturação maior, sob a influência dos postulados cubistas. Por volta de 1957, porém, Fukushima adere ao abstracionismo informal (do qual seria um dos mais típicos representantes no Brasil), apaixonado pelos efeitos de matéria que iriam caracterizar doravante toda a sua produção. A tal respeito, vale a pena transcrever o que sobre ele escreveu Mario Pedrosa, em 1961:
- Para ele a matéria é tudo, o resto, nada. Nesse sentido, não há pintor mais clara e simpaticamente hedonista do que ele. Ama a pintura, e com que amor! porque ama a matéria, que na sensibilidade oriental só pode ser bela, já que é a matriz generosa, embora contraditória, da vida.
Os efeitos texturais, espargidos a espátula em largos gestos sobre o suporte, combinam-se a efeitos admiráveis de cor para, gradativamente, darem vida a uma série de massas que parecem brotadas de dentro da tela, "uma vida nova que jamais existiu nesse mundo", como se expressou o pintor ele mesmo. Paisagens abstratizadas em que os tons dourados, pretos, vermelhos, verdes e azuis parecem cantar, essa pintura de Fukushima evoca sem dúvida, sob roupagens ocidentais contemporâneas, a antiquíssima arte tradicional nipônica, representando portanto uma síntese de Oriente e Ocidente, de Antigo e de Novo a ponto de sobre ela ter-se assim externado Walter Zanini, em 1966:
- Reconhecemos na diafanidade de sua matéria eterizada as tradições figurativas da arte japonesa, como os célebres e aristocráticos fusuma da Época Momoyama.

Vento e mar, óleo s/ tela, 1960;
1,09 X 1,35, Museu de Arte Contemporânea da USP.

Premier regard, óleo s/ tela, 1969;
1,30 X 1,95, coleção particular.

G

GERCHMAN, Rubens (1942). Nascido no Rio de Janeiro. Iniciou sua aprendizagem artística em 1957, cursando as aulas noturnas de Desenho do Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro, e já no ano seguinte começou a trabalhar como programador visual em revistas e casas editoras cariocas, o que fez até 1966. Em 1960 matriculou-se na Escola Nacional de Belas Artes, tendo sido aluno de Xilogravura de Adir Botelho, mas afastando-se do curso em 1961. A sua primeira mostra, de desenhos e litografias, teve lugar em 1964 na Galeria Vila Rica, mas só em 1965 realizaria uma individual de repercussão, na Galeria Relevo, quando começam a surgir os temas urbanos que iriam caracterizar nos próximos anos sua pintura.
Também em 1965 participou de Opinião 65 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, tornando-se desde logo um dos principais representantes da vanguarda carioca - posição que sua presença em futuras coletivas de vanguarda, como Pare! (RJ, 1966), Opinião 66 (Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro) e Nova Objetividade Brasileira (Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1967) somente viria reforçar. Num depoimento publicado no mesmo ano de 1967 na revista GAM, Gerchman, com cerca de 25 anos, assim sintetizava sua carreira até então:
- A primeira exposição, em 1964, "quando descobri meu mundo interior"; a exposição na Galeria Relevo, em 1965, "onde conscientizando a multidão pela primeira vez, situei-me no mundo"; o quadro-cartaz do "Casal Fartura", exposto em Opinião 65, "primeira tentativa de utilizar o cartaz e a imagem de jornal ou revista em um novo contexto - a tela, este lugar sagrado"; a exposição Pare! na G-4, ao lado de Vergara e Escosteguy, cujo happening "foi a minha primeira experiência no sentido de colocar o espectador dentro de uma estrutura de madeira, revestida de plástico transparente, dentro do qual ficava preso (o plástico era grampeado depois) como em uma jaula. Pelo lado de fora, eu pintava o plástico com spray colorido, fazendo os espectadores desaparecerem paulatinamente por detrás das cores. Acabando a pintura, estava acabado o happening e os espectadores tinham de debater-se lá dentro para arrebentar a estrutura de madeira e libertar-se. Pregado por fora, havia um cartaz: Elevador Social; a filmagem de Ver e Ouvir, de Antonio Carlos Fontoura, cuja terceira parte, " Os Desconhecidos", " foi quase totalmente rodada na rua, com os quadros e objetos na calçada, no meio do tráfego, do povo, com entrevistas de som direto e usando a técnica do cinema-verdade. Para mim, essa experiência foi vital"; enfim, "A Marmita" - primeira tentativa de uma forma de participação maior por parte do espectador, ao sugerir que ele segurasse a alça do utensílio" - e as duas peças enviadas à IX Bienal de São Paulo, "Sempre Perto de Ti" e "A Cidade", "em que os espectadores, em número de dois, entram em cada casa-abrigo, totalmente de plástico e em número de quatro; de dentro do abrigo, de estrutura tão leve que pode ser deslocado com facilidade pelo casal, pode-se ver o mundo exterior, através de uma viseira de plástico".
E Gerchman concluía seu depoimento fazendo uma verdadeira profissão-de fé em versos:
- "Dar, realisticamente, imagens urbanas / Múltiplas, facetadas, simultâneas / Mural fotográfico para ser lido / Somar indefinidamente novas imagens/ Envolvido pelos acontecimentos / O artista testemunha / E faz-se presente".
Conquistando em 1967 o prêmio de viagem ao estrangeiro do Salão Nacional de Arte Moderna, em 1968 o artista parte para os Estados Unidos da América, vivendo até 1972 em Nova Iorque, realizando inclusive nessa cidade individuais, mas sobretudo expandindo o seu mundo de idéias em contato com o universo cultural norte-americano. Ao regressar ao Brasil, em 1972, concebe e dirige um filme em cores de 35 mm, Triunfo Hermético. Fazendo o balanço de sua carreira até então, efetua em 1973 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e em 1974 no de São Paulo importantes exposições, realizando também em 1974 uma individual na Galeria Luís Buarque de Holanda / Paulo Bittencourt, do Rio de Janeiro, na qual expõe um ambiente com espelhos e faz projeções de filmes Super-8 (Behind the Broken Glass). Co-fundador e diretor da revista de vanguarda Malas artes (1975-76), Gerchman dirigiu entre 1975 e 1978 a Escola de Artes Visuais - INEART do Parque Lage (RJ)1 conseguindo transformá-la de reduto do academicismo num laboratório de criatividade. Em 1978, com bolsa da The John Simon Guggenheim Memorial Foundation, Gerchman mais uma vez visitou os Estados Unidos, passando também por México e Guatemala; realizaria nova viagem ao exterior em 1982, a convite do DAAD - Deutsche Akademischer Austauschdienst Künstler Program -, permanecendo cerca de um ano em Berlim como artista residente.
Rubens Gerchman, que em 1981 realizou um painel de azulejos para o edifício do SESC em São Paulo - Fábrica Pompéia, a convite da arquiteta Lina Bo Bardi, recebeu nesse mesmo ano o Golfinho de Ouro - Prêmio Governador do Estado do Rio de Janeiro como Personalidade em Artes Plásticas. Desde então tem exposto com regularidade, principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, mas também em Joinville, Porto Alegre, Curitiba, Caxias do Sul, Salvador e João Pessoa, bem como em Nova Iorque (1971, 1972, 1981, 1993) México (1980). Paris (1990), Amsterdam (1991), Bogotá (1993) etc. Por outro lado, tem participado de importantes coletivas no Brasil, e em cidades como Paris, Buenos Aires, Córdoba, Calí, Tóquio, Nova Iorque, Medellín, Bruxelas, Londres, México, Toronto, Washington, Lisboa, Berlim, etc.
A principio, nos anos iniciais da década de 1960, Gerchman praticou uma arte de cunho expressionista voltada para a realidade cotidiana, tal como refletida nas páginas dos jornais e das revistas populares. Foi o momento das "moradias coletivas", em que o espaço da tela via-se cumulado de rostos indefinidos, comprimindo-se, espremendo-se, anulando-se uns aos outros na rua, na praia, nos estádios - a multidão anônima, sonhadora, facilmente iludível pelos carnês fartura e outras promessas de felicidade nunca concretizadas. Suas pinturas e relevos de então representam a fauna pobre do subúrbios, "desaparecidos" e "professorinhas", "belas lindonéias" e torcedores de futebol, operários para os quais "não há vagas" ou meros passageiros enlatados em ônibus ou em elevadores, tudo extravasado com deliberado mau gosto, sintetizando o kítsch e o cafajestismo estético, e não raro acompanhado de palavras ou mesmo frases completas, do tipo "Assegure seu Futuro" ou "Vai Comer e Morar um Ano de Graça com Toda a Família", repisando a imagem, enfatizando o conceito que a figura expressa.
Após curto intervalo em que enfocava os elementos naturais ou produzia esculturas-palavras - "AR", "SOS", etc. -, Gerchman embarca para os Estados Unidos com o prêmio de viagem do Salão de 1967. Em Nova Iorque, onde residiu quatro anos, atravessa uma fase de reflexão, na qual aprimora o seu fazer estético ("no Brasil me acusavam de ser um desleixado"), tornando-se mais exigente com a parte artesanal do seu trabalho. Ao mesmo tempo medita :
- Aqui no Brasil diziam que eu era Pop. Fui checar as fontes e nada vi igual ao que fazia, a não ser alguma semelhança temática em murais realizados em comunidades marginais, de porto-riquenhos e chicanos.
Por um momento pensou em ficar, em instalar-se definitivamente em Nova Iorque. Viu, em seguida, a inutilidade desse esforço, e de longe, casualmente ao ler Tristes Tropiques de Levy-Strauss, redescobriu o Brasil. Ao voltar, em 1972, produz um filme altamente simbólico, Triunfo Hermético, ao mesmo tempo em que retoma a pintura, fazendo uso de grandes suportes, que preenche em pinceladas largas e cheias de violenta cor com figuras que quase se diluem na abstração pura. O tema indígena aparece brevemente por essa época em sua produção - cujo balanço até então, apresentado em mostras efetuadas em outubro de 1973 e março de 1974 nos Museus de Arte Moderna carioca e paulista, parecia liberar o artista para novos vôos. Reassumindo, por volta de 1975, certos caminhos já trilhados mais de dez anos antes (Trabalhador morreu com maconha na mão, 1976; Bandeira 2 na Vila Keneedy, 1977; Strip-Tease, 1977; Só Risos, 1978; sobretudo Virgem dos Lábios de Mel, e Mona Lou, de 1975, que praticamente retomam A Bela Lindonéia, de 1966), Rubens Gerchman dá contudo provas de hesitação ou de incerteza, muito embora sua produção já então revelasse uma interiorização maior, um Gerchman mais consciente e mais contido. Tanto na exposição Boa Noite, de 1977, com música de Jards Macalé, quanto nas mostras Voyeur Amoroso, de 1981, e Clara Manhã, de 1985, Gerchman retoma o fio de sua trajetória, entregando-se gostosamente à pintura enquanto pintura. Assim é que, se até fins da década de 1970 o leit-motiv da arte de Gerchman era a solidão do homem na cidade grande, a partir da década de 1980 o artista perde a agressividade e abandona o cáustico tom de denúncia e de crítica social. No texto introdutório da mostra de 1986 efetuada na Galeria Montesanti, em São Paulo, Frederico de Morais, um dos críticos mais constante de Gerchman, sintetiza os quase 25 anos da carreira do artista, concluindo por esse trecho significativo:
- Digamos, para simplificar, que de início seu olhar estava voltado para o que acontecia do lado de fora, na urbs, nos meios de comunicação massiva. Anos 60 fase negra, imagens fortes, marcadamente sociais. Nos anos 70, mais reflexivos, Gerchman interiorizou estas imagens, ou melhor, buscou-as no seu circuito mais próximo e íntimo, como que trocou o jornal pelo álbum de família. No primeiro bloco, havia um certo tom de raiva, uma postura mais crítica, as imagens chegando a ser recortadas em madeira, como se ele quisesse carregá-las, como o operário carrega sua marmita. Recorte agressivo no estrato social brasileiro. No segundo bloco emerge a própria história do artista, sua biografia, um Mercury, o filho, Mira, o pai, imagens carregadas de lirismo e poesia. Hoje, todas estas imagens, já tão nossas, se confundem ou se diluem na própria matéria pictórica. O grande amor de Gerchman é, sempre foi, a pintura, que ele respira como o ar que o mantém vivo, que ele faz confundir integralmente com sua vida. Como se viver, para ele fosse produzir imagens, isto é, pinturas. Porque, hoje, mais livre, tudo nele vira pintura, de menino sentado no cocuruto da pedra como um pequeno monge a contemplar as irrigações gráficas no lago da tela, ou um petit tarzan engatinhando na selva da cidade grande, o menino no colo da mãe, entre as pernas do pai, jogando futebol de várzea num subúrbio qualquer do Rio, menino que some para reaparecer depois, já homem, no banco de trás, transando aquela que já foi Miss. Madura, a pintura de Gerchman explode generosa, farta, avassaladora mesmo, sem qualquer compromisso estilístico, ora crescendo como uma vegetação de arabescos, de grafitos, quase-letras, ora criando áreas compactadas, de cores surdas ou vibrantes. O coração vibra, é tempo de pintura. Gerchman está feliz, é isso o que diz sua pintura atual.

A bela Lindonéia, serigrafia,
0,50 X 0,50, Museu Nacional de Belas Artes, RJ.

Ar, técnica mista.

GOMIDE, Antonio Gonçalves (1895-1967). Nascido em Itapetininga (SP) e falecido em Ubatuba (SP). Seguindo às vésperas da I Guerra Mundial com a família para a Suíça, matriculou-se em 1915 na Academia de Belas Artes de Genebra, que cursou até 1918, tendo sido aluno de Gillard e do célebre Ferdinand Hodler. Diga-se de passagem que Genebra, por aquela época, reunia uma notável comunidade de jovens intelectuais e artistas brasileiros que ali estudavam - entre eles Sérgio Milliet e Rubens Borba de Moraes, o futuro cineasta Alberto Cavalcanti e ainda Gomide e sua irmã Regina, que se casaria com o pintor suíço John Graz.
Após uma passagem por Espanha e Portugal, seguida de curta permanência no Brasil, Gomide achava-se de novo em Genebra em 1920, de onde ganharia em 1923 Paris. Na capital francesa conheceu Picasso, Braque, Picabia, Severini, Lhote e outros pintores ligados ao Cubismo e demais movimentos vanguardistas de arte, sofrendo-lhes o impacto, mesclado embora à influência ainda mais sensível do Art Déco, particularmente marcante em aquarelas e guaches dos começos da década de 1920. Datam de 1923 duas de suas mais características pinturas cubistas, Paisagem com barcos e Ponte St. Michel, ambas do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. A marca cubista iria abrandar-se nos próximos anos, mas é ainda visível em princípios da década de 1930, de vez que data de 1932 o admirável guache da Col. Gilberto Chateaubriand, do Rio de Janeiro, que combina um mostrador de relógio a signos tipográficos e musicais - obra essa não sem vinculação, também, com o Futurismo.
Durante o tempo em que viveu em França, Gomide expôs no Salon d'Automne e no Salon des Indépendants. Numa estada em Toulouse dedicou-se à aprendizagem do afresco com Marcel Lenoir, técnica que desde então iria tornar-se de sua predileção, e que foi dos primeiros a introduzir no Brasil. Como ajudante de Lenoir, trabalhou em alguns afrescos executados pelo mestre. Também aprendeu e se dedicou em França a técnicas como a criação de padrões têxteis e o vitralismo.
Em fins de 1926 Gomide veio outra vez rapidamente ao Brasil, expondo na ocasião em São Paulo e executando nessa mesma cidade, em 1927, um afresco - Trabalhos e Costumes Selvagens - na residência de Couto de Barros. Num artigo publicado em 18 de outubro de 1927 no Diário Nacional, Mário de Andrade refere-se com ressalvas ao mural, dizendo:
- Antonio Gomide conseguiu duas vitórias grandes: libertar-se de qualquer realismo objetivo, e ao mesmo tempo, não cair na estilização sentimental. Para mim, se há um senão nestes afrescos de inspiração brasílica, ele está no tipo dos índios. A isso Antonio Gomide ainda não conseguiu dar uma solução que satisfaça. Os nossos índios em geral são de uma feiúra aplicada e o pintor não conseguiu tirar-lhes da caratonha uma estilização plástica que fosse ao mesmo tempo característica e agradável. Pôs de lado o problema e se aproveitou das figuras de seu ideal, se contentando em lhes bronzear os volumes. As figuras do afresco saíram puras e bem ritmadas mas o problema não se resolveu.
Em 1928 Gomide de novo regressou à Europa, para só alguns meses depois voltar ao Brasil, agora em caráter definitivo, aos 34 anos, depois de uma ausência de cerca de 16 anos. Radicando-se em São Paulo, Gomide sofrerá de imediato o impacto do novo meio: como escreveu Walter Zanini, "sua pintura, fortemente marcada pela estética cubista, sofrerá profundas e rápidas transformações, nacionalizando-se radicalmente". Ao mesmo tempo, o artista busca integrar-se no panorama cultural paulistano, e é assim que em 1932 está entre os fundadores tanto da Sociedade Pró-Arte Moderna quanto do Clube dos Artistas Modernos. Nesse mesmo ano de 1932, alista-se como soldado nas tropas constitucionalistas.
A década de 1930 é de fundamental importância na carreira do artista, que não somente se entrega à elaboração de uma série de grandes afrescos em São Paulo e Campos do Jordão, como também prepara cartões para vitrais, desenvolvidos para a firma de Conrado Sogernicht Filho e destinados a igrejas e a edifícios públicos, e ainda irá figurar em coletivas como o Salão de Maio (1937 a 1939). A partir de 1940, contudo, sua atividade diminuiu, até quase estancar nas décadas de 1950 e 1960 quando, praticamente cego, voltou-se para a escultura, fazendo algumas obras de curiosa conotação africana ou indígena. Ainda tomou parte em 1941 da mostra coletiva da Feira Internacional das Indústrias, e dez anos depois, da 1 Bienal de São Paulo; realizou também individuais em 1963 e 1967, sempre em São Paulo: seu ciclo criativo, contudo, estava encerrado. Um ano depois de seu falecimento o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo dedicou-lhe importante retrospectiva, referindo-se Walter Zanini ao artista, no bem cuidado catálogo da mostra, nos seguintes termos, que eqüivalem a um correto juízo de valor:
- Pintor atraído de início pelas soluções formalistas, quando se aplica numa temática alternadamente sagrada e profana, tende mais tarde a dar vazão à sua mentalidade profundamente popular, expressa igualmente no modus vivendi. Se podemos registrar uma certa dispersão e inconstância nos objetivos de Gomide, forçoso é reconhecer as virtudes que dominam sua obra, do ponto de vista estilístico e psicológico, que a investem de um clima peculiar inconfundível e que na sua hora souberam trazer uma contribuição vital ao nosso desenvolvimento artístico.

Porto, óleo s/ tela, 1922;
0,41 X 0,33, Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Sem título, óleo s/ tela, cerca de 1923;
0,46 X 0,38, Museu de Arte Contemporânea da USP.

Composição com figura, tecido, 1925;
1,86 X 1,41, Palácio Bandeirantes, SP.

GRACIANO, Clóvis (1907-1988). Nascido em Araras (SP) e falecido em São Paulo. Descendente de imigrantes italianos, ficou órfão aos 12 anos e, para sobreviver, desempenhou os mais humildes ofícios. Desenhando desde o grupo escolar, empregou-se, em 1927, na Estrada de Ferro Sorocabana, cabendo-lhe pintar postes e tabuletas para a ferrovia. Em 1934 transfere-se para São Paulo, como fiscal do consumo, dividindo a partir de então seu tempo entre o emprego de burocrata e a arte, com evidentes vantagens para essa, tanto que dez anos depois foi demitido - por abandono de emprego.
O desenho, que praticava autodidaticamente, será a sólida base sobre a qual construirá, desde então, sua carreira. Um colega de pensão que lhe viu alguns trabalhos aproximou-o de Portinari, e a conselhos desse Graciano passou a freqüentar o ateliê de Waldemar da Costa e a lhe absorver os ensinamentos (1935 -37). Do desenho logo passa à aquarela, e daí ao óleo. Segue também como aluno livre o curso de desenho da Escola Paulista de Belas Artes, até 1938.
Instalara-se, em 1937, no Palacete Santa Helena; ali, junto com Rebolo, Zanini, Bonadei e outros pintores que trabalhavam e pesquisavam em atmosfera de íntima cooperação, realizou avanços técnicos notáveis. Como diria, muitos anos mais tarde, "o Grupo Santa Helena poderia não ter uma tese. Era um grupo mais de pintores artesãos, que procuravam reformar a pintura acadêmica, e havia um trânsito de conhecimentos entre todos eles: Volpi, Rebolo, Bonadei, Pennacchi, Rosa e uma porção deles. Permutavam conhecimentos, permutavam técnicas, e acabaram fazendo uma coisa, para a época, muito importante".
Realizou sua primeira exposição em 1937, no Pará, com outros integrantes do Grupo Santa Helena. Do Grupo passara à Família Artística Paulista (da qual seria presidente, em 1939) e ao Sindicato dos Artistas Plásticos, participando regularmente de suas exposições. Mas só em 1941 fez uma individual, no Centro Paranaense em São Paulo: desenhos a nanquim, guaches e monotipias, de vez que só em 1943 exporia suas primeiras pinturas a óleo. No ano seguinte participou de um concurso de desenho promovido pelo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, recebendo o primeiro prêmio.
A partir de 1940, expondo no Salão Nacional de Belas Artes (Divisão Moderna), recebe sucessivamente menção honrosa em pintura (1940), medalha de prata em desenho (1941), medalha de ouro em pintura (1941) e prêmio de viagem ao estrangeiro (1948), com o qual embarca, em 1949, para uma permanência de dois anos em França, Itália, Bélgica e outros países. Ao retornar expôs 30 pinturas, lançando-se depois à execução de uma série enorme de painéis em São Paulo e em outras cidades. E explica porquê:
- O painel é a forma mais democrática da pintura. O governo, se quisesse, poderia mandar pintar painéis em logradouros públicos, como estações, campos de esporte, etc. É uma forma de levar a arte ao povo, de imortalizar momentos históricos, de maneira a que todos tenham possibilidades de vê-los. A tela pertence a uma minoria. O painel a todos quantos queiram vê-lo.
Graciano, que também se dedicou à cenografia e fez costumes para teatro e balé, destacou-se como ilustrador de livros e também desempenhou alguns cargos públicos, como a direção da Pinacoteca do Estado de São Paulo (para a qual foi nomeado em 1971) e a função de adido cultural em Paris.
No decurso de toda a sua carreira, Graciano permaneceu fiel ao figurativismo, jamais tendo sequer de leve sentido a sedução do Abstracionismo. O artista, numa entrevista de 1972, explicaria, não sem certo orgulho:
- Meu negócio é a figura, que nunca abandonei.
Estudando essa aparente invulnerabilidade de Graciano ao Não-Figurativismo, José Geraldo Vieira explicou-a de modo engenhoso, num texto de 1957 publicado em Habitat:
- A quem porventura estranhar que Clovis Graciano, sempre tão arguto, haja permanecido renitentemente na figura humana e na natureza, se pode responder que, de início foi forçosamente um pintor abstrato por profissão. Pois pintando postes e porteiras, em eventuais itinerários de tabuletas e ramais duma estrada de ferro, deixou em cima de muita tora, com aspecto tabu de totem, cores concretas, sem gama, suficientemente densas; que em discos semafóricos de desvios e baldeações deixou muitas bolas cromáticas no gênero das de Sophie Tauber-Arp.
Figurativista, portanto, e antes de tudo, expressionista em seguida e por temperamento, de um Expressionismo comedido em certos momentos de sua evolução embora suficientemente forte para gerar, sobretudo na fase inicial de sua carreira, auto-retratos ciclópicos, figuras deformadas, personagens de braços erguidos e mãos crispadas, o filho morto aos pés. Veja-se como exemplo o Auto-Retrato de 1943, ou Bombardeio, desse mesmo ano.
Graciano é pintor freqüentemente confessional em obras como as acima citadas; até porque quando determinados temas repetem-se incessantemente na obra de um artista, é fora de dúvida que correspondem àquela textura da alma de que falou René Huyghe, a catarse de uma obsessão, traduzida, através de sutis mecanismos, em forma concreta e cor emotiva; foi Mario de Andrade quem primeiro observou, em 1944, "a insistência com que o artista persegue, pela negativa, o órgão visual das suas figuras, ora retirando francamente o olho delas, ora o embaçando apenas (constâncias que atravessam toda a obra dele), ora ferindo horrivelmente o olho - como numa das três telas da série Depois do Bombardeio, de 1942").
Mas, como tantos outros pintores brasileiros do seu tempo, Graciano sofreu por vezes a influência do Cubismo picassiano – e talvez seja lícito ver, nessas mesmas pinturas da série Bombardeio, um eco de Guernica, que a antecedeu somente em alguns anos. Mais do que Picasso, foi porém Cézanne que o marcou. Curiosamente, não é nas naturezas-mortas que a nota cézanniana repercute, ao contrário: as naturezas-mortas de Graciano permanecem fiéis à tradição, e numa, de cerca de 1942, é possível até mesmo ver insetos e larvas, as mesmas que pululam sorrateiras nas maravilhosas flores de Bruegel de Velours ou de Daniel Seghers, numa doentia alusão à morte e à destruição da matéria. Não: a lição de Cézanne assimilou-a Graciano ao ordenar, de modo racional, os grandes espaços de seus painéis, ao compor com preocupações de geômetra o espaço das suas paisagens bíblicas ou das cenas de músicos e passarinheiros, nas quais o partido figurativo do primeiro plano contrasta com a esquematização geométrica que lhe serve de cenário.
Retratando cavalos e cavaleiros, músicos e dançarinos que se contorcem em poses inusuais, passarinheiros e outros temas semelhantes, Graciano roçou por vezes no fantástico e no insólito. Assim, numa tela de 1969, Cavalos, não há como não pensar em Füssli ou em Ryder; e há algumas telas aparentemente singelas de passarinheiros e de dançarinos que, num exame mais profundo, revelam-se inquietantes ou fantasmagóricos, em seu aglomerado de braços e pernas, roupas esvoaçantes e pássaros noturnos.
Quando volta da Europa, após o prêmio de viagem, traz Graciano na bagagem diversas pinturas enfocando o tema de São Jorge e o Dragão, influência, por certo, do que viu nos museus da Itália e de outros países visitados. É possível ver, no tema, o eco de Paolo Ucello e de outros artistas peninsulares - o Ucello da Batalha de São Romano, com seus cavalos empinados e seus fundos montanhosos, ao longe. Ou dever-se-ia ver, ainda aqui, o eterno combate entre as forças positivas e as negativas da alma, como escreveu Renê Huyghe, aliás a respeito do São Jorge e o Dragão de Rafael?
Nenhuma influência superou contudo a de Portinari, companheiro mais velho, conselheiro e amigo, com quem chegou a trabalhar algum tempo durante sua permanência no Rio de Janeiro. Portinari marcou-o técnica, temática, estilisticamente: uma pintura como Família, de 1945, vincula-se às grandes composições de tema nordestino que Portinari realizara pouco antes, assim como os vários São Franciscos que Graciano pintou ao longo dos anos apontam, todos, para a Pampulha. Inversamente, há quem sustente que Portinari colheu nos Espantalhos de Graciano a motivação para os muitos que em seguida faria.
Todas essas influências não bastam para sufocar ou esconder as características pessoais do estilo de Graciano, resumidas por Almeida Sales num texto de 1972 como "presença saliente do desenho, composição solenemente cenográfica e, na temática, o afã de conferir dignidade à humildade". Sobretudo a cenografia parece marcar toda a obra de Graciano; mas também destacaríamos a tendência, que possui o artista, em congelar, em pleno ar, no meio de um movimento, massas e volumes, temporariamente desprovidos de gravidade; tendência mais de cineasta que de pintor, e da qual é exemplo o quadro O Domador, de 1974, no qual a perna do cavaleiro forma uma paralela com o dorso do animal, no instante anterior ao em que irá montá-lo. Essa tendência ao movimento, combinada talvez a algum resquício do Cubismo, é responsável também pelas pinturas em que os limites das formas se interpenetram, como numa justaposição de negativos fotográficos, formando o que chamamos de "o estilo raios-X", Mulher na Cadeira, 1942, O Violinista, 1945, etc.

Três homens, óleo s/ tela, 1936;
0,72 X 0,60, Palácio Bandeirantes, SP.

Dança das bandeirinhas, detalhe, têmpera s/ tela, 1943;
0,57 X 0,46, Museu de Arte Contemporânea da USP.

Impressionismo e cubismo, óleo s/ madeira, s/ data;
3,50 X 1,30, Palácio Bandeirantes, SP.

GRAZ, John (1891-1980). Nascido em Genebra (Suíça) e falecido em São Paulo. Filho de um professor de línguas e literatura (mestre, inclusive, de Sérgio Milliet), interessou-se pelas artes visuais depois de por algum tempo ter estudado violino. Por volta de 1908 ingressou na Escola de Belas Artes de Genebra, tornando-se aluno de Gilliard, Vernet e Edouard Ravel e colega de dois jovens brasileiros - Antônio Gomide e sua irmã Regina Gomide, com quem se casaria anos mais tarde. Em 1911, em Munique, foi aluno de Moos. Regressando à Suíça em 1913, mais uma vez se matriculou na Escola de Belas Artes de Genebra, que cursou até 1915. Com bolsa de estudos visita, por duas vezes, a Espanha, cuja paisagem irá marcá-lo, tal como irão marcá-lo, estilisticamente, Cézanne e Ferdinand Hodler. De tais visitas à Espanha datam suas primeiras pinturas importantes, duas delas, aliás, expostas na Semana de Arte Moderna em 1922.
Em 1920 Graz vem ao Brasil, onde já se encontrava Regina Gomide, com quem se casa em julho do mesmo ano. Em artigo publicado em Papel e Tinta, em junho de 1920, escreve Ciro Mendes:
- John Graz, reputado na Europa pelos seus admiráveis vitrais e pela moderníssima composição de seus quadros é um elemento que a nossa capital devia aproveitar para a definitiva formação de nossa cultura. As nossas igrejas precisam de vitrais artísticos e não dos vitrais de bazar que têm, para vergonha de nossa cultura.
O artista tencionava passar apenas alguns meses no Brasil; ao contrário, foi-se deixando ficar, e terminou por se radicar definitivamente em São Paulo, onde, a convite de Oswald de Andrade, em fevereiro de 1922 participou com sete obras da mostra de artes plásticas da Semana de Arte Moderna no Teatro Municipal.
A partir de 1923, trabalhando em sintonia com o arquiteto russo Gregori Warchavchik, então chegado ao Brasil, Graz vai se desincumbindo da decoração de bom número de mansões paulistanas, para as quais desenha desde maçanetas e luminárias a afrescos, vitrais e móveis, enquanto sua mulher Regina Gomide Graz se encarrega de almofadas a painéis e tapeçarias, dentro do estilo Art Déco que então fazia sua aparição entre nós. Até aproximadamente 1940 continuaria produzindo móveis tubulares, feitos de canos metálicos e laminados de madeira, que desenhava e fazia um a um; e ainda em 1969 prosseguia com decorações de interiores, uma atividade que alternava com a da pintura pura, na qual - infelizmente - não seria tão bem sucedido. É fato que realizou entre 1947 e 1980 numerosas individuais - em São Paulo, Santos, Londrina e Recife -, mas não é menos verdade que, como pintor, não obteve nunca o reconhecimento a que decerto faz jus.
John Graz trabalhou a figura humana de modo geral - em retratos e composições históricas, ou em alegorias -, a paisagem e a vista citadina, a natureza-morta e a pintura de flores. Em Puente de Ronda - Paisagem de Espanha, de 1920, hoje na Pinacoteca do Estado de São Paulo, sente-se muito nítida a marca de Cézanne, na concepção do espaço e na riqueza da estruturação; em Pastoral, do Palácio dos Bandeirantes, a superfície pictórica como que freme, em modulações quase musicais, nas quais a forma e a cor se diluem sem se fragmentarem, em estilizações de nítida conotação abstratizante. Na década seguinte, em composições como Bahianas e Veleiros na série de guaches Sonho Grego, e em pinturas de temática religiosa ou histórica (Luta do Brasil contra os Holandeses, 1931), permanecem resquícios da estilização Art Déco, agora subordinada, a um maior realismo, a uma estruturação linear e cromática mais definidas.
A Fundação Armando Álvares Penteado, em 1970, e o Museu de Arte de São Paulo, em 1974 e 1996, dedicaram-lhe exposições retrospectivas, e o Paço das Artes, também em São Paulo, organizou em novembro de 1980 a mostra John Graz - Reminiscências do Modernismo.

Diana caçadora, tapeçaria em colaboração com Regina Gomide Graz, cerca de 1920;
0,80 X 1,50, coleção particular.

GRUBER, Mário (1927). Nascido em Santos (SP). Iniciou sua carreira autodidaticamente em 1943, praticando a escultura e a pintura, e logo depois também a gravura. Em 1946 mudou-se para São Paulo, matriculando-se na Escola de Belas Artes como aluno do escultor Rollo. Desencantando-se em breve com a Escola e com a escultura, abraçou a pintura e passou a trabalhar por si, travando na ocasião conhecimento com um grupo de artistas e de intelectuais como Bonadei, Mario Zanini e Osório Cesar.
Em 1947 foi um dos expositores do Grupo dos 19, conquistando o primeiro prêmio de pintura. No ano seguinte realizou sua primeira individual e passou a estudar gravura com Poty Lazarotto, ao mesmo tempo em que participava de uma série de exposições coletivas em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Obtendo mais ou menos pela mesma época uma bolsa de estudos em França, para lá seguiu em 1949, a fim de se aperfeiçoar. Estudou com Edouard Goerg, na Escola de Belas Artes, tornando-se ajudante de Portinari na elaboração de alguns painéis que o grande artista então realizava na capital francesa. Em 1951 estava de volta, radicando-se novamente em Santos, onde fundou o Clube de Gravura e desempenhou intensa atividade como gravador. Em 1953 seria professor de gravura no Museu de Arte Moderna de São Paulo.
Durante uma permanência em Santiago, até onde fora em 1953 por ocasião de um Congresso Continental de Cultura, conheceu Diego Rivera, que o iniciou nas técnicas e materiais da pintura mural. Seu primeiro mural só surgiria porém em 1957, numa loja do Instituto Nacional do Mate situada na Galeria Califórnia, em São Paulo. Novo painel seria pintado em 1960, no Ginásio de Guarulhos.
De 1961 até 1964 Gruber lecionou novamente gravura, agora na Fundação Armando Álvares Penteado. De meados dessa década em diante tornou-se gradativamente um dos nomes mais conhecidos da arte contemporânea paulista, realizando inúmeras individuais quer de pinturas quer de gravuras. Em 1970 montou em São Paulo um grande ateliê de gravura, no qual trabalharam diversos artistas, entre os quais Hoso Hamaguchi. Foi através de Hamaguchi que em 1973 travou contato com o impressor Georges Leblanc, de Paris, que lhe preparou diversas tiragens. Em razão desse trabalho, viveu vários meses em França, entre 1973 e 1974. Também montou, em 1979, um ateliê em Nova Iorque, dividindo então sua atividade por essas três cidades.

Carnaval na rua, xilografia, 1953;
0,20 X 0,28, Museu de Arte Contemporânea da USP.

Árvore azul, óleo s/ tela, 1976;
1, 26 X 1,15, Palácio Bandeirantes, SP.

Fantasiado II, óleo e acrílica s/ tela, 1976;
0,73 X 0,64, Palácio Bandeirantes, SP.

GUIGNARD, Alberto da Veiga (1896-1962). Nascido em Nova Friburgo (RJ) e falecido em Belo Horizonte (MG). Seu avô materno, francês, foi cabeleireiro na Corte de Pedro II. O pai, Alberto José Guignard, faleceria em 1906, com menos de 40 anos e em circunstâncias no mínimo nebulosas, quando a arma que limpava disparou, atingindo-o mortalmente: deixou uma grande dívida, que a viúva conseguiu saldar com o dinheiro do seguro. Já velho, Guignard recordava-se com emoção da figura paterna: segundo Clarival Valladares, um dos temas mais freqüentes de toda a sua obra, as Noites de São João, seria mesmo "a evocação mais remota do pai quando tirava o filho da cama e, carregando-o nos braços, levava-o para ver os balões, os fogos, as luzes e as alegrias dos outros nas noites de São João".
Um ano após enviuvar, sua mãe Leonor da Veiga casou-se de novo, agora com um nobre alemão arruinado - o Barão Friedrich von Schilgen, partindo toda a família para a Europa em 1907. Ali, sucessivamente na Suíça, em França e na Alemanha, Guignard concluiria seus estudos preparatórios. Em 1910 hei-lo cursando Agronomia numa fazenda-escola de Freising, próximo a Munique:
- Eram 14º abaixo de zero, e eu espalhando adubo na planície. Coisa de alemão. É claro que adoeci.
Só em 1916 deu inicio a seus estudos artísticos, matriculando-se na Academia de Munique, como aluno de Adolf Hengeler e Hermann Groeber. Quando esteve rapidamente no Brasil em 1924, trazia consigo um documento, de fevereiro desse mesmo ano, no qual se dizia:
- O estudante da Academia de Artes Plásticas de Munique, Sr. Alberto da Veiga Guignard, do Rio de Janeiro, volta por algum tempo à sua pátria, para lá viver em sua profissão de artista. Durante seus nove semestres de estudos em nossa Academia, o Sr. Veiga Guignard destacou-se por seu grande aproveitamento, seu grande sucesso e comportamento exemplar, e ganhou a confiança de seus mestres, os catedráticos Groeber e Hengeler, como também da diretoria. Recomendamos o Sr. Veiga Guignard à assistência de todas as repartições públicas com o maior interesse, e pedimos ajudá-lo em sua viagem, para entrada em sua pátria e durante sua permanência lá.
Os dados relativos ao aprendizado de Guignard são aliás controvertidos: o próprio pintor afirmou, em 1952, ter estudado "na Alemanha, sob uma disciplina muito a rigor. Três anos de pintura e seis de desenho". Mas, segundo sua amiga e confidente Lúcia Machado de Almeida, o artista foi em 1916 a Florença, e em 1918 radicou-se na França por dois anos, vivendo em Grasse. Tornaria a Florença em 1920, residindo por três anos na pensão de uma Senhora Iris Banchi. Sua primeira pintura a óleo nasceu em Florença, por essa ocasião: Lúcia Machado de Almeida, que chegou a vê-la em mãos da Sra. Banchi, descreveu-a como "uma deliciosa paisagem com árvores e lagoa".
Em 1923 Guignard casou-se com uma jovem alemã, estudante de Música, Anna Döring. Esse é outro capítulo obscuro da biografia do artista: diz-se que o casal chegou a ter um filho, morto com apenas um ano de idade, e que depois disso, Anna abandonou o marido, durante a permanência em Florença. A ruptura teria profunda repercussão no ânimo de Guignard, que nunca se recuperou de todo. Anna faleceu em 1930, aos 32 anos, em Munique, quando Guignard já voltara ao Brasil.
Esse regresso ao Brasil, em 1929, revelará a Guignard que o que aprendera na Europa "nada tinha a ver com as cores e paisagens brasileiras" - como disse depois, numa entrevista. Deu início então a longo processo de revisão de sua técnica e de seus conceitos, que adaptou às circunstâncias. Na verdade, teve dois choques, ao desembarcar: um, com o acanhado meio artístico, no Rio de Janeiro daquela época, conservador e reacionário; o outro, e bem mais profundo, com a própria natureza exuberante do país.
Dos pintores de orientação moderna ativos no Rio de Janeiro ao tempo do regresso de Guignard em 1929, um, Ismael Nery, chamaria desde logo a atenção do forasteiro por seu imenso talento. Era porém um caso isolado, incapaz de modificar, substancialmente, o meio que o cercava, e que terminaria inclusive por vitimá-lo. Mesmo assim, é justo falar-se numa breve influência de Nery sobre Guignard, em começos da década de 1930.
Expondo no Salão Nacional de Belas Artes desde 1924, conquistou, naquele ano, menção honrosa; sucessivamente ser-lhe-iam concedidas medalhas de bronze (1929), prata (1939) e ouro (1942), além do prêmio de viagem ao país (1940).
Em 1944 o então prefeito de Belo Horizonte, Juscelino Kubitschek, convidou Guignard para orientador de um curso livre de desenho e pintura que pretendia criar na capital mineira. Guignard, que já lecionava no Rio de Janeiro (Fundação Osório), aceitou o convite, e se transferiu definitivamente para Minas Gerais, onde transcorreria o resto de sua existência. Na Escola (cujo nome foi mudado, após 1962, para Escolinha de Guignard, em homenagem póstuma ao grande artista), coube-lhe orientar toda uma série de artistas mineiros, como Marília Gianetti Torres, Maria Helena Andrés, Mario Silésio, Wilde Lacerda, Heitor Coutinho, Farnese, Chanina, Estêvão etc.
Guignard realizou poucas exposições individuais (a mais importante em 1953, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro), mas participou de um sem-número de coletivas, dentro e fora do Brasil: em 1923 e 1928 expôs no Salon D'Automne, em Paris, e nesse último ano também na Bienal de Veneza: em 1951 esteve presente na I Bienal de São Paulo; e também integrou exposições de arte brasileira enviadas em 1945 e 1957 a diversos países sul-americanos. Ainda em 1951, expondo no Salão Nacional de Belas Artes, foi-lhe atribuída a medalha de honra, distinção essa raras vezes concedida a um pintor de orientação não-conservadora.
Guignard, que faleceu a 26 de junho de 1962 no Hospital São Lucas, de Belo Horizonte, foi enterrado em Ouro Preto. De família abastada, morreu pobre, depois de ter vivido quase sempre sozinho, em humildes quartos de pensão, buscando no álcool um pouco de alívio e fuga para os seus problemas. Desde o ano anterior, fora criada em Belo Horizonte a Fundação Guignard, com a finalidade "de resguardar o bem-estar físico e moral e zelar pelo patrimônio artístico do pintor Alberto da Veiga Guignard". Após seu desaparecimento, sucederam-se as mostras póstumas (BH, 1963, 1966, 1972, 1996; RJ, 1974).
Falando sobre si mesmo e de sua arte, cerca de um ano antes de morrer, Guignard esboçou uma curta autobiografia que a seguir transcrevemos, porquanto se trata de importante auto-retrato psicológico do grande pintor:
- Nasceu em Nova Friburgo, em 25 de fevereiro de 1896, feio como todo recém-nascido. Estudou em Munique, na Real Academia de Belas Artes, onde aprendeu desenho e amou. De acadêmico passou a moderno, após ter visto uma exposição de arte moderna alemã: o modernismo o fascinou. Em 1930 veio para o Brasil, onde teve um choque com o ambiente artístico, bem acanhado com relação à Europa. Abriu seu ateliê no Jardim Botânico, entre a vegetação e milhares de mosquitos. Veio para Belo Horizonte, a chamado do então Prefeito Juscelino Kubitschek, e daqui se enamorou desde o primeiro dia da paisagem. Fundou a Escolinha de Guignard que tem vivido por milagre e amor de alunos e mestre, e aqui ensinou arte a diversas gerações de jovens. Adora ser cercado pela juventude, principalmente moças bonitas, e Ouro Preto é a sua cidade, amor, inspiração.
Em sua singeleza, tal depoimento é básico a quantos desejem penetrar o mundo de idéias do artista, isso porque, mesmo contendo algumas inexatidões (o retorno ao Brasil, por exemplo, não se deu em 1930, mas um ano antes), põe em realce fatos e circunstâncias a que Guignard atribuía valor fundamental, omitindo outros aos quais não concedia senão relativo interesse.
Feio como todo recém-nascido... Todos os que conheceram Guignard de perto sabem como sofria com sua aparência física, mormente com o defeito congênito - fissura palatina - que lhe anasalava a voz, tornado-a um balbucio incompreensível. Fora seu breve casamento na Alemanha (com uma jovem estudante, Anna Döring, que logo o abandonou), Guignard viveu sempre solitário, apesar de "cercado pela juventude, principalmente moças bonitas". Freqüentemente apaixonado - em segredo - por essa ou aquela jovem, recorria, decepcionado, ao álcool, buscando assim refazer-se das desilusões. Raimundo Magalhães Júnior assim resumiu sua vida amorosa:
- Seu drama pessoal começara na Itália, para onde fora em lua-de-mel, depois de se ter casado com uma alemãzinha, que foi o grande amor de sua vida. Em Florença, ela deixou o pintor para sempre. E o golpe foi terrível. Nunca mais Guignard se refez. Não encontrou uma substituta para ela. Gostava de moças, prestava-lhes homenagens, mas todas lhe fugiam, como se o temessem.
Estudou em Munique, na Real Academia de Belas Artes, onde aprendeu desenho e amou... É sabido ter Guignard estudado em Munique, mas igualmente em outros grandes centros culturais; em sua curta autobiografia, refere-se porém somente à cidade alemã, omitindo por completo Florença e Paris. Por que tê-lo-á feito? Certamente porque considerava Munique a cidade em que se dera efetivamente sua formação artística, e o encontro, talvez, com a arte moderna alemã, que iria - segundo suas próprias palavras - mudá-lo de acadêmico em moderno. Aliás, Guignard não escreveu onde aprendeu pintura, e sim onde aprendeu desenho, tal a importância que concedia a esse meio expressivo. Finalmente, a sucinta indicação de que em Munique amou é também sintomática: Guignard casou-se em Munique com uma estudante de música - a já mencionada Anna Döring -, com quem teria tido mesmo um filho, falecido com apenas um ano de idade. A própria Anna morreria em 1930, pouco depois de o ter abandonado durante uma viagem à Itália.
De acadêmico passou a moderno, após ter visto uma exposição de arte moderna alemã. Na verdade, a despeito do longo aprendizado na Academia, Guignard não terá sido nunca um puro acadêmico, um conservador, um repetidor de fórmulas herdadas do passado. Basta dizer que dois de seus mestres, Groeber e Hengeler, também nada tinham de acadêmicos, sendo que o primeiro participara da Sezession, um grupo de vanguarda surgido em 1892, e que abriria o caminho para o Expressionismo germânico. Quanto à mostra de arte moderna alemã presenciada por Guignard, ele próprio declarou, em depoimento a Celina Ferreira, acreditar que se tratava de uma exposição do grupo Die Brücke, liderado por Kirchner.
Da arte de Guignard anterior ao seu regresso ao Brasil pouco se sabe, a não ser que o artista, ele mesmo, considerava-se acadêmico, o que, como já foi dito, é bem relativo. Assim, é necessário julgá-lo pela série de numerosas obras que produziu em nosso país, de 1929 até vésperas de morrer, em 1962. O que caracteriza todas essas obras é a coerência e a fidelidade a um espírito de simplificação e de ingenuidade. Há, logicamente, evolução na arte de Guignard; mas uma evolução sem rupturas, sem desvios abruptos de rumo, lenta e progressiva. Guignard permaneceu sempre igual a si mesmo: e embora fosse obviamente pintor de sensibilidade moderna, nunca chegaria a ser um iconoclasta ou um extremado. Nós o aproximaríamos do espírito da Nova Objetividade, movimento artístico de origem germânica que, transpondo os limites do real, buscava impregná-lo de mágica poesia.
Guignard concedeu sempre ao desenho importância fundamental, e ao longo da existência irá a ele referir-se como base de toda a experiência artística. O estudo da linha como elemento primordial da arte de Guignard impõe-se, portanto, até porque o artista organiza seus quadros mais como desenhista do que como pintor, o que em alguns momentos, felizmente raros, de sua produção, ameaça transformar sua pintura em desenho colorido.
Paisagista acima de tudo, Guignard ordenava espacialmente seus quadros em camadas horizontais que se alteavam gradativamente em direção aos últimos planos. O predomínio da horizontalidade é porém interrompido a intervalos por elementos verticais, como árvores, uma torre de igreja, uma quina de muro. Esse ordenamento espacial em camadas horizontais evoca o procedimento análogo de certos pintores dos Séculos XV e XVI, como Memling e Patenier, certamente do conhecimento e da admiração de Guignard.
Preencher o espaço do quadro com uma série de pequeninos detalhes é outra das características da composição das pinturas de Guignard. Em algumas obras religiosas - faces do Cristo e da Virgem, por exemplo - as margens da pintura são subdivididas em pequenas reservas, preenchidas com cenas tiradas aos Testamentos, em procedimento que lembra o dos velhos pintores eslavos de ícones. Em diversas paisagens, por outro lado, apenas no primeiro plano, em exígua faixa próxima ao olho do espectador, acumulam-se tais elementos pitorescos, resolvidos aliás com mais realismo, quedando todo o resto do espaço pictórico para a representação do céu.
Guignard é fiel à cor natural: suas casas têm paredes brancas, as árvores têm copas verdes, o céu é azul, e assim por diante. A perspectiva aérea é também respeitada: cores quentes no primeiro plano, frias nos longes, e entre eles, toda uma bem observada gradação.
No que diz respeito à técnica, Guignard pintava em camadas fluidas, que se sucediam e sotopunham umas às outras, à maneira dos antigos que tão bem estudou. Seus trabalhos, por isso, guardam uma impressão de frescor dificilmente igualada. O artista é parcimonioso em sua escrita pictórica, preferindo a pincelada lisa aos empastamentos.
Quanto à produção de Guignard, compreende, além de paisagens, cenas da vida brasileira, retratos e auto-retratos, naturezas-mortas e pinturas de temática religiosa, além de curiosas experimentações a que denominou pinturas musicais, e que significariam a transposição, em termos visuais, de composições musicais, com soluções formais por vezes beirando o Abstracionismo. Cenas da vida brasileira são por exemplo a Família do Fuzileiro Naval, que pertenceu a Mario de Andrade, hoje no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo; ou Duas Gêmeas, do Ministério da Educação, ou até mesmo as incontáveis Noites de São João, que podem também ser incluídas entre as paisagens ou as vistas de cidades reais ou imaginárias, em que foi mestre. Foi aliás com suas paisagens imaginárias de antigas cidades mineiras, ocupando imensos espaços entre montanhas, que o artista mais se distinguiria, criando-se, nesse setor, um campo inesgotável. Sempre como paisagista, realcem-se principalmente as diversas obras em que fixou aspectos e recantos do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, e ainda de Itatiaia e Nova Friburgo, Parque Municipal de Belo Horizonte, Lagoa Santa e afinal Ouro Preto, Sabará, São João del Rei.
Excelente pintor de figuras, Guignard destacou-se ainda por seus retratos e numerosíssimos auto-retratos, e pode ser considerado um dos melhores pintores de naturezas-mortas de toda a pintura brasileira. De resto, num tempo em que era pouco comum praticá-la, reviveu a pintura religiosa, tendo sido autor de extraordinárias Vias Sacras, incursionando também, já quase ao fim da vida, pela pintura histórica.

Os noivos, óleo s/ madeira, 1927;
0,58 x 0,48, Museus Castro Maya, RJ

Família do fuzileiro naval, óleo s/ tela, 1935;
0,58 X 0,42, Instituto de Estudos Brasileiros da USP.

Léa e Maura, óleo s/ tela, 1940;
1,10 x 1,30, Museu Nacional de Belas Artes, RJ.

Ouro Preto, 1950;
0,60 X 1,00, Museu de Arte Contemporânea da USP.

Ouro Preto, óleo s/ madeira, 1951;
0,40 X 0,50, Museu de Arte Contemporânea da USP.

Vista de Ouro Preto, óleo s/ tela, 1960;
0,35 X 0,74, Palácio Bandeirantes, SP.